quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O Arquipélago da Insónia. António Lobo Antunes. «Não me deixes para quem afinal, o feitor que o desdenhava, o pai desmembrado pelo sacho ou o cavalo vila fora a balir de terror…»

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«(…) Que podia dizer-me, o que temos em comum mãe, o que há entre nós, subia as escadas e ficava à porta sem que ela Que queres tu? quando a minha avó se tornou fotografia um retrato sozinha quase a sorrir garanto, o desdém do meu avô Aquela se a notava na parede e a minha avó a interromper o sorriso, talvez nos pudéssemos ter compreendido os dois, mencionado o marido, explicado Fez tudo sozinho o milho e o trigo e o celeiro e a casa, segredava ao mulo e o animal a obedecer, o homem da latada Vai ser um rico dia o milhafre gritou e desandei a tropeçar da base do penhasco derrubando pedras que desciam até ao centro do mundo sobressaltando as cabras equilibradas nas saliências da erva, o segundo homem a contar pelos dedos multiplicando mãos Há quanto tempo morremos? de maneira que eu talvez morto porque lhes entendia a linguagem, as vozes nítidas dentro de mim somando dedo a dedo os anos do funeral, sete, oito, decidi Não acredito nestes fantasmas visto que mentem por ruindade e nós defuntos como eles, o segundo homem confundido com uma nespereira ao ponto de os dedos se transformarem em folhas e eu Não se dirige a uma pessoa dirige-se a uma árvore porque quem me garante que os mortos não misturam as coisas sem acertar com o número, o vento arrepiava a nespereira e trinta dedos, ia-se embora e onze, no meio dos dedos frutozinhos que amadureciam num brilhozito doce, para quê esta casa, este trigo, estas escadas dando a ilusão que muita gente e somente eu ao encontro da minha mãe não a alcançando nunca, aproximava-me do perfume dos baús, não me aproximava dela A minha mãe? e o som da roupa lavada que se dobra em tabuleiros, nunca a via descer à herdade excepto quando o cigarro do ajudante do feitor à espera e então, como no penhasco dos milhafres, pedras que caíam até ao centro do mundo e eu uma cabra aflita amparando-me a um pico de buxos com os tornozelos a dançarem, uma criança descalça (o meu avô?) a correr nas estevas, não parecido com o meu pai, não parecido comigo, a perseguir um perú (e uma mulher de luto Esse perú não vem?) que embatia contra uma espécie de rede, o segundo homem a designar a criança enquanto o vento em silêncio nos postigos abertos Disseram-me que eras neto deste meu sobrinho tu comigo tentando imaginar de que maneira os defuntos comunicam entre si e não acreditando que pudesse ser neto de uma criança daquele tamanho a pegar no perú por uma pata e a trazê-lo de rojo, lembrei-me da família nos retratos da sala a segredar sobre a gente, escutei a minha avó para si mesma Não fales ela que não falava nunca, mantinha-se na cadeira a descontar dias à vida, há quantos anos morreu você senhora e o bule não mais que um restinho de lúcia-lima no fundo, as cortinas dos postigos secretas, examinando a gente, a minha avó que antes de estar connosco morou na vila também, no adro de amendoeiras e bétulas onde as cabras se introduziam a balir nos tapumes, além dos tapumes sebes onde as hortas terminavam e uma carroça de lado que me trouxe à ideia o meu pai Não me deixes a pedir auxílio não à minha mãe, a mim, ou seja a alguém que não via e tomava pela minha mãe sendo eu que o fitava, se o meu avô ali estivesse Nem falecer sabes idiota e grifos nos algerozes à espera, vindos da fronteira onde talvez uma terra como esta e uma segadora queimada, do tamanho dos milhafres mas gordos, pelados, escutei os passos do feitor na eira e um frango Não me matem o cavalo que fungava a perceber-lhe a agonia achatando-se contra os restos do portão, o meu pai que nunca teve uma mulher só dele, uma herdade, uma família, morava com uma chávena a estremecer num pires e as empregadas da cozinha que se escondiam na tulha Não me abrace que coisa e se calhar não teve filhos também, interrogava um corpo a perfumar as arcas São meus filhos aqueles? isto é eu, o meu irmão e o silêncio nas pausas do relógio, o Não me deixes para quem afinal, o feitor que o desdenhava, o pai desmembrado pelo sacho ou o cavalo vila fora a balir de terror, talvez os finados nos detestassem por ficarmos com o que lhes pertencera, a sopeira, os talheres e o meu pai com medo que o pusessem entre eles Jesus Cristo para um boneco de feira incapaz de milagres, tentando recordar uma oração que não vinha, o meu avô expulsou o padre Ninguém precisa de você nesta herdade e o que Deus fez até hoje faço eu daqui em diante que estou cá neste mundo e sou mais novo e o feitor levou-o no mulo até um par de nogueiras secas depois da vila Senhor cura» In António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia, Publicações dom Quixote, LeYa, 2008, ISBN 978-972-203-694-8.
                    
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