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«(…) Bebendo diariamente daqueles
ideais, o menino sonhou a partir de então transformar-se no valente rei que
todos desejavam que fosse e que levasse o seu país ao esplendor máximo. Em
1557, sua mãe, a princesa Joana, por recomendação do seu confessor Francisco Borja,
fundou em Madrid o mosteiro das Clarissas, Nossa Senhora da Consolação,
Convento das Descalças Reais, situado no mesmo palácio onde ela nascera e fora
baptizada. Ali se recolheu e levou até à morte uma vida dedicada com total
entrega ao serviço de Deus. Tristemente, a 7 de Setembro de 1573, partiu para a
eternidade. Sebastião não derramou uma única lágrima porque nunca chegou a conhecê-la,
apesar de eu, para que a amasse, nunca tivesse deixado de lhe falar dela. Também
eu, na intimidade desta casa do Senhor, me sinto mais perto da minha família
perdida... Já nem o meu esposo nem os meus nove filhos estão neste mundo, assim
como nenhum dos meus irmãos. A eles falo através de Deus quando rezo e a eles
me parece ouvir quando leio a sua palavra na Bíblia.
Recordo como se fosse hoje o dia
em que transpus os portões deste claustro. Respirava-se aqui dentro uma
atmosfera diferente, eram os aromas da paz e da alegria profunda de estar
sempre com a mente posta em Deus, afastada do mundo. Aqui sente-se o estado de
graça. Tanto a prioresa como o resto das monjas são mulheres piedosas, sinceras
e devotas, naturais, verdadeiras..., que nunca deixam de pisar a terra sem
cuidar dos pobres e desvalidos. Henrique, o cardeal, reinou em nome de
Sebastião até à memorável data de 1568, em que meu neto, com catorze anos, tomou
posse efectiva do trono e assumiu os destinos do reino.
O jovem monarca já tem nove anos
de reinado pessoal. Dentro de seis dias fará vinte e três anos. Por muito
poucos dias de diferença, nunca pudemos celebrar juntos os nossos aniversários.
Para que fosse evidente que o meu desejo era viver recolhida dentro deste
mosteiro, renunciei a tudo o que era mundano e ordenei que me conduzissem até
aqui. A prioresa preparou com agrado uns claustros espaçosos para meu
alojamento. Jurei interiormente, ao transpor o umbral, permanecer em clausura e
nunca mais voltar a atravessá-lo em vida, a menos que algum funeral familiar o
exigisse. Desde a morte do meu esposo, visto o meu corpo de negro e trago o rosto
sombreado pela dor, dor que não posso arrancar da minha alma, por ter
presenciado a morte de todos os meus filhos... O convento faz parte, desde esse
ano, dos muitos lugares que deram acolhimento ao meu corpo e à minha alma ao
longo de toda a existência. Nesta solidão em que me encontro, também se filtram
habitualmente notícias políticas e, com elas, os meus pesares normalmente
crescem.
Não foi por influência de ninguém,
mas por decisão própria, que decidi viver e morrer neste sítio. Com ansiedade
procurei este ambiente ao ficar sozinha e encarei-o com agrado, como quem
aceita a tarefa que tem de realizar até ao último instante sem fazer mais
perguntas; entre outras razões porque o desejo fervorosamente, ou talvez por
este único motivo. E compreendi por fim, sem que a minha mente talvez o
entendesse, que não é preciso lutar contra a solidão quando a velhice bate à
porta, porque e um objectivo vão.
Saí do convento, não vos
resguardeis dentro dele ou dentro de vós, ouvi muitas vezes dizer a voz da
consciência. Não vos protegeis mais. Se escondeis os vossos olhos para que não
os magoe o Sol, mais de mil vezes havereis de vos ofuscar com os seus raios. Já
é tempo de provardes o vosso próprio remédio, o alívio não vos virá de fora.
Podeis procurá-lo, não vos detendes, nem sequer é preciso que vos movais. Tudo
está dentro de vós. Foi nos meses em que acabara de chegar ao mosteiro que
surgiram os primeiros pesadelos. Povoados de saudades e de sombras, entraram
nos meus sonhos, e, apesar de se repetirem com frequência, nunca de forma tão
obstinada como se abateram sobre mim naqueles tristes dias de princípios de 1563.
Nesses sonhos apenas eu existia. Quero dizer que só me via a mim mesma junto de
um labirinto de atalhos que se abriam, confusos, e que me conduziam sempre para
o nosso palácio de Sintra, onde já ninguém habitava, ou por vezes para os
mesmos aposentos onde eu residira e por cujas janelas penetravam, imperativas,
as primeiras escuridões da tarde. À medida que os pesadelos se repetiam, as
minhas noites iam-se tornando mais penosas; esforçava-me durante o dia por
afastar da mente aqueles pensamentos carregados de preocupações, mas eles,
adiados e não mortos, apareciam novamente todas as noites, mostrando-me as
imagens esbatidas dos meus filhos». In Yolanda Scheuber, Catarina de Habsburgo,
Rainha de Portugal, Ediciones Nowtilus, 2011, Casa das Letras, Oficina do
Livro, 2013, ISBN 978-972-462-077-0.
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