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«(…) Desde sempre as mulheres da família dos Távora foram dadas a
pressentimentos, a anjos e a cintilações, a negrumes e visões, a premonições, a
adivinhamentos e sonhos; dom maligno que, ao longo dos anos tendo trato com as
profecias, vêem sem rebuço entretecer a realidade em que vivem com o lado
sombrio do seu mundo interior: o quotidiano que habitam, o futuro que intuem,
adivinham, antecipando caladas mais as desgraças e os desgostos do que os
aprazimentos e as alegrias. A verdade, aceite por quem as rodeia e de certo
modo as teme, é terem conhecimento das raízes de tudo o que nasce e brota das
tempestades a montante do nada, daquilo que acontece antes de ter acontecido,
evitando todavia passar essa premonição aos outros, neles não desejando
acrescentar o receio e a angústia que eternamente cai sobre quem prevê a queda, a morte, a vertigem. Franja de
espuma nocturna, obstinada na tentativa de invadir a mente e o coração dos que
pressagiam os estigmas da alma, os espinhos do cardo, as silvas da torpeza, o
ocaso que a febre levanta nos abismos do peito, as garras do mal gerado por
Satanás na sua ronda em torno das mortes e dos partos, no uso de manhas e
artes, feitiços e artifícios; insidiosa tentativa de nos convocar, de nos
rodear, de nos fascinar, até nos afastar por completo da brancura e da maior
pureza, dos caminhos do bem.
Eu, Mariana Bernarda Lorena, condessa
de Atouguia e filha dos marqueses de Távora, jamais soube separar a visitação
dos arcanjos da aparição dos negrumes, nem destrinçar a plenitude onde reside o
adormentado gosto do mel, do êxtase onde explode o acre sabor a fel e a
salitre, salobre e amaro. Travo que guardo na boca desde o terramoto, numa
premonição de desgraça vil que de mim não se afasta em momento algum, a tornar
pesados e sem remédio os lentos dias arrastados das matinas às completas, de
sol a sol rastejando a demorar-se pelos hortos, pelos vinhedos, pelos
cemitérios, de rojo pelas sombrias matas onde vigiam as víboras. Pressentimentos
de enredos maléficos que ultimamente não cessam um único segundo, apesar de eu
tentar com empenhamento
aliviar-me com missas e orações, rezas e terços, leitura de livros místicos,
cabeceando de sono madrugada adentro, na vã tentativa de defender os meus e a
mim própria naquilo que posso, e nesse sentido usando promessas e velas acesas
às santas mais poderosas, exercícios de S. Ignácio, mandrágoras e incenso, água
benta e Rosa Divina, esmolas e castigos do corpo, cilícios atados nas carnes
macias da cintura. Pobre tentativa de silenciar as vozes que de noite me falam
baixo ao ouvido. Mariana Bernarda!, chamam-me. E eu sobressalto-me, enquanto
elas continuam: aproximam-se tempos sem misericórdia, desprovidos de compaixão
e temperança: patíbulo e morte, grilhões de degredo, ferros de tortura e
prisões fétidas, passarão por ti e encontram-se contidos nos destinos dos teus
mais chegados! Sem forças vou cosendo o choro escondido de quem me rodeia, e
diante da senhora minha mãe não consigo deixar de mil vezes indagar agoniada: encontra-se
Vossa Excelência de boa saúde? E ela, desconfiando da mesma interrogação
repetida infinito, olha-me no precipício dos olhos e, dando conta da minha
aflição, contrapõe a sua igual resposta em forma de pergunta: qual é o desgosto
oculto ou o segredo recolhido que a minha filha tanto guarda? E eu tento rir, a
contragosto, evitando a resposta sustentada pela mais deslavada mentira,
e para não a atormentar, em disfarce de invenção medíocre, digo-lhe, sonsa: ora,
Vossa Excelência tem coisas…, apressando-me a discorrer de seguida sobre
mesquinharias da Corte ou da justa apreensão dos jesuítas pelo manifesto ódio
do ministro de Estado de El-Rei pela Companhia de Jesus, à conta do qual
Sebastião José afastou o padre Malagrida, confessor da minha família». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom
Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.
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