O
corsário de Malabar
«(…) Desafio! Desafio!, reclamam
os corsários, batendo com os pés e as armas como o rufar de um tambor. Que é isso?,
pergunta Pêro. Que querem fazer? Lutar pelas donzelas, mas quem irá defendê-las?
Timoja ergue de novo a mão a pedir silêncio. Seja, então, o Desafio. Que venha
o escrivão. O homem que fizera o registo do saque acerca-se deles trazendo um
estojo com estiletes de ferro e umas olas metidas entre duas talas de pau, como
uma encadernação, trespassadas com um cordel e atadas para não se espalharem.
Pêro vê escrever pela primeira vez nas folhas de palma usadas como papel, onde
o escrivão grava os caracteres da sua letra, ao de leve, para não trespassarem
ao outro lado da folha. O capitão dirige-se às prisioneiras. Aceitai o vosso destino,
moças, com sorte e ajuda podeis alcançar a liberdade. Vinde para junto de mim e
dizei os vossos nomes. Só a muito custo as assustadas donzelas se soltam dos
braços das suas protectoras para obedecerem a Timoja, vindo postar-se diante dele.
Chems ed Douha, diz a árabe de olhos de azeviche e Pêro sorri com mágoa ao
ouvir o poético nome de Sol da Manhã. Gulnare, Flor da Romãzeira, um nome
apropriado à donzela que se assemelha a uma iluminura. Nurunnihar, fala a outra
persa, de pele cor de marfim e porte de princesa.
Tem o nome antigo das nossas
rainhas, sussurra Schaban, deslumbrado pela recordação do rosto encantador, enxergado
momentos antes. Como nos contos de As Mil e Uma Noites! Quem as
pretende?, pergunta Timoja, enquanto o escrivão grava os nomes das donzelas na
ola. Três punhais vêm cravar-se na cobertura diante de Nurunnihar e dois outros
aos pés de Gulnare e de Chems ed Douha, e os corsários aplaudem em delírio os
companheiros dispostos a bater-se pelo prémio. Quem as defende? Faz-se de novo
silêncio e dois homens vêm pôr-se ao lado das prisioneiras persas. Pais ou
tios, como se pode adivinhar pela idade e aparência, pacíficos mercadores que
pouco conhecem de armas e combates, mas se oferecem para lutar por elas até à
morte. Ninguém se apresenta em defesa de Chems ed Douha. Com quem viaja a
árabe?, pergunta Timoja ao grupo dos viajantes. A mulher que protege a moça
responde-lhe, a medo, sem sair do seu lugar: Al-Qadi é o tutor da menina, meu
senhor, mas nunca se serviu de uma arme e, assi atagantado (ferido com tagante)
vai morrer dos açoites.
O corsário ignora-a e fala aos dois
persas, aconselhando-os com cortesia: não sois homens de peleja e o Desafio
deve ser justo. As suas leis permitem a escolha de defensores, se o ofendido
não souber combater, for idoso ou fraco. Aqui não conhecemos ninguém que o
possa fazer, diz o pai de Nurunnihar, com desalento. Qualquer um pode
oferecer-se para lutar, anuncia o capitão bem alto a fim de ser ouvido em todo
o zambuco, seja corsário, passageiro ou tripulante. Escravo ou homem livre. Timoja
dá-nos a ocasião por que esperávamos, diz Schaban, e grita: Schaban Bubaka
defende Nurunnihar! Ali Moumen luta por Chems ed Douha!, brada o escudeiro, no mesmo
instante, sem hesitar.
Timoja
sorri, como se os dois homens tivessem correspondido àquilo que esperava deles.
Os corsários fazem surriada e Mir Bubaka geme, escondendo o rosto entre as
mãos, pois o filho desafiara o grupo mais numeroso de contendores. Sidi Ahmar
aceita o Desafio por Guinare, oferece-se o jovem lugar-tenente do navio. Aproximem-se
os defensores. Os corsários cortam as amarras das pernas de Schaban e Pêro e conduzem-nos,
com chistes e ameaças de morte, para junto do oficial do zambuco, diante de
Timoja. O escrivão regista os seus nomes, a seguir aos dos competidores. Aceitais
estes homens como vossos paladinos?, pergunta aos mercadores que se curvam num
agradecimento ante o persa e o moço oficial. Aceitamos, com toda a nossa gratidão».
In
Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do
Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN
978-989-809-258-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT