domingo, 17 de fevereiro de 2019

O Espião de João II de Portugal. Deana Barroqueiro. «Tem o nome antigo das nossas rainhas, sussurra Schaban, deslumbrado pela recordação do rosto encantador, enxergado momentos antes»

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O corsário de Malabar

«(…) Desafio! Desafio!, reclamam os corsários, batendo com os pés e as armas como o rufar de um tambor. Que é isso?, pergunta Pêro. Que querem fazer? Lutar pelas donzelas, mas quem irá defendê-las? Timoja ergue de novo a mão a pedir silêncio. Seja, então, o Desafio. Que venha o escrivão. O homem que fizera o registo do saque acerca-se deles trazendo um estojo com estiletes de ferro e umas olas metidas entre duas talas de pau, como uma encadernação, trespassadas com um cordel e atadas para não se espalharem. Pêro vê escrever pela primeira vez nas folhas de palma usadas como papel, onde o escrivão grava os caracteres da sua letra, ao de leve, para não trespassarem ao outro lado da folha. O capitão dirige-se às prisioneiras. Aceitai o vosso destino, moças, com sorte e ajuda podeis alcançar a liberdade. Vinde para junto de mim e dizei os vossos nomes. Só a muito custo as assustadas donzelas se soltam dos braços das suas protectoras para obedecerem a Timoja, vindo postar-se diante dele. Chems ed Douha, diz a árabe de olhos de azeviche e Pêro sorri com mágoa ao ouvir o poético nome de Sol da Manhã. Gulnare, Flor da Romãzeira, um nome apropriado à donzela que se assemelha a uma iluminura. Nurunnihar, fala a outra persa, de pele cor de marfim e porte de princesa.
Tem o nome antigo das nossas rainhas, sussurra Schaban, deslumbrado pela recordação do rosto encantador, enxergado momentos antes. Como nos contos de As Mil e Uma Noites! Quem as pretende?, pergunta Timoja, enquanto o escrivão grava os nomes das donzelas na ola. Três punhais vêm cravar-se na cobertura diante de Nurunnihar e dois outros aos pés de Gulnare e de Chems ed Douha, e os corsários aplaudem em delírio os companheiros dispostos a bater-se pelo prémio. Quem as defende? Faz-se de novo silêncio e dois homens vêm pôr-se ao lado das prisioneiras persas. Pais ou tios, como se pode adivinhar pela idade e aparência, pacíficos mercadores que pouco conhecem de armas e combates, mas se oferecem para lutar por elas até à morte. Ninguém se apresenta em defesa de Chems ed Douha. Com quem viaja a árabe?, pergunta Timoja ao grupo dos viajantes. A mulher que protege a moça responde-lhe, a medo, sem sair do seu lugar: Al-Qadi é o tutor da menina, meu senhor, mas nunca se serviu de uma arme e, assi atagantado (ferido com tagante) vai morrer dos açoites.
O corsário ignora-a e fala aos dois persas, aconselhando-os com cortesia: não sois homens de peleja e o Desafio deve ser justo. As suas leis permitem a escolha de defensores, se o ofendido não souber combater, for idoso ou fraco. Aqui não conhecemos ninguém que o possa fazer, diz o pai de Nurunnihar, com desalento. Qualquer um pode oferecer-se para lutar, anuncia o capitão bem alto a fim de ser ouvido em todo o zambuco, seja corsário, passageiro ou tripulante. Escravo ou homem livre. Timoja dá-nos a ocasião por que esperávamos, diz Schaban, e grita: Schaban Bubaka defende Nurunnihar! Ali Moumen luta por Chems ed Douha!, brada o escudeiro, no mesmo instante, sem hesitar.
Timoja sorri, como se os dois homens tivessem correspondido àquilo que esperava deles. Os corsários fazem surriada e Mir Bubaka geme, escondendo o rosto entre as mãos, pois o filho desafiara o grupo mais numeroso de contendores. Sidi Ahmar aceita o Desafio por Guinare, oferece-se o jovem lugar-tenente do navio. Aproximem-se os defensores. Os corsários cortam as amarras das pernas de Schaban e Pêro e conduzem-nos, com chistes e ameaças de morte, para junto do oficial do zambuco, diante de Timoja. O escrivão regista os seus nomes, a seguir aos dos competidores. Aceitais estes homens como vossos paladinos?, pergunta aos mercadores que se curvam num agradecimento ante o persa e o moço oficial. Aceitamos, com toda a nossa gratidão». In Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-258-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT