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O Comércio do Invisível
«(…) Cães, tão vulgares nas
casas dos ricos-homens, recusava ter. Não suportava os odores fedorentos que
produziam, os uivos sinistros que emitiam e aquela fome desencontrada e
carnívora que todas as manhãs manifestavam e que só o sangue fresco apaziguava.
Incensava ao invés os caracóis, em que via uma forma perfeita, depositária da
ordem primordial da criação terrena. Esses seres escusos, esquivos e
escorregadios haviam transitado sem mudança relevante do plano ascendente do
Paraíso para o plano inclinado da Dor; por isso, na sua casca impenetrável se
inscrevia em misteriosas pintas a escada de Jacob, que subia da Terra para os
mundos superiores. Tinha ainda consigo uma toutinegra em liberdade, que lhe
dava a ouvir todas as manhãs a filigrana da sua voz de oiro. Cativara-a apenas
com a sua presença. E as plantas que cresciam e se desenvolviam nos aposentos de
Leonor Teles não eram apenas motivos inertes de decoração; eram seres vivos,
que respiravam e pensavam a seu lado. A elas dirigia a filha de Martim Afonso
Teles a palavra, convicta de ser entendida.
Vós me entendeis melhor
que uma formatura de letrados, costumava ela dizer, afagando com as mãos as
labaredas de fogo verde que se soltavam no ar. Exigia no mais pequeno pormenor
o mais sério requinte; a harmonia era para ela a memória da Luz celeste. Na
beleza terrena via a derradeira emanação do fulgor divino e no canto dum
pássaro humilde, escondido nas moiras silvestres, sentia a música do Verbo do
Criador. A beleza era tudo, pois na beleza da Terra é que vinha morrer o último
raio do esplendor das Alturas. Mas a beleza terrena, sendo a derradeira orla do
manto divino, um efeito ainda da ofuscante Luz cimeira, não podia outrossim
deixar de ser, num mundo que a cada instante morria por lhe sentir a falta,
motivo de disputa e de ciúme. Por isso, quando a epifania da Beleza divina se
dava, a reserva se impunha. Guardar silêncio é obrigação de quem tem a seu
cargo um segredo; mas quando o sigilo é a boceta de Pandora (origem de todos os
males) a obrigação passa a dever inviolável.
Um dia, em que se sentia impaciente com as exigências dos irmãos, que insistiam
na sua companhia num passeio a Rates, interrogou Leonor Teles a camareira Maria
Peres. Que pensais vós de mim? A Peres não soube que responder. Conhecia a mascarilha
de seriedade que a donzela costumava usar junto dos tios, dos irmãos e dos
primos e habituara-se à sua distensão na intimidade, com as momices próprias
duma cortesã mimada. A bem dizer, só ela conhecia esse seu semblante de alívio
e brincadeira. Nem a tia Guiomar, regrada de mais para a braveza solitária com
que a menina tratava a vida, tinha notícia daquela alegria tão fresca e
desusada. Encolheu os ombros e riu-se como quem se esquiva a entrar na
conversa. Insistiu Leonor.
Não vades pelo silêncio.
Dizei já: que pensais vós de min? Sentindo-se em aperto, Maria Peres acabou por
falar. Que quereis que vos diga, senhora? Que ninguém vos conhece? E certo que
sim. Quem sois ou quem pareceis? Mester esse azarado. Mais de jeito vai de vos
dizer o que não sois. E decerto que não sois como as fustas que arribam às
areias de Esposende, para enfunardes as velas e mostrardes o rosto.
Leonor olhou-a sem surpresa. Maria conhecia-a melhor do que qualquer outro.
Ainda assim, estava longe de perceber o vulcão que ardia dentro dela e
sobretudo desconhecia aquele sentido interior que lhe activava a visão
mediúnica. A sua discrição era incondicional. Maria Peres era porém para ela
nessa época a única ponte com o mundo. Digo-vos para vosso cuidado. Este mundo
me ofende e ensandece. Não lhe pertenço nem o quero. Falais assim por causa do
agravo com vossos irmãos?» In António Cândido Franco, Vida Ignorada de
Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT