quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

D. Maria I. Jenifer Roberts. «No Verão de 1788, dona Maria passou três dias na Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande, da qual era proprietário o inglês William Stephens. Algumas semanas mais tarde, a irmã dele, Philadelphia…»

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A Vida Notável de uma Rainha Louca
«D. Maria I é indiscutivelmente merecedora de estima e de respeito, embora não tenha os atributos que façam dela uma grande rainha. Ninguém poderia ser mais amável, mais caridosa ou mais sensível, embora estas qualidades sejam diminuídas por uma excessiva devoção religiosa. In duque de Châtelet, 1777
D. Maria I de Portugal tem sido tratada de forma pouco amável pela historiografia. Enquanto alguns autores a colocam de parte, como se fosse apenas uma louca religiosa, outros relegam os seus anos no trono para uma breve nota de rodapé, encafuada entre os períodos mais dramáticos do governo de marquês de Pombal e da Guerra Peninsular. Contudo, ela merece bem mais, não apenas por ter sido uma mulher bondosa, cujo principal infortúnio foi herdar a coroa, mas também pelo facto de a sua história ser um paradigma da principal disputa do século XVIII entre a Igreja e o Estado, entre as velhas superstições e a época da razão. A rainha encarnava fielmente as contradições desse tempo, pois apesar dos seus fortes instintos na direcção de uma religião tradicional, soube compreender, pelo menos em alguns aspectos, o Iluminismo, tendo mesmo adoptado uma abordagem humanitária dos assuntos de Estado. Mulher frágil e delicada, adaptou-se mal à monarquia e a intensa luta pelo poder entre a Igreja e o Estado ajudou a destrui-la.
Embora se tenha esforçado por governar bem o país, com os conselhos dos seus ministros, dona Maria tinha pouco interesse pela política. Foi também por isso que não escrevi uma história política, concentrando-me mais nas complexidades da sua vida privada, assim como nos principais acontecimentos e nas personalidades desse período. A principal fonte utilizada nesta obra foi a correspondência dos embaixadores britânicos em Lisboa, particularmente Robert Walpole (sobrinho de sir Robert Walpole, o primeiro-ministro de Inglaterra), o qual escreveu cartas muito elucidativas e divertidas. Apreciei a sua companhia enquanto trabalhava com os documentos do Estado e do Foreign Office nos Arquivos Nacionais e senti a sua falta quando foi para casa de licença. Outra fértil fonte foi o diário do marquês de Bombelles, embaixador francês em Portugal durante os anos 1786 - 1788, que era deliciosamente indiscreto nas páginas do seu diário privado.
No Verão de 1788, dona Maria passou três dias na Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande, da qual era proprietário o inglês William Stephens. Algumas semanas mais tarde, a irmã dele, Philadelphia, escreveu uma carta, só recentemente descoberta, descrevendo este acontecimento único na história real. O seu correspondente era Thomas Cogan, um primo de Londres, que guardou a carta junto dos seus papéis particulares. Quando morreu, em 1792, os seus bens passaram para o filho, Thomas White Cogan, antigo reitor de East Dean, no Sussex, falecido em 1856. Mais de um século depois, os documentos foram oferecidos ao West Sussex Record Office como parte dos restos de documentos do advogado de WP Cogan, tendo sido descobertos numa casa em Chichester no início da década de 1960. Enquanto a carta de Philadelphia permanecia intacta e desconhecida nos arquivos, eu escrevia um livro sobre William Stephens e a riqueza que este acumulou na Marinha Grande (Glass: The Strange History of the Lyne Stephens Fortune), pelo que aproveito para citar as memórias de William Withering, quando visitou a fábrica em 1793:

Stephens teve a honra de receber a rainha e a família real de Portugal durante três dias, em 1788. Os acompanhantes de Sua Majestade, juntamente com o vasto fluxo de pessoas dos campos em redor, formavam uma assembleia de vários milhares. Foram empregados trinta e dois cozinheiros e proporcionados estábulos para oitocentos e cinquenta e três cavalos e mulas. Para crédito da honestidade e da sobriedade dos portugueses, só se perderam duas colheres de prata de entre as sessenta dúzias que foram usadas e, embora fosse colocado vinho nos aposentos usados pelos criados, nem um único homem foi visto bêbado.

Afora uma breve menção à visita da rainha no livro de contabilidade na Marinha Grande, esta foi a única referência que pude encontrar acerca de uma ocasião que parecia tão excecional. O dr. Withering, que era membro da Lunar Society of Birmingham, tinha a reputação de ser um homem cuidadoso, diligente e ninguém o podia acusar de ser exagerado, porém duvidei da sua prodigiosa memória nesta ocasião. A família Stephens era proveniente de Devon e da Cornualha, logo não terá sido a geografia a conduzir-me ao West Sussex Record Office. Contudo, depois da publicação de Glass, o curador juntou mais alguns manuscritos ao sítio da internet Access to Archives (um projecto que reúne os catálogos de arquivos de todo o Reino Unido). Um dia, ao digitar, por acaso, Marinha Grande no sítio da internet, encontrei a seguinte referência: relato por Philadelphia Stephens de uma visita da Rainha e da Família Real de Portugal à Marinha Grande, 25 de julho de 1788.
Se Glass foi inspirado pela minha admiração por William Stephens, a presente obra deve mais à sua irmã, cujo relato da visita real proporciona uma viagem intimista ao mundo da monarquia absoluta, um instantâneo da vida da corte na velha Europa, apenas um ano antes da Revolução Francesa ter começado a mudar a face do continente. Este estudo oferece um retrato simpático de dona Maria, nas suas últimas semanas de felicidade, pouco antes das tragédias que provocaram a sua insanidade e o infeliz epíteto de Maria, a Louca». In Jenifer Roberts, D. Maria I, A Vida Notável de uma Rainha Louca,  Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-462-123-4.

Cortesia de CdasLetras/JDACT