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A Vida Notável de uma Rainha Louca
«D. Maria I
é indiscutivelmente merecedora de estima e de respeito, embora não tenha os
atributos que façam dela uma grande rainha. Ninguém poderia ser mais amável,
mais caridosa ou mais sensível, embora estas qualidades sejam diminuídas por
uma excessiva devoção religiosa. In duque de Châtelet, 1777
D. Maria I de Portugal tem sido
tratada de forma pouco amável pela historiografia. Enquanto alguns autores a
colocam de parte, como se fosse apenas uma louca religiosa, outros relegam os
seus anos no trono para uma breve nota de rodapé, encafuada entre os períodos
mais dramáticos do governo de marquês de Pombal e da Guerra Peninsular.
Contudo, ela merece bem mais, não apenas por ter sido uma mulher bondosa, cujo
principal infortúnio foi herdar a coroa, mas também pelo facto de a sua
história ser um paradigma da principal disputa do século XVIII entre a Igreja e
o Estado, entre as velhas superstições e a época da razão. A rainha encarnava
fielmente as contradições desse tempo, pois apesar dos seus fortes instintos
na direcção de uma religião tradicional, soube compreender, pelo menos em
alguns aspectos, o Iluminismo, tendo mesmo adoptado uma abordagem humanitária
dos assuntos de Estado. Mulher frágil e delicada, adaptou-se mal à monarquia e
a intensa luta pelo poder entre a Igreja e o Estado ajudou a destrui-la.
Embora se tenha esforçado por
governar bem o país, com os conselhos dos seus ministros, dona Maria tinha
pouco interesse pela política. Foi também por isso que não escrevi uma história
política, concentrando-me mais nas complexidades da sua vida privada, assim
como nos principais acontecimentos e nas personalidades desse período. A
principal fonte utilizada nesta obra foi a correspondência dos embaixadores
britânicos em Lisboa, particularmente Robert Walpole (sobrinho de sir Robert Walpole, o primeiro-ministro
de Inglaterra), o qual escreveu cartas muito elucidativas e divertidas.
Apreciei a sua companhia enquanto trabalhava com os documentos do Estado e do
Foreign Office nos Arquivos Nacionais e senti a sua falta quando foi para casa
de licença. Outra fértil fonte foi o diário do marquês de Bombelles, embaixador
francês em Portugal durante os anos 1786 - 1788, que era deliciosamente
indiscreto nas páginas do seu diário privado.
No Verão de 1788, dona Maria passou
três dias na Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande, da qual era proprietário
o inglês William Stephens. Algumas semanas mais tarde, a irmã dele,
Philadelphia, escreveu uma carta, só recentemente descoberta, descrevendo este
acontecimento único na história real. O seu correspondente era Thomas Cogan, um
primo de Londres, que guardou a carta junto dos seus papéis particulares.
Quando morreu, em 1792, os seus bens passaram para o filho, Thomas White Cogan,
antigo reitor de East Dean, no Sussex, falecido em 1856. Mais de um século
depois, os documentos foram oferecidos ao West Sussex Record Office como parte dos
restos de documentos do advogado de WP Cogan, tendo sido descobertos numa casa
em Chichester no início da década de 1960. Enquanto a carta de Philadelphia permanecia
intacta e desconhecida nos arquivos, eu escrevia um livro sobre William
Stephens e a riqueza que este acumulou na Marinha Grande (Glass:
The Strange History of the Lyne Stephens Fortune), pelo que aproveito para citar as
memórias de William Withering, quando visitou a fábrica em 1793:
Stephens teve a honra de receber a
rainha e a família real de Portugal durante três dias, em 1788. Os
acompanhantes de Sua Majestade, juntamente com o vasto fluxo de pessoas dos
campos em redor, formavam uma assembleia de vários milhares. Foram empregados
trinta e dois cozinheiros e proporcionados estábulos para oitocentos e
cinquenta e três cavalos e mulas. Para crédito da honestidade e da sobriedade
dos portugueses, só se perderam duas colheres de prata de entre as sessenta
dúzias que foram usadas e, embora fosse colocado vinho nos aposentos usados
pelos criados, nem um único homem foi visto bêbado.
Afora uma breve menção à visita da
rainha no livro de contabilidade na Marinha Grande, esta foi a única referência
que pude encontrar acerca de uma ocasião que parecia tão excecional. O dr.
Withering, que era membro da Lunar Society of Birmingham, tinha a reputação de
ser um homem cuidadoso, diligente e ninguém o podia acusar de ser exagerado,
porém duvidei da sua prodigiosa memória nesta ocasião. A família Stephens era
proveniente de Devon e da Cornualha, logo não terá sido a geografia a
conduzir-me ao West Sussex Record Office. Contudo, depois da publicação de Glass, o curador juntou mais alguns
manuscritos ao sítio da internet Access to Archives (um projecto que reúne os
catálogos de arquivos de todo o Reino Unido). Um dia, ao digitar, por acaso,
Marinha Grande no sítio da internet, encontrei a seguinte referência: relato
por Philadelphia Stephens de uma visita da Rainha e da Família Real de Portugal
à Marinha Grande, 25 de julho de 1788.
Se Glass foi inspirado pela minha admiração por William Stephens, a
presente obra deve mais à sua irmã, cujo relato da visita real proporciona uma
viagem intimista ao mundo da monarquia absoluta, um instantâneo da vida da corte na velha Europa, apenas um ano
antes da Revolução Francesa ter começado a mudar a face do continente. Este
estudo oferece um retrato simpático de dona Maria, nas suas últimas semanas de felicidade, pouco antes das
tragédias que provocaram a sua insanidade e o infeliz epíteto de Maria, a Louca».
In
Jenifer Roberts, D. Maria I, A Vida Notável de uma
Rainha Louca, Casa das Letras, 2012, ISBN
978-972-462-123-4.
Cortesia
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