domingo, 24 de fevereiro de 2019

Marquesa de Alorna. Maria João Lopo de Carvalho. «Não foi uma, foram três ondas gigantes!, emendou Vicente, erguendo três dedos sujos frente aos olhos de dona Leonor. As pessoas estavam à espera do barco e…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Leonor. 1755-1770
«(…) Ruiu a prisão, ruiu a Prisão do Limoeiro!, exclamou um dos criados. Leonor escondeu a cara no regaço da mãe, sobressaltada com aquele fim de tudo o que conhecia. Chorava convulsivamente, com medo de não voltar a ver o pai. O espectáculo a que todos assistiram naquela manhã soalheira de 1 de Novembro de 1755, no dia seguinte ao quinto aniversário de Leonor, fora a maior catástrofe que Portugal jamais vivera. Gente sem pernas, gemendo de dor por baixo dos destroços das casas, pais à procura dos filhos, filhos sem pais, gritos de agonia, pedidos de socorro e de clemência divina. Lisboa reduzida a escombros.
Nota: no século XVIII, o almoço era ao acordar; o jantar entre o meio-dia e as 15 horas; a merenda a meio da tarde; e a ceia entre as 19 horas e as 23 horas.

Palácio do Limoeiro. Lisboa, 1 de Novembro de 1755
Refugiados na capela do palácio, que por milagre resistira à catástrofe, Leonor, Maria e Pedro tremiam de medo e de cansaço. Dona Leonor, Feliciana e as outras criadas tentavam acalmá-los, no meio da azáfama de gente que entrava e saía da capela, trazendo notícias da cidade devastada e da impotência humana perante a ira divina que se abatia sobre Lisboa. Veio uma onda do rio com mais de vinte pés, Senhora Dona Leonor!, contava o criado Vicente, desesperado, coberto de caliça. Devastou tudo por onde passou, minha senhora, uma parede de água que engoliu casas, carruagens, animais, gente, árvores… Diz que até há barcos no Rossio, interrompeu o moço Manuel João. Foi uma onda, uma onda que trouxe a morte com ela, e quando o rio a voltou a engolir, a água ia escura de lama e de cadáveres! Não foi uma, foram três ondas gigantes!, emendou Vicente, erguendo três dedos sujos frente aos olhos de dona Leonor. As pessoas estavam à espera do barco e…, desapareceram todas, sorvidas pela maré… Dizem que do Cais de Pedra, nem vestígio… E fogo, fogo por todo o lado, minha senhora, fogo que o vento empurra, Lisboa está a arder!
Quis Deus mandar-nos três catástrofes por sermos pecadores: o terramoto, o maremoto e o fogo! Isto nos disse o senhor abade que passava além…, e disse mais! Disse que o Hospital Real de Todos os Santos estava em chamas. A Igreja de São Vicente de Fora, a Patriarcal, a Igreja de São Nicolau, de São Paulo, o Palácio da Inquisição… parece que, por ora, só a Sé escapou! Pára, Vicente, por favor, pára! Não quero saber! interrompeu dona Leonor, tapando os ouvidos com as mãos. Não queria que as filhas o ouvissem, nem que entendessem a dimensão da tragédia, da inexplicável catástrofe que assolava Lisboa. Por que razão não os poupava Deus a tão triste destino? E os santos, que naquele dia se comemoravam, por que não olhavam por eles? Onde estava Santa Leonor? São Pedro, que fazia? E Maria, Virgem Santísssima? E São João Evangelista, que anunciara a luz nas trevas? Com um aceno, pediu à ama que se aproximasse e, pegando em Pedro ao colo, rezou. Rezou tal como naquele mesmo local rezara, havia pouco mais de um ano, no dia do baptizado do rapaz. Rezou, embalando o filho, numa súplica repetida, para que o pesadelo terminasse, para que o marido voltasse, para que a Senhora dos Aflitos lhe perpetuasse a companhia dos filhos, de seus amados pais, de seus queridos irmãos… De olhos esbugalhados, Leonor e Maria não julgavam possível que uma onda do mar, daquele mar povoado de piratas e de estrelas e de cavalos-marinhos de que Vicente tantas vezes lhes falara, pudesse ter chegado ao Rossio. E muito menos que tivesse devorado a cidade toda. Uma onda, minha mãe?, perguntou Leonor, a arder em espanto. Uma onda! Está a ver, mana? Uma onda gigante!!! E com gestos simulava o que, no seu entender, significava uma onda gigante.
Nunca tal tinha ouvido, Leonorzita!, respondeu-lhe a mãe. Mas não se inquietem, o pai deve estar a chegar… Isto, isto…, vai já passar, minhas queridas filhas, vamos rezar, vamos continuar a rezar para que Deus Nosso Senhor e Santa Leonor tenham piedade de nós. Sempre com o filho ao colo, como que a querer protegê-lo do futuro, dona Leonor voltou-se para Vicente: novas de minha mãe, alguém mas traz?» In Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN 978-989-555-554-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT