Cortesia
de wikipedia e jdact
Leonor.
1755-1770
«(…) Ruiu a prisão, ruiu a Prisão do
Limoeiro!, exclamou um dos criados. Leonor escondeu a cara no regaço da mãe,
sobressaltada com aquele fim de tudo o que conhecia. Chorava convulsivamente,
com medo de não voltar a ver o pai. O espectáculo a que todos assistiram
naquela manhã soalheira de 1 de Novembro de 1755, no dia seguinte ao quinto
aniversário de Leonor, fora a maior catástrofe que Portugal jamais vivera.
Gente sem pernas, gemendo de dor por baixo dos destroços das casas, pais à
procura dos filhos, filhos sem pais, gritos de agonia, pedidos de socorro e de
clemência divina. Lisboa reduzida a escombros.
Nota: no século XVIII, o almoço era ao acordar; o jantar
entre o meio-dia e as 15 horas; a merenda a meio da tarde; e a ceia entre as 19
horas e as 23 horas.
Palácio
do Limoeiro. Lisboa, 1 de Novembro de 1755
Refugiados na capela do palácio, que
por milagre resistira à catástrofe, Leonor, Maria e Pedro tremiam de medo e de
cansaço. Dona Leonor, Feliciana e as outras criadas tentavam acalmá-los, no
meio da azáfama de gente que entrava e saía da capela, trazendo notícias da
cidade devastada e da impotência humana perante a ira divina que se abatia
sobre Lisboa. Veio uma onda do rio com mais de vinte pés, Senhora Dona Leonor!,
contava o criado Vicente, desesperado, coberto de caliça. Devastou tudo por
onde passou, minha senhora, uma parede de água que engoliu casas, carruagens,
animais, gente, árvores… Diz que até há barcos no Rossio, interrompeu o moço Manuel
João. Foi uma onda, uma onda que trouxe a morte com ela, e quando o rio a
voltou a engolir, a água ia escura de lama e de cadáveres! Não foi uma,
foram três ondas gigantes!, emendou Vicente, erguendo três dedos sujos
frente aos olhos de dona Leonor. As pessoas estavam à espera do barco e…,
desapareceram todas, sorvidas pela maré… Dizem que do Cais de Pedra, nem
vestígio… E fogo, fogo por todo o lado, minha senhora, fogo que o vento
empurra, Lisboa está a arder!
Quis Deus mandar-nos três catástrofes
por sermos pecadores: o terramoto, o maremoto e o fogo! Isto nos disse o
senhor abade que passava além…, e disse mais! Disse que o Hospital Real de
Todos os Santos estava em chamas. A Igreja de São Vicente de Fora, a Patriarcal,
a Igreja de São Nicolau, de São Paulo, o Palácio da Inquisição… parece que, por
ora, só a Sé escapou! Pára, Vicente, por favor, pára! Não quero saber! interrompeu
dona Leonor, tapando os ouvidos com as mãos. Não queria que as filhas o ouvissem,
nem que entendessem a dimensão da tragédia, da inexplicável catástrofe que
assolava Lisboa. Por que razão não os poupava Deus a tão triste destino? E os
santos, que naquele dia se comemoravam, por que não olhavam por eles? Onde
estava Santa Leonor? São Pedro, que fazia? E Maria, Virgem Santísssima? E São
João Evangelista, que anunciara a luz nas trevas? Com um aceno, pediu à ama que
se aproximasse e, pegando em Pedro ao colo, rezou. Rezou tal como naquele mesmo local rezara, havia
pouco mais de um ano, no dia do baptizado do rapaz. Rezou, embalando o filho,
numa súplica repetida, para que o pesadelo terminasse, para que o marido
voltasse, para que a Senhora dos Aflitos lhe perpetuasse a companhia dos
filhos, de seus amados pais, de seus queridos irmãos… De olhos esbugalhados,
Leonor e Maria não julgavam possível que uma onda do mar, daquele mar povoado
de piratas e de estrelas e de cavalos-marinhos de que Vicente tantas vezes lhes
falara, pudesse ter chegado ao Rossio. E muito menos que tivesse devorado a
cidade toda. Uma onda, minha mãe?, perguntou Leonor, a arder em espanto. Uma
onda! Está a ver, mana? Uma onda gigante!!! E com gestos simulava o que, no seu
entender, significava uma onda gigante.
Nunca tal tinha ouvido, Leonorzita!,
respondeu-lhe a mãe. Mas não se inquietem, o pai deve estar a chegar… Isto,
isto…, vai já passar, minhas queridas filhas, vamos rezar, vamos continuar a
rezar para que Deus Nosso Senhor e Santa Leonor tenham piedade de nós. Sempre
com o filho ao colo, como que a querer protegê-lo do futuro, dona Leonor
voltou-se para Vicente: novas de minha mãe, alguém mas traz?» In
Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN
978-989-555-554-3.
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