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«(…) Era lá, enfim, que morava
João Lourenço Cunha, descendente dos fundadores, e aí passou também a morar
Leonor Teles, depois do casamento. Os primeiros dias em Pombeiro foram
tumultuosos para ela. Passava o tempo na câmara, estendida no leito, debaixo
dos cobertores, ora chorando de infelicidade, ora rezando pela sua própria
salvação. Não havia maneira de esquecer o passado, a infância, os primeiros
anos da adolescência, muito menos a dolorosa viagem entre Barcelos e Pombeiro.
Com um sentimento misto de horror e nojo, não conseguia esquecer igualmente o
instante em que se prometeu ao marido para toda a vida, sequer o momento em que
João Lourenço Cunha entrou na liteira a ajeitar grosso pénis com a mão esquerda,
para depois, já sentado no banco a seu lado, colocar a mão direita nas coxas
dela, cobertas, entretanto, por um manto que as resguardava do intenso frio.
Fora a noite mais sofrida da sua vida; fora a mais longa e demorada viagem que
até então fizera. Vinte pessoas, entre as quais se incluíam criados, pajens, um
sacerdote, um curandeiro, duas amas e dois feiticeiros, além de Briolanja
Mendes, acompanharam o casal nessa aventura em carroças puxadas por duas bestas
ou no dorso de imponentes mulas, nalguns casos de porte quase idêntico às que
aparelhavam a liteira.
Pior, no entanto, que a primeira
zanga do matrimónio, foi a segunda. E ela ocorreu duas noites após o casamento,
justamente quando João Lourenço se apercebeu de que a mulher já não era virgem.
O morgado ficou louco de raiva e quis saber na mesma hora quem fora o homem que
a desvirgindou, e quem para além do primeiro, se outros houve, se deitou com
ela. Humilhada e ofendida com o que acabara de ouvir, Leonor Teles ameaçou João
Lourenço de que regressaria a Barcelos no dia seguinte se ele prosseguisse nas
ofensas à sua honra, à honra do seu estimado tio, à honrosa memória dos seus
dignos antepassados. Mas, cobarde como era, o senhor de Pombeiro deu logo o
assunto por encerrado, com um pedido de desculpas, para realizar, então,
atabalhoadamente e sem demora, a função da primeira noite com a jovem dama, sua
esposa.
Certa manhã, depois de João
Lourenço sair para uma caçada de dois dias na região de Cantanhede, a senhora
mandou chamar Briolanja Mendes aos seus aposentos para mais uma conversa e umas
tantas revelações. Não sei o que fazer, desabafou, logo que a velha entrou no
quarto. Ainda só se passaram dois meses e já estou farta disto, desta casa,
desta gente, de Pombeiro, do miserável traste que o meu estimado tio me destinou.
Tenho vontade de fugir para longe, às vezes apetece-me morrer para não
enfrentar esta supliciada vida em que apenas me vou cumprindo nos espaços que
competem ao ódio e desamor... Encostada à parede, de mãos cruzadas sobre o
peito, Briolanja Mendes ia ouvindo os queixumes de Leonor com a costumada
atenção.
Vê lá tu que, logo no primeiro
dia de chegarmos aqui, me vi obrigada a dizer ao meu desalmado esposo que iria
embora se ofendesse a minha honra como chegou a tentar. Já não sei porquê mas
quis discutir comigo, tentou humilhar-me e, através de mim, atingir a digna
memória dos meus antepassados. Eu sei, senhora. Ouviste a discussão? Foram as
estrelas que mo disseram, respondeu a velha com indisfarçável cinismo. Leonor
Teles percebeu que a ama lhe estava a mentir e por isso sorriu com ternura.
Sem, no entanto, levar o caso a consideração, aconselhou num tom de voz
baixinho, sussurrado: é tempo de começares a pensar nos filtros de amor de que
um dia me falaste em Barcelos. Briolanja cerrou os olhos, benzeu-se e, quase
num murmúrio, disse: estou já a pensar nisso...» In José Manuel Saraiva, Rosa
Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
Cortesia de OdoLivro/JDACT