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«(…) Entrega o bilhete ao homem,
Lurdes, disse o meu compadre do seu fosso de agonias, e a branca enfiou o
cotovelo num pote, remexeu sons de chaves, e avançou para mim no andar de bicho
sem raça com que pela primeira vez a vi, caminhando dos coentros do quintal para
o prefabricado do pai, alta, loira, forte, uma égua grande e dócil que trepou dois
degraus furtados a uma escadaria de galé, uma cabrona de cesta na dobra do braço
a sumir-se em casa sem me olhar e que deixou uma espécie de gás de aquário a ferver-me
nos ossos, um aturdimento, mãezinha, como o de agora, ao estender-me a passagem,
embrulhada naquilo que de perto reparava ser uma toalha tal como reparava no corpo
nu por baixo, no peito largo, na barriga lisa, na espuma arruivada dos pelos. Um
pato invadiu o compartimento e tentou alçar-se sem êxito, tombando sempre, para
uma cadeirita de lona esfarrapada, com tiras de ráfia nos apoios dos braços. Se
já tens o papel para Lixboa vai-te embora, chiou o meu compadre dos cobertores
onde se dissolvia em madeixas alagadas, ainda mais magro e mais escaveirado que
o costume, e eu pensei, sem parar de admirá-la, a avaliar-lhe a musculosa
serenidade dos ombros e do púbis, Quero voltar atrás com o negócio, que coisa,
quero agarrá-la pelas crinas e levá-la comigo. Magiquei melhor, disse ao doente,
quem fica a perder com esta troca sou eu, e o meu compadre sentou-se nos lençóis,
danado, com um pacho a escorregar-lhe da bochecha, espetando em mim os olhos irrevogáveis,
vermelhos e miúdos, baços da aflição da malária e dos incontáveis anos que tinha,
esquelético, frágil e inesperadamente enorme na inconcebível pequenez dos seus membros,
Entrega ao teu marido o que se combinou e chega aqui, e a minha esposa poisou o
bilhete numa ponta da mesa e aproximou-se fascinada por aquela voz sem quebras
de pardal altivo até quase encostar os quadris à orelha do homem. O pato grasnava
em pânico, com uma das asas entalada na lona, saltitando de bico aberto sem lograr
libertar-se. Havia sapatos, cafeteiras amolgadas e caroços de manga pelo chão, cuecas
de renda, varetas de leque, caixas de botões. Tens que apresentar-te no aeroporto
esta noite, avisou o meu compadre a abanar-se de tosse, já conferiste por acaso
a hora do embarque? E ela, a parva, a compor-lhe as almofadas, a acender os bicos
avariados do fogão, a preparar-lhe um chazinho de ervanária, a mover-se através
de dunas de detritos numa familiaridade conjugal que me expulsava. O pato conseguiu
livrar-se das correias da cadeira e escapou-se para debaixo da cama num menear ofendido.
A chuva pingava nos cobertores, pingava na minha cabeça, pingava na rapariga e no
velho e no pato que me fixavam em uníssono com a mesma hostilidade ou indiferença,
e alcancei o avião (chovia sempre) no momento da última chamada, Por esta porta
aqui, fazem favor. Segui a pé, de sombrinha aberta, na direcção das escadas que
os relâmpagos mostravam para tudo recair depois numa noite triste e enervada. O
aparelho correu ao longo da pista quase sem luzes e ergueu-se acima da nódoa opaca
do mar. Quer dizer: não se topava o que quer que fosse salvo o reflexo de nós próprios
nas janelas mas eu sabia que era o mar, e recordei-me de quantas vezes, em pequeno,
olhei aquelas ondas a lembrar-me de Goa». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988,
Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.
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