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Criada do conde Henrique. 1147
Lisboa, Outubro de 1147
«(…) Dona Urraca ordenou que
fosse Ana Justa a matar o menino, metendo-o numa bacia ou atirando-o ao rio. A
ama prometeu obedecer, mas escondeu a criança num curral, como se fosse um
Jesus nas palhinhas. Quando o conde regressou, contou-lhe o que fizera e ele decidiu
ir a Cárquere. Mal dona Urraca partiu, levámo-lo ao mosteiro. Como o pequeno
Ramiro tinha apenas dias, a viagem foi arriscada, mas Ana Justa trouxera, na carroça,
mantas para o aquecer e uma cabra, cujas tetas mugia para aleitar o menino. O
conde agradeceu-lhe o feito e, já em Cárquere, entregou o bastardo a Martinho
Soure. Depois, mandou-me regressar a Astorga, contou dona Justa.
Nos três anos seguintes, o
pequeno Ramiro cresceu em Cárquere, como muitas outras crianças abandonadas
pelos ricos-homens da região. E provavelmente lá ficaria, anónimo, até à idade
adulta, se entretanto dona Urraca e o conde Henrique não se tivessem zangado. O
casamento da minha tia..., adiantou Afonso Henriques. Por causa disso, o meu
avô Afonso VI expulsou o meu pai de Toledo. Enfurecido com as decisões
imperiais, o conde Henrique insurgiu-se contra o sogro e também contra Afonso de
Aragão, alegando que este não podia desposar uma mulher que apoucava com
maldade.
O rei aragonês costumava dizer
que Urraca gostava tanto de homens que tinha pena de só ter três buracos! indignou-se
a ama. Uma gargalhada geral distendeu o ambiente pesado da tenda. Mas logo
Afonso Henriques colocou a mão ao alto. Pouco tempo depois, morreu o meu avô...
O desaparecimento do velho e doente Afonso VI gerou uma guerra cristã, motivada
pelos ódios entre o casal formado por dona Urraca e Afonso de Aragão. Sem
querer participar na contenda, o conde Henrique partiu em viagem para a Terra
Santa. Só o revi um ano depois... Nessa data, contou a ama, o conde fora de
novo chamado a Astorga, convencido por dona Teresa a aceitar uma proposta de
paz de dona Urraca. Coisa que nunca aconteceu. Vosso pai cometeu um erro...,
recordou a ama.
Ameaçou dona Urraca com a
revelação de que o bastardo dela estava vivo! Enfurecida, a doida leonesa
decidiu matar o conde Henrique e uma angustiada e triste Ana Justa assistiu à
lenta degradação do seu senhor. Envenenado com peçonha pela cunhada, mesmo
antes de morrer ele pediu que a criada e o padre Martinho entregassem Ramiro a
Paio Soares, à época o alferes portucalense. Foi isso que fizemos, garantiu dona
Justa. Entretanto, a rainha Urraca começou a espalhar a falsa troca das
crianças, acusando Egas Moniz de ter substituído o aleijadinho Afonso Henriques
pelo seu filho mais velho e dona Teresa ficou para sempre desconfiada de que
aquele menino não era seu. Porque não desmentiram a patranha?, perguntou o rei.
Na época, o silêncio de dona Justa, de Martinho Soure e de Paio Soares
permitira a propagação da falsa intriga. Vosso pai tinha-nos pedido segredo!,
defendeu-se dona Justa. E a rainha de Leão podia matar-nos! Martinho Soure era
apenas padre num mosteiro menor e ela uma criada de quarto. Só Paio Soares
teria força para enfrentar Urraca, porém também se acanhou.
Foi connosco buscar Ramiro a
Cárquere, mas nos anos seguintes remeteu-se ao seu castelo, na Maia, e sofria
de pesadelos só de pensar em dona Urraca!, contou dona Justa, pedindo desculpa
a Chamoa por lhe criticar o falecido marido. A minha cunhada encolheu os
ombros, mas Afonso Henriques considerou uma cobardia o silêncio da ama, do
alferes e do padre. Haveis enganado minha mãe! Indignada, dona Justa
ripostou-lhe: só me calei para proteger vosso pai! Proteger meu pai de quê?, perguntou
o rei. Ele já estava morto! Enquanto as lágrimas lhe corriam pela cara a baixo
e uma tristeza infinita lhe ensombrava os olhos, a ama gemeu: foi só uma noite,
mas o meu amor perdeu-se... Afonso Henriques sorriu, ligeiramente cínico: afinal,
meu pai dormiu convosco? Não!, enxofrou-se dona Justa. Com uma rainha!» In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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