sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O Estranho Caso de Sebastião Moncada. João Pedro Marques. «Eufrásia, que chegava ávida de atenção, estacou como se tivesse embatido numa parede. Mas depressa se recompôs, varreu a decepção do rosto…»

jdact

O Mistério da Foz
«(…) O inspector Vilaverde conduziu o cavalo, a passo, pela Rua de Santa Catarina e quando chegou à casa vinte e oito desmontou, sem pressas. Juntara-se ali uma pequena multidão atraída pela desgraça e ele ordenou ao cabo de polícia que dispersasse a gente que rodeava o cadáver. Era um recém-nascido, parecia de tempo e a sua carinha inocente e engelhada, estava aterradoramente lívida. O inspector pôs-se de cócoras e esteve alguns segundos a observar o solo, como um camponês que meditasse sobre as duras incertezas dos seus torrões. Depois, pegou com cuidado naquele corpo pouco maior do que a sua mão e com um dedo indicador ergueu-lhe o queixinho, vencendo a rigidez da nuca. Havia uma marca avermelhada em redor do pescoço que sugeria um estrangulamento. Aquela pobre alminha nascera viva e fora assassinada aos primeiros respiros. E, pior ainda, as várias equimoses indicavam que tinha sido batida ou, pelo menos, atirada violentamente para aquele pátio.
Mateus Vilaverde ergueu-se devagar com um esgar de repulsa na cara. Era um homem relativamente magro, de corpo flexível e bastante mais alto do que os circundantes, e talvez por isso parecesse que não mais parava de se erguer. O cabelo, curto e negro, reforçava-lhe o ar descrente e a tristeza atormentada no olhar. Usava o uniforme de tenente da Guarda Real de Polícia, casaca azul, calça branca e bota alta, que complementava com um chapéu claro, de aba larga. Uma faixa de algodão, de um vermelho pálido, já desbotado, cingia-lhe a cintura e, sobre ela, um cinto de cabedal de onde pendia uma pistola. Acendeu um cigarro, que arrumou displicentemente a um canto da boca, e esteve alguns segundos de pálpebras fechadas, virado para o sol da manhã. Gostava de ficar assim com o fumo a subir-lhe pela cara e a causticar-lhe a pele, enquanto deixava que a luz avermelhada lhe atravessasse as pálpebras e viesse aquecer-lhe as ideias. Não precisava de ver mais nada para imaginar o que ali se passara. Daí para a frente seria apenas o desfiar das perguntas de rotina: sabes quem fez isto?, perguntou, descerrando os olhos e virando-se para o dono da casa.
O homem fitou-o com ar assustado. Era uma criatura baixa e soprada, de barriga rotunda, barba por fazer e aspecto muito sujo. Abriu os braços num misto de impotência e de ignorância, e respondeu: não, senhor. Eu cá não sei, meu senhor. Pensa bem... Não viste gente por aqui? Não ouviste barulhos? O homem encolheu os ombros e oscilou a cabeça de um lado para o outro, como se negasse, mas confidenciou que ouvira qualquer coisa no quintal, um baque, um ruído, uma restolhada, mas não ligara. Só há pouco é que vimos o santinho aqui no chão. A Eufrásia estava à minha beira, disse, indicando a mulher. Eufrásia era uma figura volumosa, de gestos largos, carrapito oleoso e bigodeira negra, quase masculina. Contava as coisas com grande minúcia, como se tivesse presenciado tudo, passo a passo, e de tempos a tempos lançava as mãos à cabeça e atroava os ares com lamúrias e gritos exaltados. Junto a ela, em semicírculo, um grupo numeroso de vizinhos inteirava-se da ocorrência. Alguns escutavam a mulher com a indiferença de quem já se habituara aos dramas do quotidiano. Outros, sorviam-lhe as palavras, indignavam-se com o que ouviam, davam opiniões. Mais afastado, um bando de rapazes ria e atirava pedras aos gatos, alheio às preocupações dos adultos.
Eufrásia chega-te aqui, mulher. Ora conta tu, ordenou-lhe o marido. Obedecendo ao chamamento, ela virou costas aos vizinhos e dirigiu-se ao inspector numa corridinha pesadona. Trazia um brilho voraz no olhar e vinha pronta a recomeçar a sua narrativa desde o princípio. Mas Vilaverde não precisava de uma nova versão daquele triste acontecimento e, para atalhar caminho, perguntou-lhe directamente, enquanto apagava o cigarro: vossemecê sabe quem foi? Eufrásia, que chegava ávida de atenção, estacou como se tivesse embatido numa parede. Mas depressa se recompôs, varreu a decepção do rosto e limpando as mãos ao avental, negou, com toda a veemência da sua voz esganiçada: eu não, Jesus, credo! Se eu soubesse quem era matava-a. Eu desgraçava-me, mas matava-a com estas mãos, prometeu, mostrando as mãos vermelhas e rudes, de dedos sapudos, muito abertos. Fazer isto ao santinho... Ai, valha-me Deus, Virgem Santa... Aqui na rua não há gente dessa, não senhor!» In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.

Cortesia de PortoEditora/JDACT