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O
Mistério da Foz
«(…)
O inspector Vilaverde conduziu o cavalo, a passo, pela Rua de Santa Catarina e quando
chegou à casa vinte e oito desmontou, sem pressas. Juntara-se ali uma pequena multidão
atraída pela desgraça e ele ordenou ao cabo de polícia que dispersasse a gente
que rodeava o cadáver. Era um recém-nascido, parecia de tempo e a sua carinha inocente
e engelhada, estava aterradoramente lívida. O inspector pôs-se de cócoras e esteve
alguns segundos a observar o solo, como um camponês que meditasse sobre as duras
incertezas dos seus torrões. Depois, pegou com cuidado naquele corpo pouco maior
do que a sua mão e com um dedo indicador ergueu-lhe o queixinho, vencendo a rigidez
da nuca. Havia uma marca avermelhada em redor do pescoço que sugeria um estrangulamento.
Aquela pobre alminha nascera viva e fora assassinada aos primeiros respiros. E,
pior ainda, as várias equimoses indicavam que tinha sido batida ou, pelo menos,
atirada violentamente para aquele pátio.
Mateus
Vilaverde ergueu-se devagar com um esgar de repulsa na cara. Era um homem relativamente
magro, de corpo flexível e bastante mais alto do que os circundantes, e talvez por
isso parecesse que não mais parava de se erguer. O cabelo, curto e negro,
reforçava-lhe o ar descrente e a tristeza atormentada no olhar. Usava o uniforme
de tenente da Guarda Real de Polícia, casaca azul, calça branca e bota alta, que
complementava com um chapéu claro, de aba larga. Uma faixa de algodão, de um vermelho
pálido, já desbotado, cingia-lhe a cintura e, sobre ela, um cinto de cabedal de
onde pendia uma pistola. Acendeu um cigarro, que arrumou displicentemente a um canto
da boca, e esteve alguns segundos de pálpebras fechadas, virado para o sol da manhã.
Gostava de ficar assim com o fumo a subir-lhe pela cara e a causticar-lhe a pele,
enquanto deixava que a luz avermelhada lhe atravessasse as pálpebras e viesse aquecer-lhe
as ideias. Não precisava de ver mais nada para imaginar o que ali se passara.
Daí para a frente seria apenas o desfiar das perguntas de rotina: sabes quem
fez isto?, perguntou, descerrando os olhos e virando-se para o dono da casa.
O homem
fitou-o com ar assustado. Era uma criatura baixa e soprada, de barriga rotunda,
barba por fazer e aspecto muito sujo. Abriu os braços num misto de impotência e
de ignorância, e respondeu: não, senhor. Eu cá não sei, meu senhor. Pensa bem...
Não viste gente por aqui? Não ouviste barulhos? O homem encolheu os ombros e oscilou
a cabeça de um lado para o outro, como se negasse, mas confidenciou que ouvira qualquer
coisa no quintal, um baque, um ruído, uma restolhada, mas não ligara. Só há
pouco é que vimos o santinho aqui no chão. A Eufrásia estava à minha beira, disse,
indicando a mulher. Eufrásia era uma figura volumosa, de gestos largos, carrapito
oleoso e bigodeira negra, quase masculina. Contava as coisas com grande minúcia,
como se tivesse presenciado tudo, passo a passo, e de tempos a tempos lançava as
mãos à cabeça e atroava os ares com lamúrias e gritos exaltados. Junto a ela, em
semicírculo, um grupo numeroso de vizinhos inteirava-se da ocorrência. Alguns escutavam
a mulher com a indiferença de quem já se habituara aos dramas do quotidiano.
Outros, sorviam-lhe as palavras, indignavam-se com o que ouviam, davam
opiniões. Mais afastado, um bando de rapazes ria e atirava pedras aos gatos, alheio
às preocupações dos adultos.
Eufrásia
chega-te aqui, mulher. Ora conta tu, ordenou-lhe o marido. Obedecendo ao chamamento,
ela virou costas aos vizinhos e dirigiu-se ao inspector numa corridinha pesadona.
Trazia um brilho voraz no olhar e vinha pronta a recomeçar a sua narrativa desde
o princípio. Mas Vilaverde não precisava de uma nova versão daquele triste acontecimento
e, para atalhar caminho, perguntou-lhe directamente, enquanto apagava o cigarro:
vossemecê sabe quem foi? Eufrásia, que chegava ávida de atenção, estacou como se
tivesse embatido numa parede. Mas depressa se recompôs, varreu a decepção do
rosto e limpando as mãos ao avental, negou, com toda a veemência da sua voz esganiçada:
eu não, Jesus, credo! Se eu soubesse quem era matava-a. Eu desgraçava-me, mas matava-a
com estas mãos, prometeu, mostrando as mãos vermelhas e rudes, de dedos
sapudos, muito abertos. Fazer isto ao santinho... Ai, valha-me Deus, Virgem Santa...
Aqui na rua não há gente dessa, não senhor!» In João Pedro Marques, O Estranho
Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.
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