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«(…) Portanto oiço o ruído da
cadeira de baloiço e os diversos, estranhos, múltiplos, ínfimos barulhos da
casa, passinhos de carocha no silêncio, a agitação das traças, o ressonar dos
hóspedes, escuto a manhã que chega, ainda escuro, no rebuliço dos pássaros nos
caboucos vizinhos, enquanto aguardo que as mulheres trepem, encosta acima, das
discotecas de vodka marado do Bairro das Colónias e da Luciano Cordeiro, que
entrem na pensão tontas de vinho falso, que passem por mim sem me notarem
sequer, a fim de estender o braço para a última, para a mais bêbeda e sonolenta
e desprevenida de todas, a espalmar contra os relevos do balcão, lhe levantar
as lantejoilas da saia e lhe lavrar as coxas, à força, numa energia de arado, à
medida que a cadeira oscila no soalho, para trás e para a frente, a palhinha do
assento, até os meus arrancos terminarem ao mesmo tempo que os suspiros do pau,
ela alisar o vestido num som de cravos de papel que se mistura com o das asas
dos pombos, e eu me afastar, compondo a breguilha, pata enxotar o focinho do primeiro
cão vadio, surgido da noite a espiar da soleira, no jazigo da Residencial, as múmias
adormecidas dos hóspedes.
Nem cinemas nem piscina: apenas
um barraco em pedaços entre os pedaços de barraco que cercavam a antiga cidade
colonial dos mercadores de negros, e a minha mulher, trinta e um anos e sete
meses mais nova do que eu, trocada ao meu compadre por um bilhete de avião para
Lixboa: ficas com ela e a mobília e dás-me o papelinho da passagem. O meu
compadre, acocorado na almofada em feitio de bóia de aliviar as fístulas, mediu
a rapariga, hesitante, e depois fitou-me a mim, desconfiado: com tanta gente a
embarcar agora deve haver negócios do camandro na Europa. E acabou por dizer que
necessitava de três dias para se aconselhar com uma sobrinha que deitava cartas
e previa eclipses, e que entrementes, a fim de pesar o valor da transacção,
levava a minha esposa à experiência dado que Sei lá se ela sabe de costura, sei
1á se ela sabe cozinhar. Ainda não é maior nem tem doenças, animei-o eu, demorei
um tempo dos diabos a ensiná-la a obedecer, faz tudo o que lhe ordenares, passa
a roupa a ferro, conhece receitas indianas, ajuda-te a vender os manipansos,
aonde é que aos oitenta encontras gaja assim?
Ao cabo de três dias (chovia
embora não fizesse um calor por aí além, somente o êxtase taciturno dos
narcisos e os quinhentos milhões de mosquitos habituais a picarem-me as
orelhas) bati-lhe de manhãzinha cedo no zinco após chapinhar as sandálias por
duzentos metros de beco: pelo menos meia hora aos socos no metal ondulado até o
meu compadre gritar Quem é? dos fumos pantanosos do seu sono. Pelas frinchas
das placas suspeitava-se a escuridão do interior, repleta da bronquite das
galinhas e das pessoas que dormem, esmagadas pelo peso dos móveis. Piei Sou eu,
no momento em que a chuva aumentava de intensidade, o céu cheirava a enxofre e
a alho seco, e os pedregulhos dos primeiros trovões explodiam a rolar nos
telhados de palha. Abre a porta ao teu marido, comandou o meu compadre cuja voz
aumentava com o sifão do vento, e dali a pouco o trinco correu na bainha
empenada, a moça surgiu, descalça, com uma caçarola na mão, e lá estavam os quase
nenhuns trastes de sempre a ganharem sargaço pelos cantos, molduras de arame
com cromos de actrizes em fato de banho, as bugigangas de artesanato cafre que
ele impingia de café em café e de esplanada em esplanada, os galos de loiça, a
pia quebrada e o meu compadre a transpirar na came um odor de cabedais velhos, de
pupilas desfocadas pela miopia da febre: apanhei uma carga de paludismo lixada,
desde ontem que ando à rasca com os vómitos. E a minha mulher, calcule-se,
filha de comerciante branco, filha do dono da única cantina num quilómetro em
redor, ajudando-o com pachos frescos no peito e na testa, muito mais submissa e
solícita do que em qualquer ocasião o foi comigo, mesmo no inverno passado
quando me torci seis dias no colchão para espremer umas pedrinhas da bexiga, a
limpar-lhe maternalmente, a ele que podia ser seu bisavô, as gotas da pêra e do
bigode, grande vaca». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988,
Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.
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