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O corsário de Malabatr
«(…)
Como se chama a estriga? Brisa da Madrugada - responde, com um suspiro, afastando-se
com ela sob um coro de gargalhadas. Capitão, e as outras mulheres?, quer saber o
lugar-tenente, quando o riso sossega. Se calhar, também têm jóias escondidas...
Elas entregaram os cofres e as bolsas, diz Timoja com secura. O que fizeste aos
outros serviu de lição. Queremos ver o que escondem! As mulheres são nossas. Temos
esse direito! Tirem-lhes os véus! Dispam-lhes os panos!, bradam muitas vozes.
Sim! Sim! Queremos vê-las! Pêro pressente a inquietação de Timoja ao ouvir o clamor
dos piratas e compreende que o capitão procurara, com o entremez (de cariz
cómico) da matrona e os castigos de alguns mercadores, satisfazer os instintos dos
seus homens e gastar-lhes a fúria sem grandes custos em vidas, mas os corsários
ainda não estão fartos.
Senhoras, estais a ouvi-los?, diz
Timoja, dirigindo-se às seis mulheres. Tirai o vosso roubend e soltai o hyader, se não quereis que vo-los tirem
à força. Por entre protestos indignados dos prisioneiros, que os piratas contêm
a custo com pancadas e ameaçando-os com as armas, as seis mulheres soltam os mantos
e retiram os véus, baixando as cabeças para ocultar a vergonha. Duas moças persas
e uma árabe no melhor da sua juventude e beleza são um espectáculo capaz de tocar
qualquer coração, mesmo os acostumados a bater mais ao som de guerra que de amor.
Brilhantes como azeviche, as cabeleiras soltam-se dos barretes de tela de ouro que
sustêm o véu e envolvem-nas como um manto de seda, emoldurando os rostos muito brancos
das persas e moreno da árabe, onde se rasgam os mesmos olhos negros de um veludo
de Meca. As outras três mulheres, de idade madura e honesta condição, são decerto
mães ou governantas das donzelas, como o indicam os cuidados com que as rodeiam
e os olhares de escândalo e ódio lançados aos corsários.
Como são belas!, murmura Schaban,
contorcendo as cordas dos pulsos. Malditos sejam! Que lhes vão fazer? Não sei! Podem
querer vendê-las ou ficar com elas. Não sei! Como posso ajudá-las, assim atado de
pés e mãos? Não desesperes, que enquanto há vida há esperança, acode Pêro, voltando
a sua atenção para Timoja e as prisioneiras. Quereis o adorno do nariz da minha
Nurunnihar?, inquire com altivez a dama persa. Tomai-o e deixai a donzela cobrir
o rosto, se tendes alguma honra em vossos corações. As duas moças levam a mão à
argola de ouro muito bem lavrada, presa à asa do nariz, mas Timoja faz-lhes
sinal para a deixar no lugar. Cobri-vos, ordena-lhes e, apesar dos protestos dos
seus homens, as mulheres velam os rostos das donzelas e escondem a formosura dos
seus corpos no sudário dos mantos.
As mulheres são parte do saque, meu
capitão, desafia o piloto corsário. Quatro são velhas e as três moças não
chegam para todos. Pensais em vendê-las? O melhor quinhão para os mais bravos, protesta
o homem de tronco nu, coberto de escaras, avançando para o grupo. Tenho primazia
na escolha... Eu fui o primeiro na abordagem, grita um tomba-lobos, barrando-lhe
o passo, de sabre desembainhado. Ousas disputar-me o galardão? Não sois os únicos
interessados, rosna Marakkar, metendo-se entre ambos. As fêmeas devem ser
sorteadas, alvitra um mocetão que aguça o punhal contra a lâmina de uma espada curta.
Ou irem a leilão. Timoja que decida. Querem as donzelas para eles!, murmura Schaban.
Com os ânimos assim acesos, se Timoja recusar, arrisca-se a um motim.
Fizera-se
um silêncio pesado de ameaças, apenas ferido pelo choro das moças, no horror de
se verem disputadas como peças de um saque. Timoja ergue a mão para falar e todos
os olhos se pregam nele, os gestos tensos, à espera. Pêro admira o moço
corsário pelo poder que tem sobre esta chusma, curtida no medo e na morte, que lhe
obedece com uma fé cega, quando ele a conduz ao assalto de um navio ou povoação.
Combatestes bem e mostrastes como no Malabar ainda há homens livres que lutam para
libertar a sua nação do jugo dos usurpadores estrangeiros. Tendes direito a uma
parte do saque, sendo a outra parte destinada, como sabeis, a construir mais
navios e manter esquadras cada vez mais fortes para expulsar os mouros das nossas
terras. Por isso, jurámos que o nosso corso seria nobre, sem mortes desnecessárias
e sem violações ou ofensas a donzelas e mulheres honestas. No entanto, se persistis
em querer as prisioneiras, mesmo contra minha vontade e o nosso juramento, tereis
de lutar por elas, segundo as leis da nossa nação, lançando os vossos desafios a
quem as deseje defender. Como vai ser?» In Deana Barroqueiro, O Espião
de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do
Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-258-8.
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de Ésquilo/JDACT