jdact
«(…) Fernando I tinha a perfeita
noção de que aos poucos se começava a tornar cada vez maior em Portugal o fosso
que separava a nobreza laica ou eclesiástica do povo das cidades e dos
concelhos. Não ignorava que a generalidade dos portugueses vivia num constante
tumulto de mortes, roubos e assaltos; não desconhecia que muito poucos ou
nenhuns observavam as leis do reino, começando por ele próprio ao mandar recolher
vinho e mantimentos sem nunca os pagar. E como não era dado a cumprir as leis,
também não as fazia obedecer. Consentia que os infantes, seus irmãos, ou mesmo
os poderosos e os alcaides das vilas por ele doadas, assaltassem terras e
roubassem os lavradores, que violassem as viúvas e as solteiras sem qualquer
prejuízo ou castigo exemplar. Igualmente, pouco ou nada se importava com o
facto de fidalgos e prelados se apoderarem de bens alheios para os negociarem
de seguida; ou que exigissem às vilas por onde passavam a venda das novidades
abaixo do preço real; ou que se assenhoreassem, mesmo à força bruta, do recheio
de casas e adegas. Eram estes, infantes, alcaides, fidalgos, prelados, que
dispunham do poder de colocar nas vilas os juízes, almotacés e vereadores da
sua inteira confiança para depois recusarem o pagamento de impostos para a
construção de pontes e calçadas. Até mesmo clérigos compravam e vendiam
mercadorias sem a respectiva autorização legal, ameaçando com a excomunhão
todos os que não considerassem ser esse um privilégio que lhes cabia. Não constituía
assim qualquer estranheza que a maioria dos portugueses se queixasse
abundantemente dos corregedores do rei, que apenas julgavam e condenavam as
causas dos pequenos e pobres. Era, pois, neste lodo social e político, na
desonra e na ignomínia que assentava a base de governação de Fernando I,
juntando a ela a constante tentação de responder ao apelo dos vencidos da
guerra de Castela, refugiados aos milhares em Portugal, para conflituar com o
país vizinho, sob a promessa de que o ajudariam a conquistar a respectiva
coroa. Ciente dos principais problemas que afectavam o país, inteirado do
clamor popular que um pouco por toda a parte se ia levantando contra a desordem
do Estado, o monarca julgava-se quase sempre na necessidade de saber o que
outros diziam dele e da sua governação, mesmo que esses outros pertencessem à
nobreza laica ou à eclesiástica. Foi o caso, nesse dia.
Ao entrar no Paço, menos de meia
hora depois de convocado, Afonso Peres Sousa foi imediatamente conduzido aos
aposentos reais, onde o soberano se encontrava a descansar da jornada que
empreendera por vários dias à região de Além-Tejo. Estava deitado sobre a cama,
vestido e calçado ainda, com a cabeça apoiada no regaço da meia-irmã, a infanta
Beatriz, filha de Pedro e de Inês Castro, por quem ele tinha, aliás, uma afeição
especial desde os tempos de infância. Contai lá como foi esse casamento, pediu o
rei Fernando, logo que o fidalgo entrou na câmara.
Aconselhado a sentar-se numa
cadeira em frente ao leito, Afonso Peres Sousa respirou fundo, passando a
descrever cronologicamente todos os passos que dera, desde a sua chegada a
Barcelos até ao regresso a Lisboa. Longos minutos passados, já cansado de ouvir
o que menos lhe importava, Fernando I interrompeu abruptamente o jovem e disse:
não estou interessado em conhecer os detalhes da vossa viagem, se fostes ou não
assaltado pelo caminho, se pernoitastes ao ar livre ou se vos hospedastes
nalgum convento; o que eu quero saber antes de tudo é se ouvistes alguma
conversa ao conde ou aos convidados sobre a situação política do país ou sobre
a minha própria governação. Depois sim, depois podeis falar-me de tudo, até
mesmo da sobrinha do senhor João Afonso Telo, que, ao que me dizem, é muito
bela de rosto e de corpo». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina
do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
Cortesia de OdoLivro/JDACT