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Carlos
Cabral
«(…) Após alguns meses de
observação dos esforços dos invasores para se manterem à superfície no enclave
do Porto, Carlos Cabral decidiu surpreendentemente juntar-se ao Batalhão
Académico ou a outra das unidades militares que defendiam a cidade dos ataques absolutistas.
Fê-lo contra a opinião quase unânime de amigos e familiares: vais meter-te na
boca do lobo, Carlos. Acho que não, meu pai, teimou ele. Ao contrário do que parece,
os liberais não estão condenados. Pensa bem, rapaz, insistiu o pai, muito apreensivo.
O Porto está sitiado há meses. Eles têm falta de mantimentos, de pólvora e de
munições. Vais meter-te na boca do lobo, digo-to eu. Mas Carlos Cabral era um
incurável obstinado e em Fevereiro de 1833 pôs-se à frente de um pequeno grupo
de voluntários que queriam juntar-se aos combatentes liberais. Compraram um
barco de pesca na Figueira da Foz e rumaram em direcção ao Porto, entrando de
noite, de vela arreada e em rigoroso silêncio, pela foz do Douro. Contudo, o
chapinhar dos remos na água despertou as sentinelas miguelistas. A noite de lua
nova iluminou-se de repente com foguetes lançados da margem sul e os
miguelistas romperam fogo sobre a embarcação. Uma bala de canhão caiu à proa do
pequeno barco, levantando um cachão de água que encharcou os ocupantes e lançou
o pânico entre eles. Vários remadores largaram os remos numa aflição desorientada
e um deles atirou-se ao rio.
no Lordelo, tinham levantado o Ninguém
foge, todos remam, todos remam, bradou Carlos, que ia ao leme e marcava a cadência
da remada. Nesse momento, as baterias da margem norte abriram fogo, respondendo
aos miguelistas, e graças aos clarões que rasgavam o breu da noite, e aos chamamentos
dos populares que os acompanhavam da margem, Carlos conseguiu aportar à
Cantareira sob os vivas dos soldados liberais. Apesar da perícia e rapidez da
sua manobra, dois dos voluntários tinham morrido e havia vários feridos, entre
os quais ele próprio, atingido superficialmente numa perna e, e do sangue-frio
que demonstrara debaixo de fogo, e muitos amigos dos seus tempos de Coimbra
vieram vê-lo ao hospital para lhe darem as boas-vindas ao ninho liberal e
desejarem rápidas melhoras. Carlos sentiu-se, então, importante, inchado, cheio
de si. Essa seria, porém, a sua única façanha militar, pois permaneceu o resto da
guerra no mais gravemente, na zona do cotovelo. A dor era a tal ponto
lancinante que nem chegou a perceber que o aclamavam como herói. Durante dias
falou-se no Porto da sua coragem Porto, mas não chegou a combater. A
recuperação do cotovelo foi demorada e não inteiramente bem-sucedida, nunca
mais conseguiu a extensão completa no braço direito, e quando terminou a longa
convalescença já os miguelistas, derrotados no Lordelo, tinham levantado o
cerco à cidade. O principal teatro de guerra rumara para o sul, mas Carlos não
o acompanhou: manteve-se na guarnição do Porto.
Se a estada na cidade não lhe
garantiu a glória militar, permitiu-lhe, ainda assim, reatar antigos laços das tertúlias
coimbrãs e adubar novas relações sociais. Foi durante esse período que se tornou
amigo de João Lobo Sabrosa, um homem um tanto mais velho, que se exilara
durante anos em Londres e com quem partilhava o gosto pelo jogo, Carlos
assumira a opção liberal no momento certo, arriscara a vida para entrar na
cidade, mas encontrava-se agora do lado dos previsíveis vencedores, o que, no
futuro, lhe abriria certamente muitas portas.
No fim do conflito, herdou uma
confortável posição económica devido à morte quase em simultâneo do pai e de um
tio sem filhos que lhe deixou o muito que possuía. Dos imóveis, conservou apenas
a casa na Serra de Aire e desfez-se do resto. As propriedades que tinham boas
terras de semeadura, bons pomares de caroço, abundância de água, grandes hortas
e olivais, venderam-se facilmente. A Quinta do Lírio, com a sua casa nobre e a
ermida, também foi depressa, e rendeu bom dinheiro. Outras terras foram mais
difíceis de passar, mas acabaram por se vender, quando Carlos já estava em
Lisboa à procura de oportunidades financeiras e políticas. Rápido a detectar e
a aproveitar os bons negócios, suficientemente novo e endinheirado para
arriscar, investiu em actividades muito lucrativas, mas pouco nobres, como a
agiotagem, por exemplo». In João Pedro Marques, Os Dias da Febre,
Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-098-5.
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