«(…) O cardeal Sadoleto sorriu de
escárnio, fez uma curta pausa, meneou a cabeça várias vezes e questionou-o
sobre o sentido exacto daquela frase. Foi isso mesmo, monsenhor, estive com ela
sim, mas por pouco tempo. Mas introduzistes o membro erecto no corpo dela, não
foi? Foi, respondeu, quase a chorar. Até vos satisfazerdes... Sim, confessou ainda,
num tom sussurrado, após demorados instantes. O velho cardeal levantou-se da
cadeira, benzeu-se, Em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, rodopiou sobre si mesmo com os olhos virados
ao Céu, e de seguida, com o dedo apontado na direcção de Petrini, que entretanto
se ajoelhara a seus pés, de mãos postas, proclamou: pecastes, meu filho,
pecastes! Pequei sim, monsenhor, e por isso estou aqui a rogar a salvação da minha
alma. E tendes dinheiro? Tenho, respondeu ele de imediato, já com a voz mais
firme. Sem mais palavras, o confessor voltou-se para o confesso, fez-lhe um gesto
com a mão anelada para que se mantivesse de joelhos e, sempre em silêncio, saiu
da sala. Mas não demorou. Trago aqui a tarifa da chancelaria apostólica da
nossa cúria, proclamou o cardeal secretário, elevando ao alto, e antes de
regressar à cadeira, três folhas de pergaminho que fora buscar à antecâmara do
Papa. É a lista com a venda de indulgências concebida pelo Santo Padre e aprovada
pelo consistório. Abanando várias vezes a cabeça, Petrini foi concordando. Como
sabeis, a lista ainda não entrou oficialmente em vigor e, quando entrar,
competirá ao bondoso monge dominicano Johannes Tietzel fazer uso dela, pô-la em
prática...
Eu sei, garantiu o outro. Pois
bem, meu filho, dado que os delitos que cometestes são muitos e muito graves,
deveis desde já dar o exemplo, comprando à chancelaria o perdão pelos vossos
crimes. E quanto me custa isso? O clérigo confessor olhou em silêncio para a
lista, acompanhou a leitura com a ponta de um dedo até se deter no artigo
correspondente a um dos pecados cometidos por Petrini. E então leu em voz alta:
Todo o
eclesiástico que incorrer em pecado carnal, quer seja com freiras, com primas,
sobrinhas ou afilhadas, ou enfim com qualquer outra mulher, será absolvido
mediante o preço de sessenta e sete libras e doze soldos.
Aqui tendes o primeiro!,
proclamou Sadoleto, antes de continuar a pesquisa, sempre sorridente. E aqui
está o outro, quase gritou, de tanto entusiasmo.
Pelo assassinato de um irmão, de uma irmã, do pai ou da mãe o
praticante pagará dezassete libras e quinze soldos.
De seguida, o confessor
semicerrou os olhos, fixou-os no tecto do aposento em estado de pura abstracção,
fez as contas de cabeça, enganou-se várias vezes e, finalmente, exclamou
triunfante: são oitenta e quatro libras e vinte e sete soldos! É este o
valor que tendes de pagar à chancelaria apostólica de Sua Santidade. Sim,
monsenhor, concordou o bispo, levando de imediato a mão à bolsa escondida sob
as suas vestes. Uma vez liquidada a dívida, que resgatou o eclesiasta dos
pecados cometidos, Francesco soergueu-se, esfregou os joelhos para os aliviar
da dor, abraçou emocionado o velho cardeal, deu-lhe um beijo na face e prometeu,
num tom de voz esforçadamente perturbado, que jamais voltaria a ofender a Deus
ou a desprezar os mandamentos da Santa Madre Igreja. E juntos, enfim, como dois
irmãos do pecado à descoberta dos caminhos da redenção, oraram em coro um Pater noster.
Agora ide em sossego, meu filho.
Ide na santa paz de Deus, já limpo de espírito e das impurezas demoníacas. Que
o Senhor vos ilumine, pois. Aménela de Sant’Angelo
a ler as Escrituras e a rezar a Deus, e quando não lia nem rezava deslocava-se às
vielas imundas e fétidas da cidade ao encont, respondeu o outro. E benzeu-se. No mês que se seguiu, Francesco Petrini revelou-se um bispo exemplar, um eclesiasta devotado apenas à Igreja, ao Altíssimo e ao Papa. Passava horas numa capro dos pobres e dos mendigos para
os confortar ou lhes fornecer alimentos. A tamanho fervor a Deus Pai
Todo-Poderoso e a tanta devoção aos outros, sobretudo aos mais desfavorecidos,
ninguém ficava indiferente». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus,
Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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