quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «… finalmente, exclamou triunfante: são oitenta e quatro libras e vinte e sete soldos! É este o valor que tendes de pagar à chancelaria…»

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«(…) O cardeal Sadoleto sorriu de escárnio, fez uma curta pausa, meneou a cabeça várias vezes e questionou-o sobre o sentido exacto daquela frase. Foi isso mesmo, monsenhor, estive com ela sim, mas por pouco tempo. Mas introduzistes o membro erecto no corpo dela, não foi? Foi, respondeu, quase a chorar. Até vos satisfazerdes... Sim, confessou ainda, num tom sussurrado, após demorados instantes. O velho cardeal levantou-se da cadeira, benzeu-se, Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, rodopiou sobre si mesmo com os olhos virados ao Céu, e de seguida, com o dedo apontado na direcção de Petrini, que entretanto se ajoelhara a seus pés, de mãos postas, proclamou: pecastes, meu filho, pecastes! Pequei sim, monsenhor, e por isso estou aqui a rogar a salvação da minha alma. E tendes dinheiro? Tenho, respondeu ele de imediato, já com a voz mais firme. Sem mais palavras, o confessor voltou-se para o confesso, fez-lhe um gesto com a mão anelada para que se mantivesse de joelhos e, sempre em silêncio, saiu da sala. Mas não demorou. Trago aqui a tarifa da chancelaria apostólica da nossa cúria, proclamou o cardeal secretário, elevando ao alto, e antes de regressar à cadeira, três folhas de pergaminho que fora buscar à antecâmara do Papa. É a lista com a venda de indulgências concebida pelo Santo Padre e aprovada pelo consistório. Abanando várias vezes a cabeça, Petrini foi concordando. Como sabeis, a lista ainda não entrou oficialmente em vigor e, quando entrar, competirá ao bondoso monge dominicano Johannes Tietzel fazer uso dela, pô-la em prática...
Eu sei, garantiu o outro. Pois bem, meu filho, dado que os delitos que cometestes são muitos e muito graves, deveis desde já dar o exemplo, comprando à chancelaria o perdão pelos vossos crimes. E quanto me custa isso? O clérigo confessor olhou em silêncio para a lista, acompanhou a leitura com a ponta de um dedo até se deter no artigo correspondente a um dos pecados cometidos por Petrini. E então leu em voz alta:

Todo o eclesiástico que incorrer em pecado carnal, quer seja com freiras, com primas, sobrinhas ou afilhadas, ou enfim com qualquer outra mulher, será absolvido mediante o preço de sessenta e sete libras e doze soldos.

Aqui tendes o primeiro!, proclamou Sadoleto, antes de continuar a pesquisa, sempre sorridente. E aqui está o outro, quase gritou, de tanto entusiasmo.

Pelo assassinato de um irmão, de uma irmã, do pai ou da mãe o praticante pagará dezassete libras e quinze soldos.

De seguida, o confessor semicerrou os olhos, fixou-os no tecto do aposento em estado de pura abstracção, fez as contas de cabeça, enganou-se várias vezes e, finalmente, exclamou triunfante: são oitenta e quatro libras e vinte e sete soldos! É este o valor que tendes de pagar à chancelaria apostólica de Sua Santidade. Sim, monsenhor, concordou o bispo, levando de imediato a mão à bolsa escondida sob as suas vestes. Uma vez liquidada a dívida, que resgatou o eclesiasta dos pecados cometidos, Francesco soergueu-se, esfregou os joelhos para os aliviar da dor, abraçou emocionado o velho cardeal, deu-lhe um beijo na face e prometeu, num tom de voz esforçadamente perturbado, que jamais voltaria a ofender a Deus ou a desprezar os mandamentos da Santa Madre Igreja. E juntos, enfim, como dois irmãos do pecado à descoberta dos caminhos da redenção, oraram em coro um Pater noster.
Agora ide em sossego, meu filho. Ide na santa paz de Deus, já limpo de espírito e das impurezas demoníacas. Que o Senhor vos ilumine, pois. Aménela de Sant’Angelo a ler as Escrituras e a rezar a Deus, e quando não lia nem rezava deslocava-se às vielas imundas e fétidas da cidade ao encont, respondeu o outro. E benzeu-se. No mês que se seguiu, Francesco Petrini revelou-se um bispo exemplar, um eclesiasta devotado apenas à Igreja, ao Altíssimo e ao Papa. Passava horas numa capro dos pobres e dos mendigos para os confortar ou lhes fornecer alimentos. A tamanho fervor a Deus Pai Todo-Poderoso e a tanta devoção aos outros, sobretudo aos mais desfavorecidos, ninguém ficava indiferente». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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