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Coimbra.
Julho de 1117
«(…) Por mais anos que Mem
vivesse, nunca iria esquecer aquele momento. Os joelhos falharam-lhe, viu a
cabeça do pai a voar, cortada pela violência do golpe dado pelo monstro. Um
jacto de sangue espirrou e o corpo mole do pai, já sem vida, tombou para o
lado, enquanto Mem sentia uma dor violenta no peito, uma dor que não o
abandonara ainda horas depois. O medo de morrer impedira-o de gritar. Ficara em
silêncio, cerrando os dentes, pois, se fizesse algum ruído, o carrasco vestido de
branco, a poucos metros, teria ouvido. Viu-o cirandar de um lado para o outro,
procurando mais doentes, e depois dar meia-volta e desaparecer. Ainda ouviu
berros, mais longe, até que tudo caiu no mais sinistro silêncio. Não se ouvia um
gemido, um lamento de um moribundo. Aquele fantasma sanguinário matara todos os
doentes, mais de trinta, em pouco tempo, como se fosse uma praga letal que ceifava
vidas, idêntica às das histórias bíblicas que o pai lhe contava.
Durante horas, Mem permaneceu
totalmente paralisado de choque e pavor, e foi só quando o Sol já ia bem alto
que se aproximou do cadáver do pai. Contraindo-se em espasmos, viu a cabeça afastada
do corpo, o sangue escuro espalhado na terra e não conseguiu avançar. Desatou a
chorar. A única pessoa de quem gostava estava morta. De um momento para o outro,
quando nada o fazia prever, aparecera um demónio branco que o degolara. Mem não
sabia o que fazer. Estava nu, nem se lembrava onde entrara no rio e largara a
roupa, e não queria deixar o pai ali, para ser roído pelos bichos, a apodrecer ao
sol. Mas também não tinha forças para o enterrar, nem nada com que fazer um fogo
para o cremar. Era apenas uma criança de doze anos, não estava preparado para
aquela provação, e limitou-se a ficar ali, ajoelhado, as lágrimas
escorrendo-lhe pela cara.
A dada altura, o mundo escureceu,
e ele deduziu que era o que acontecia quando morria alguém de quem gostávamos
muito. Aquilo era mesmo estranho, parecia que estava a anoitecer a meio do dia.
Então, Mem olhou em volta e viu melhor: o que se passava não era dentro dele,
mas sim fora dele. Ergueu os olhos para o Sol e notou que ele desaparecera
atrás de uma bola castanha, escurecendo o dia. E ao lado, no céu, existiam
estrelas. Seria um milagre? Deus e Alá a tirarem a luz ao mundo? Mem estava
perplexo. O pai nunca lhe falara em nada assim. De repente, ouviu um barulho,
alguém a aproximar-se. Era uma mulher já envelhecida, com a cara cheia de rugas
e verrugas. Feia, estava vestida de preto, com um capuz da mesma cor a
cobrir-lhe a cabeça. Contudo, não parecia triste ou zangada, apenas curiosa. Ao
vê-lo, acercou-se, apoiada no seu cajado. Reparou no corpo e na cabeça
degolada, e suspirou. Sois cristão ou árabe?, perguntou». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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