«(…) Desejava que nada faltasse
aos visitantes, que fossem atendidos com alardo, glória e emoção; mas também
queria que os organizadores do préstito soubessem gerir os respectivos gastos
com parcimónia, alguma inteligência e muita imaginação. Chegada pois a hora, não
esqueceu o conselho que lhe fora dado anos antes pelo pai quando, ainda muito
jovem, subiu ao cardinalato: gasta
mais dinheiro na manutenção de um estábulo bem montado e criados de classe
superior do que em pompa e circunstância. Ora, talvez por isso, no dia catorze de Fevereiro, durante uma
reunião do consistório, constituído por vinte e cinco cardeais, alguns muito
jovens, o chefe da cristandade foi claro nos seus objectivos:
Cabe-nos receber a comitiva do
bondoso Manuel, piíssimo rei de Portugal, com o testemunho da nossa infinita
gratidão, a nossa fé em Cristo e em Deus Pai Todo-Poderoso, mas devemos ser
contidos nas despesas do programa. As libras estão muito caras e a cúria
precisa delas.
Nesse conclave, destinado
praticamente à discussão dos principais aspectos relativos aos festejos, o Papa
decidiu nomear um bispo de sua confiança, Francesco Petrini, para dirigir o
grupo, entretanto já formado, de acompanhamento da realização das cerimónias
protocolares, nas suas vertentes religiosa e profana. Francesco Petrini, de
vinte e nove anos, era reconhecido como um dos clérigos mais espertos e crentes
do governo da Santa Sé; mas era igualmente tido como um dos maiores pecadores
daquele conselho de ministros do culto. Além de libertino, corrupto, e
malfeitor, o bispo era ainda assassino. Dois meses antes de o Papa o escolher para
orientar o grupo de trabalho, que incluía mais de duas dezenas de romanos e
cinco portugueses, Petrini matou o pai a golpes de machado só por ele o ter
visto a espancar e a roubar um comerciante do bairro onde morava, depois de lhe
violar a filha. O assassínio causou na altura um enorme alvoroço entre a
vizinhança e o autor, temendo o castigo de Deus, ou, pior ainda, qualquer acto
de vindicta por parte de familiares das vítimas, correu à pressa a refugiar-se
no castelo de Sant’Angelo, para aí, a coberto do poder imune dos hábitos
talares, pedir o perdão ao Sumo Pontífice por interposto eclesiástico da cúria
romana.
Que fizestes, meu filho!?,
perguntou-lhe o cardeal Sadoleto, um dos mais fiéis secretários do Papa, depois
de Petrini falar da perseguição a que estava sujeito por parte dos moradores do
bairro. Matei sem querer o meu extremoso pai por me ter acusado injustamente, à
frente de populares, de violar a filha de um comerciante, amigo dele. Sentado
na poltrona do aposento, desconfortável e frio, o cardeal Sadoleto ia rodando
com a ponta dos dedos o anel de sinete da mão direita, ao mesmo tempo que ouvia
com aparente atenção os queixumes de Petrini. E foi só isso, meu filho?, voltou
a perguntar o outro, com um sorriso cínico no rosto. Matastes o vosso pai sem
querer, apenas por ele ter visto e criticado o cometimento de um grave pecado
que, bem sabeis, merece o castigo do Altíssimo?
Também me acusou, e de igual
maneira sem motivo, de roubar o comerciante, acrescentou o confesso, com os olhos
presos ao chão. Oh, Santo Deus!, exclamou o cardeal Sadoleto. Fez o sinal da
cruz sobre o rosto, com a cabeça curvada rezou em silêncio uma avé-maria, e só
então voltou a fazer outra pergunta. Que quereis agora, meu filho? O perdão de
Deus e a absolvição de Sua Santidade, monsenhor, respondeu sem pestanejar o
jovem bispo. Salodeto colocou a mão direita no peito, sobre o coração, e sempre
com a voz calma e pausada continuou interrogativo: matastes o vosso pai,
espancastes e roubastes o comerciante, violastes-lhe a filha e ainda assim vos
quereis livrar desses pecados de inspiração demoníaca? Não violei a mulher,
defendeu-se o bispo atabalhoadamente, alarmado com tantas acusações.
Não a violastes? Quereis dizer
que o vosso pai vos acusou de um crime que não cometestes?, prosseguiu
Sadoleto, antes de lhe transmitir um avisado conselho: peço que não vos esqueçais
de que o perjúrio é também um delito grave e condenável, que ofende a Deus
Nosso Senhor e à Santa Madre Igreja. Nesse momento Francesco Petrini voltou a
baixar os olhos, tentou a custo emocionar-se e, em tom sumido, concedeu: sim.
Estive com a mulher. E então? Foi só por pouco tempo, desculpou-se». In
José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN
978-989-555-364-8.
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