«(…) Que grandes filhos de rata parideira de mil ratos eram os seus
antigos-novos sogros. Que bastardos nojentos! Pois não é que, conhecedores dos
títulos de legitimidade de direitos de que podia ele, El-Rei, dispor,
apressaram-se a promover a sua revogação, valendo-se do prestígio de que gozam
na Cúria Romana? Pois não obtiveram do papa a Inter coetera, bula
maldita pela qual lhe foram concedidas, como aos seus herdeiros e sucessores,
todas e cada uma das sobreditas terras e ilhas desconhecidas e até hoje por
seus emissários achadas para o futuro, as quais não estejam constituídas sob o
actual domínio temporal de nenhuns príncipes cristãos!
E isto fez o papa, pela intriga desse maldito cardeal Carvajal, outro
bastardo! E fez o papa porque de todas as obras a mais agradável à divina
majestade é que a religião cristã seja exaltada e divulgada em toda a parte; que
a salvação da alma humana seja assegurada em todos os reinos e terras, e as
nações bárbaras sejam subjugadas e convertidas à fé católica. Foi o que ele
alegou, maldito papa, horrenda criatura... Ignorante de um povo que espantava
todos os povos que o viam chegar...
Donde vinhão,
quem erão, de que terra, que buscavão,
ou que partes do mar corrido tinhão?
- Irra, que maldição!
E o chifrudo do papa foi ainda de muito mais maus modos. E dispôs que
todas essas ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por
descobrir, para o Ocidente e o Meio-Dia, fazendo e construindo uma linha desde
o Pólo árctico, a saber do Setentrião, até ao Pólo antárctico, a saber Meio-Dia,
quer sejam terras firmes e ilhas encontradas e por encontrar em direcção à Índia,
ou em direcção a qualquer outra parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas
que vulgarmente são chamadas Açores, não
por açorarem, porque de facto não assanham, mas por nelas habitarem primeiro
muitos falconídeos de rapina diurna e que são ditos açores de nome, e Cabo
Verde, extrema conjunção de ilhas, julgando-se cabo por à primeira visão cuidar-se ser
uma ponta de terra a entrar pelo mar e julgando-se verde por mancha de
vegetação embusteira, que afinal as ilhas são de grande secura e esse verde era
meio fingido, a qual linha diste cem léguas para o Ocidente e o Meio-Dia, de
tal modo que todas as ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas e
por descobrir desde a sobredita linha para o Ocidente e o Meio-Dia não tenham
sido possuídas actualmente por outro rei ou príncipe cristão atá ao dia da
Natividade de Nosso Senhor Jesus Cristo, próximo pretérito, a partir do qual
começa o presente ano, quando foram pelos vossos emissários e capitães achadas
algumas ilhas antes ditas...
Era essa. Irra! A chamada bula da partição,
maldita
seja. E depois chegou outra, bula Eximiae devotionis que dizia que
privilégios e graças e liberdades e imunidades e isenções e faculdades e letras
e indultos, antes concedidos a El-Rei para as partes da Africa, da Guiné, da Mina
de Ouro e alhures que por concessão e doação apostólica eram dele. Irra! Eram agora também dadas como
vantagens a seus sogros, e herdeiros e sucessores... Bulas? Golpes vibrados na expansão marítima, de conquista e
comércio que, tão galhardamente, se iam levando por diante...
Pois ele, El-Rei, estava convicto e de propósito muito firme e de
vontades apontadas: emprenharia a filha deles, fundiria reinos, tomaria posses,
para usar, possuir e fruir todas e cada uma dessas graças, privilégios, isenções,
liberdades, faculdades, imunidades, letras e indultos! Assim a desgraçada fornicasse
e as suas ancas soubessem bulir a preceito e mesmo se o não soubessem a coisa
renderia... Irra!
In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
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