«(…) Primeiro, uma nuvem lilás toldava-lhe os olhos. Depois, grilhetas de
condenado ferravam-se-lhe no corpo. Tinha visões sobre visões, como se fosse de
súbito um iluminado pelas velas negras do demo. Por vezes, porém, surgia-lhe o
Santo Graal numa mancha de luz, ouvia de imediato uma ladainha: Aquel dia em que passou por ante os tindilhões
podia ser ora de meeo dia. E El-Rei sia aa mesa e seus ricos homees com elle,
eram mui viçosos de comer, mais nom pero pella graça do Santo Vaso, ca o Santo
Vaso nunca saia de corberic por mão de hoem, mais todos aquelles sem falha que
no paaço aventuroso comiam eram avondados tinha entom ante sí uu emcantador que
fazia tam grandes marivilhas que todos se marivilhavom.
E quando estendia as mãos para o tocar, para tocar o Santo Vaso, vinha
um furioso demónio de vestes negras e cor…s de marfim muito espetados e de
dentes amarelos pontiagudos e olhos vermelhos em raios de sangue, e
arrebatava-o. E, de súbito esse mesmo demónio era uma donzela e dizia-lhe em
voz meiga, branda, falsa: Nom vades,
ante vos direi o que me perguntastes, mas por tal peito que me nom descobrades.
Nom ajades medo, ca pois é cousa d'encobrir, eu vo-la encobrirei mui bem. Eu
amo tanto que se nom ouver a minha vontade que nom chegarei atras, ante me
matarei com minhas mãos.
Logo a falsa donzela se transformava e a visão era agora a de um padre
a despi-lo completo, e a açoitá-lo assim desnudo. Depois chegavam doze anjos
lindos a voar que lhe lambiam as feridas dos açoites. Outras vezes ainda, mas
mais raras, andava por um bosque e surgia-lhe um cervo branco de olhos muito meigos
de uma doçura aflitiva. Nesse sonho também andava nu e era nu que montava o
cervo branco, assim em pêlo sobre pêlo e corriam juntos pelo paraíso. O chão,
que ali era um tapete de relva e de flores, acabava por fender-se e
precipitá-los ambos, a ele e ao cervo unidos em pêlo, para as entranhas em
chamas da Terra, onde o diabo habita com as almas perdidas. E o cervo
revelava-se: era o próprio Demónio que, chegado ao Inferno, transformava-se e o
tomava por amante eterno.
Ainda outras vezes, o pesadelo passava-se num claustro. Na igreja,
havia uma mesa de prata e sobre ela o Vaso, e por cima dessa mesa de prata ou
altar, a lança que atravessara o peito do Senhor, com o ferro ao alto e o
sangue escorria da ponta, em gotas, para uma bacia também de prata e no tecto
dessa câmara uma enorme cruz pendia e ele ajoelhava perante dela, rezava com muitas
lágrimas e, ao erguer os olhos, a cruz era uma espada e a espada caia sobre
ele, degolando-o.
Mas, findos os pesadelos, vinha o pior. Despertava para logo perder a
razão e nem sabia quem era nem o que fazia. Lembrava-se vagamente de correr à
toa pelo palácio e deitar a mão ao mancebo mais desprotegido, à donzela mais
isolada que se deparasse. Nessas alturas, ficava dotado de força tremenda,
imbatível, ninguém o convencia nem conseguia opor-se-lhe. Arrastava quem quer
que fosse, dominava-o; trazia-o para o quarto e o que mais lhe fazia só tenuamente
suspeitava pelo estado em que lhe ficava o corpo, em especial certa zona dele,
e pelas manchas que deixava, enfim, pelo que concluía na manhã seguinte quando
despertava ainda muito exausto. Pobre Ataíde. Que mal lhe fizeram os pós que o cozinheiro
do rei nele experimentara».
In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
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