quinta-feira, 4 de julho de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «… a infeliz Maria, que agonizava na adiantada torre do castelo de Évora. A seu lado, cabisbaixo, abalado também pela visão da corrupção do corpo, mas com o sentido atento nos sobrinhos que o rodeavam, seguia João Afonso Telo»

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«(…) A Imaculada Conceição passara já e aguardava-se pela festa da encarnação do Senhor. Pedro, ladeado à direita pelo seu favorito, atravessava o extenso latifúndio, o encardido descampado das almas servas, que ia de Portel para Évora. Quando chegou à vista do Rossio da cidade, consciente já da condição da irmã, o príncipe isolou o seu séquito num arraial retirado e dirigiu-se na companhia de João Afonso Telo para o improvisado hospital que se fizera na torre albarrã do castelo. A irmã esperava-o moribunda, envolvida num lençol branco, de modo a ocultar o trabalho destrutivo das atrozes manchas negras da peste. Nos cantos da câmara ardiam braseiros de azinho para manter o calor vivo naquele frio dia de Dezembro; atiravam-lhe de quando em quando um braço seco de alecrim, que estalava ruidoso e acre, para disfarçar a necrose do ar. O príncipe não pôde deixar de lhe destapar a cara, afastando a ponta do lençol, para ao menos lhe espreitar com comiseração os olhos. A carne gangrenara e os tecidos da face mostravam-se corrompidos pela podridão. Os lábios desfaziam-se pelos cantos, deixando à mostra os dentes mal entalados nas gengivas purulentas e a língua seca, encortiçada e coberta duma crosta alta e branca. O atraente rosto da ainda jovem viuvinha de há um ano transformara-se numa chaga repelente do inferno. Mesmo os olhos, outrora límpidos e fundos, tinham agora envidraçado numa transparência suja e lodosa.
 - San... santa Maria val! Satanás, que da... dano. Nã vos vades a... assim - balbuciou o príncipe horrorizado. A irmã deu pouco acordo de si. Estava já a caminho do estertor final, imersa em entorpecimento inânime, que só a sua forte resistência natural conseguia ainda vencer. Respirava com dificuldade, ardendo em febre, com os pulmões desfeitos, a garganta entupida por um bubão, o corpo meio desconjuntado. Restou ao príncipe cobrir de novo cheio de repelência aquele rosto e abandonar o local. Quando descia a rua larga do comércio que levava da Sé à praça da cidade, lembrou-se que no magro espaço duma dúzia de anos perdera Constança, a primeira esposa, que lhe ensinara a volúpia do amor, Inês, a segunda, que o levara de visita nos braços ao Paraíso terreal e lhe parecia agora no luto violáceo da saudade um anjo divino, e Leonor, a irmãzinha que fora casar a Aragão e por lá se finara nas garras da grande epidemia. Agora, despedia-se da irmã mais velha, a infeliz Maria, que agonizava na adiantada torre do castelo de Évora. A seu lado, cabisbaixo, abalado também pela visão da corrupção do corpo, mas com o sentido atento nos sobrinhos que o rodeavam, seguia João Afonso Telo.
No dia seguinte partiu o comboio do príncipe a caminho de Santarém, onde estavam os infantes e a rainha. Na frente das carretas, ladeado por quatro pajens, rodava o churrião que viera de Toro com os quatro órfãos e que agora de novo se deitava com eles ao caminho. Levavam como destino Trás-os-Montes, por cima da linha do Douro, onde o tio Teles Meneses tinha o castelo de granito e taipa, os servos, os réditos e a família. Poucos dias depois, acabavam eles de chegar a Vila Real, morria em Évora a rainha-mãe de Castela. E de seguida, quando os eflúvios perfumados da Primavera se haviam já soltado e expandido, e tudo parecia querer gritar o seu apego à vida, falecia o rei de Portugal, o quarto Afonso, o matador da branca Inês. Rendia a alma, incapaz de resistir às pavorosas visões do seu passado recente. A terra estava florida e o céu azul, com uma hóstia feliz de luz a zumbir lá no cimo. Quando a Fortuna sacia por instantes a sua fome crua, o mundo folga ou volta à génese inicial, sem mácula nem castigo.

Uma das primeiras medidas que Pedro tomou como rei foi elevar em Lisboa a conde o seu primeiro camareiro, cuidando para a mesma hora e lugar um grande festim. A festividade de rua tinha tradição assente numa sociedade que não conhecia outra diversão e que via na pândega o ensejo da celebração comunial. Ganhara novo impulso no período dionisino, pois Isabel de Aragão, a velha senhora, falecida em 1336, quando Constança Manuel estava para vir para Portugal, dera início às folias do Pentecostes. Pusera no assunto mais que as lembranças da sua infância pirenaica, pois acreditara que o caso, ali à beira do oceano, era bastante para abrir uma nova idade no mundo. Pobres e ricos, gafos e sãos, servos e homens livres, sentavam-se à mesma mesa para repartir o pão e fazer passar o vaso de mão em mão. A folia medieval no seu sentido português é a comunhão do espírito em meio profano, quer dizer, a possibilidade de remir o mundo de supetão, à semelhança do raio que tudo acorda e ilumina. Assim se imaginava a descida do maravilhoso pentecostal nos romances arturianos e assim se empurrava avida em Portugal». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT