«(…) A Imaculada Conceição passara já e aguardava-se pela festa da
encarnação do Senhor. Pedro, ladeado à direita pelo seu favorito, atravessava o
extenso latifúndio, o encardido descampado das almas servas, que ia de Portel
para Évora. Quando chegou à vista do Rossio da cidade, consciente já da
condição da irmã, o príncipe isolou o seu séquito num arraial retirado e
dirigiu-se na companhia de João Afonso Telo para o improvisado hospital que se
fizera na torre albarrã do castelo. A irmã esperava-o moribunda, envolvida num
lençol branco, de modo a ocultar o trabalho destrutivo das atrozes manchas
negras da peste. Nos cantos da câmara ardiam braseiros de azinho para manter o calor
vivo naquele frio dia de Dezembro; atiravam-lhe de quando em quando um braço
seco de alecrim, que estalava ruidoso e acre, para disfarçar a necrose do ar. O
príncipe não pôde deixar de lhe destapar a cara, afastando a ponta do lençol, para
ao menos lhe espreitar com comiseração os olhos. A carne gangrenara e os
tecidos da face mostravam-se corrompidos pela podridão. Os lábios desfaziam-se
pelos cantos, deixando à mostra os dentes mal entalados nas gengivas purulentas
e a língua seca, encortiçada e coberta duma crosta alta e branca. O atraente
rosto da ainda jovem viuvinha de há um ano transformara-se numa chaga repelente
do inferno. Mesmo os olhos, outrora límpidos e fundos, tinham agora envidraçado
numa transparência suja e lodosa.
- San... santa Maria val!
Satanás, que da... dano. Nã vos vades a... assim - balbuciou o príncipe
horrorizado. A irmã deu pouco acordo de si. Estava já a caminho do estertor
final, imersa em entorpecimento inânime, que só a sua forte resistência natural
conseguia ainda vencer. Respirava com dificuldade, ardendo em febre, com os
pulmões desfeitos, a garganta entupida por um bubão, o corpo meio
desconjuntado. Restou ao príncipe cobrir de novo cheio de repelência aquele
rosto e abandonar o local. Quando descia a rua larga do comércio que levava da
Sé à praça da cidade, lembrou-se que no magro espaço duma dúzia de anos perdera
Constança,
a primeira esposa, que lhe ensinara a volúpia do amor, Inês, a segunda, que o
levara de visita nos braços ao Paraíso terreal e lhe parecia agora no luto
violáceo da saudade um anjo divino, e Leonor, a irmãzinha que fora casar a
Aragão e por lá se finara nas garras da grande epidemia. Agora, despedia-se da
irmã mais velha, a infeliz Maria, que agonizava na adiantada
torre do castelo de Évora. A seu lado, cabisbaixo, abalado também pela visão da
corrupção do corpo, mas com o sentido atento nos sobrinhos que o rodeavam,
seguia João Afonso Telo.
No dia seguinte partiu o comboio do príncipe a caminho de Santarém, onde
estavam os infantes e a rainha. Na frente das carretas, ladeado por quatro
pajens, rodava o churrião que viera de Toro com os quatro órfãos e que agora de
novo se deitava com eles ao caminho. Levavam como destino Trás-os-Montes, por
cima da linha do Douro, onde o tio Teles Meneses tinha o castelo de granito e
taipa, os servos, os réditos e a família. Poucos dias depois, acabavam eles de chegar
a Vila Real, morria em Évora a rainha-mãe de Castela. E de seguida, quando os
eflúvios perfumados da Primavera se haviam já soltado e expandido, e tudo parecia
querer gritar o seu apego à vida, falecia o rei de Portugal, o quarto Afonso, o matador da branca Inês. Rendia
a alma, incapaz de resistir às pavorosas visões do seu passado recente. A terra
estava florida e o céu azul, com uma hóstia feliz de luz a zumbir lá no cimo.
Quando a Fortuna sacia por instantes a sua fome crua, o mundo folga ou volta à
génese inicial, sem mácula nem castigo.
Uma das primeiras medidas que Pedro tomou como rei foi elevar em Lisboa
a conde o seu primeiro camareiro, cuidando para a mesma hora e lugar um grande
festim. A festividade de rua tinha tradição assente numa sociedade que não
conhecia outra diversão e que via na pândega o ensejo da celebração comunial.
Ganhara novo impulso no período dionisino, pois Isabel de Aragão, a velha senhora,
falecida em 1336, quando Constança
Manuel estava para vir para Portugal, dera início às folias do
Pentecostes. Pusera no assunto mais que as lembranças da sua infância
pirenaica, pois acreditara que o caso, ali à beira do oceano, era bastante para
abrir uma nova idade no mundo. Pobres e ricos, gafos e sãos, servos e homens
livres, sentavam-se à mesma mesa para repartir o pão e fazer passar o vaso de
mão em mão. A folia medieval no seu sentido português é a comunhão do espírito
em meio profano, quer dizer, a possibilidade de remir o mundo de supetão, à
semelhança do raio que tudo acorda e ilumina. Assim se imaginava a descida do
maravilhoso pentecostal nos romances arturianos e assim se empurrava avida em
Portugal». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições
Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
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