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«(…) O Hermes tinha acabado de nascer. As
palavras foram: … nasceu o menino da Marta. O Hermes tinha acabado de nascer. No
hospital, a Marta estava a descansar. E ninguém sabia como ficar feliz, mas a
felicidade era tão forte e crescia de dentro deles. Era como se tivessem uma
nascente de água no peito e a felicidade fosse essa água. Houve um milagre que
fez lágrimas transformarem-se em lágrimas. E tinham as mãos pousadas sobre o peito. Tinham as
pálpebras fechadas muito devagar sobre os olhos para sentirem a chuva branda
dessa felicidade que os cobria, inundava. Passou uma hora. O telefone tocou de novo.
Eu tinha acabado de morrer. A luz da manhã não sente os vidros limpos da janela
no momento em que os atravessa, pousando depois nas notas de piano que saem da
telefonia e flutuam por todo o ar da cozinha. A luz da manhã, pousada nas notas
de piano, detém-se, pontilhada, nos reflexos dos azulejos brancos da parede,
nos cantos da mesa revestidos por fórmica, nas gotas de água que se suspendem
no rebordo das panelas lavadas e viradas sobre o lava-loiças. A minha mulher
passa. Não repara na agitação invisível e luminosa de notas de piano que deixa
à sua passagem. Leve, passa com as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Sem
reparar, leva a claridade da manhã no rosto. Entra no corredor. A sua pele
brilha debaixo das sombras. Os seus passos abafados pela alcatifa não se
distinguem do silêncio. Aproxima-se da porta aberta da sala para sorrir,
olhando para o corpo pequeno da íris, sentada no tapete, rodeada por brinquedos
e pedaços partidos de brinquedos de plástico: pernas de bonecas. A minha mulher
fica assim durante um momento. A íris tem quase três anos e não sente o olhar
que a cobre e protege. Durante esse momento, a minha mulher não tem idade e não
sente o tamanho da casa da Maria, marcado por estalidos de móveis na distância:
o armário cheio de vestidos fora de moda, no quarto da Maria e do marido, ao
fundo do corredor; o divã de ferro e de molas que a minha mulher arma todas as
noites antes de dormir e que desarma ao acordar, na sala de jantar, a meio do
corredor; o frigorífico a esmarrir-se sob as notas que saem da telefonia, na
outra ponta do corredor. A íris nasceu quando, de mim, só já restavam as
conversas e as fotografias. A íris ainda não percebe todas as conversas e não
repara em fotografias de pessoas que não conhece. Tem os olhos azuis como o mar
dos postais de férias e tem os cabelos compridos a acabarem em canudos que lhe
escorrem sobre os ombros e sobre as costas. É uma linda criança selvagem. Em certos
dias, embala-se a correr com as suas pernas pequenas, lança-se despedida para
cima do sofá e ri-se. Agora, está quieta e brinca com as bonecas. Como em todas
as manhãs, acordou quando a mãe foi acordar a irmã para ir para a escola. À
mesa da cozinha, a Ana, meio a dormir, não respondia às perguntas que a íris
insistia em fazer. A Maria andava de um lado para o outro a procurar pequenas
coisas: lenços, chaves: e a colocá-las dentro da mala. A minha mulher apressava
a Ana, que não terminava de comer a papa. Em Julho, já não há escola, mas a
Maria continua a levá-la porque há uma professora que, por pouco dinheiro,
continua a tomar conta das crianças, a ensinar-lhes contas e a dar-lhes
trabalhos de casa. Como em todas as manhãs, a minha mulher pegou na íris ao
colo e aproximaram-se da janela para verem a Ana, de bata às riscas, a
afastar-se lá em baixo, na rua, a correr para acompanhar a mãe, e a deixar-se
ficar para trás, e a correr de novo, e a deixar-se ficar para trás, a correr e
a desaparecer com a mãe na curva do passeio. Agora, a íris está quieta e brinca
com as bonecas: … não queres papar? Porque é que não queres papar?, pergunta à
boneca, enquanto lhe encosta uma colher pequena na boca de borracha. Depois,
penteia-a. Depois, deita-a a dormir. Vê-a dormir durante um instante, e
acorda-a. Troca-lhe a roupa e tenta de novo dar-lhe de comer. A minha mulher
volta à cozinha. Nas chávenas penduradas dentro do armário, na fruteira, nos
talheres lavados, no cabo da vassoura, nos panos suspensos na parede do
lava-loiças, na caixa de fósforos com nódoas de gordura, na chaleira pousada
sobre o fogão apagado, os seus olhos reconhecem a paz da manhã. Abre a janela
e, depois de escolher algumas molas e uma peça de roupa do alguidar cheio,
inclina-se sobre o parapeito para estendê-la. E repete esses gestos. E, de cada
vez que se baixa para segurar umas calças do marido da Maria, ou uma blusa da
Maria, ou uma camisola interior das netas, é submersa por um pedaço da música
de piano que, com a força de uma brisa, enche a cozinha. E, de cada vez que se
inclina sobre o parapeito e puxa a corda para acertar uma mola, pensa que
Lisboa e o mundo são enormes. O seu tronco, lançado a partir da janela do
terceiro andar de um prédio de Benfica, sente um pouco daquilo que poderá ser a
experiência de voar. É neste instante que pensa no nosso filho Francisco, que
partiu ontem de madrugada para a maratona, para os Jogos Olímpicos, como se
partisse para uma ilusão. Esse pensamento esteve sempre por baixo de todos os
outros, como um lume de brasas que, por vezes, desperta numa chama. E,
primeiro, o orgulho: o nosso filho, o nosso menino: o peso de todas as
lembranças da ternura: e o nome impresso em jornais, importante. O nome.
Demos-lhe o meu nome para que o tornasse seu. Esse nome que foi meu e que agora
lhe pertence completamente. O nome e todas as pessoas que o pronunciam:
Francisco Lázaro. Depois, depois, o orgulho». In José Luís Peixoto, Cemitérios
de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal Editores, 2009, ISBN
978-972-564-823-0.
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