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A Tomada
de Ceuta
«(…)
Nun’Alvares desceu a estreitar nos braços o antigo companheiro de armas, e
divagando os dous em passeio, João I narrou ao amigo tudo o que havia acerca do
designio da empreza de Ceuta. Ouvio-o o condestavel serenamente a principio,
mas depois as lagrimas soltaram-se-lhe de entre as palpebras cansadas, e
proferiu, tremente a voz: pois eu vos digo que esse feito foi inspirado por
Deus! João I exultou com o parecer de Nun’Alvares e comoveu-se tambem. E os
dous entreolhando-se, sentiram a um tempo nos corações amigos a mesma saudade
pelos dias idos de gloria e ardor. Porém era necessario cuidar dos novos que tambem
almejavam glorioso futuro. E o condestavel, sempre bom, sempre leal,
recommendava ao rei: reuni conselho que eu serei comvosco. Separaram-se. O rei
e o infante Pedro volveram a Santarem e os dous outros infantes foram para
Evora, de onde haviam partido. Os infantes socegaram e razão tinham. Pois o pae
mandara trigosamente cortar madeira
para embarcações; Micer Carlos Pezagno, o almirante, teve o encargo de recrutar
mareantes, e Alfonso Furtado, o capitão, punha a postos toda a sua gente: patrões,
alcaides, arraes, pintitaes, comitres, besteiros, galeotes e marinheiros; João Alfonso
Azambuja dava ordem a Ruy Peres Alandroal, thesoureiro da moeda, para que as
fornalhas de fundição estivessem sempre a trabalhar, á uma; e o Gomide, escrivão
da puridade, e o ajudante Caldeira iam escrevendo a todos os Anadeis para que fizessem
seus alardos de besteiros e arricaveiros e mandassem relação das forças nos alcaizes, ou livros de revistas. A
azafama era grande nos preparativos da expedição, da qual se ignorava o destino.
Nas margens
do Tejo e do Douro, nas tercenas da Magdalena e de Villa Nova, os arcabouços
das galés e naus e galeotas em construcção arqueavam-se como costellas de esqueletos
monstruosos; os carpinteiros batiam a compasso os malhos; os engenhos dobadoyras aprestavam-se a lançar
á agua as embarcações já promptas; estrinqueiros
torciam e retorciam a cordoalha; enxerqueiras
preparavam carne e pescado para as armadas; accorriam a Lisboa as mesnadas da Beira,
da Extremadura e do Alemtejo, apresentando-se ao infante Pedro, que tinha a seu
cargo commandal’as e fazel’as embarcar na frota que organisava; e as do Minho e
Traz os-Montes eram trazidas pelo conde de Barcellos ao Porto, onde o infante Henrique,
auxiliado pelo senado, dirigia os preparativos fadigosos da expedição e em cuja
cidade Bento Fernandes e João Basto levantavam um grande numero de besteiros e galeotes.
Toda essa decisão de trabalho fora resultado do tal conselho que Nun’Alvares induzira
o rei a reunir. Tivera elle lugar em Torres Vedras.
Viera
o rei João I, de Cintra, e os infantes Henrique e Pedro chegaram de Tentugal. Approximava-se
o infante Henrique da villa e encontrando o pae, beijou-lhe a mão e pediu-lhe: Senhor,
quando formos em nossa sagrada expedição, que seja eu o primeiro que filhe terra,
vos peço. E accrescentara: quando vossa escada real for posta sobre os muros da
cidade, que eu seja aquelle que va primeiro por ella, que outro algu. E o pae, rindo,
retorquiu-lhe: em tempo proprio te darei resposta. E foram todos ao conselho: rei,
infantes, Nun’Alvares e os maioraes da corte. O condestavel dissera a João I que
apresentasse o negocio como feito já determinado, e socegava-o: fallai assim que
eu serei comvosco. E todos, crentes, ouviram, em antes da reuniao, missa do Espirito
Santo. Depois o rei fallou, fallou, allegando não querer guerrear christãos e só
almejar combater os infieis, em gracas a Jesus Senhor Nosso. Ouviam todos, silenciosos.
O rei, afinal, pediu conselho. O infante Duarte devia ser o primeiro a fallar; desistiu
comtudo em favor do condestavel, como se combinara. E este com o seu aspecto patriarchal,
grave, sereno, como uma visão do passado, alii mostrou na sua phrase suasoria toda
a importancia e justica da empreza. E terminando ajoelhara-se aos pes do rei, oferecendo-lhe
mais uma vez a sua espada gloriosa de cavalleiro. Todos se electrisaram ao ouvirem
o condestavel; alii haviam estado os bons veteranos de Valverde e Aljubarrota, escutando
a voz do cavalleiro-modelo, attentos, mas aquellas phrases suggestionadoras de
impetos bellicosos, João Gomes Silva, um dos antigos, enthusiasmado, encarou os
companheiros das lides passadas, em todos elles já as cans se destacavam, e gritou-lhes:
russos, além! Além, assim seja, apoiaram os outros. Os velhos de Aljubarrota,
os de cabellos brancos, os russos
tinham de ir levar os rapazes á conquista da gloria, pois não! Além! Além!, clamavam
todos, abraçando-se». In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Galant de bien ferre, Memória
Histórica, Typografia do Commercio do Porto, G 286, H5A53, Porto, 1894.
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