Caravaggio
Cortesia da fcg
Fr. Antónto das Chagas
(1631-1682)
«[...] mais do que ao nível humano e confessional, o autor exemplifica
numa carta como a mudança se processou nele ao nível criador. Com efeito,
passando ‘os dias tão sem pejo nas desenvolturas’ duma vida dissipada, pede-lhe
um amigo para glosar o mote:
Grande desgraça é o nascer,
porque se segue o pecar,
depois de pecar, morrer,
depois de morrer, penar.
Entregues as décimas pedidas, ‘ficaram tão abertas na lâmina da memória
as verdades daquela redondilha’, que o poeta se põe a meditar no mundo, ‘esse
soberbo monstro’. E chega à conclusão que tudo o que amara até ali é vão.
Assim, as penas do pavão, que outrora se lhe afiguravam ‘um céu de glória’,
parecem-lhe agora ‘um vivo inferno de penas’. À medida que vai descobrindo a
inanidade de todas as vaidades humanas, ‘confuso e tímido’, a princípio, abalado
e cheio de terror, depois, traduz em quatro sonetos o desengano que se apodera
dele. A brevidade irreversível do tempo é o fulcro essencial dessa revelação.
Se ele aniquila os templos, os colossos e os anfiteatros, que fará com os homens?
São exemplos pagãos (Polícrates, Hércules, Endimião...) que lhe acodem para
exprimir o nada de todas as grandezas. Então, desprezando o que poderia ainda
dar forças à presunção que o habita, recolhe-se ‘ao humilde traje de uma pobre
túnica’, em que se sente mais rico que Midas, mais ilustre que Faetonte, e mais
galhardo que o próprio Adónis, porque sabe, doravante, antepor ‘a salvação da
alma a outra qualquer conveniência da vida’. Memorial psicológico dum poeta, a
que até o uso dos pseudónimos Lidoro e Fábio confere um caráter decididamente
literário, não se vislumbra sequer nele o aspecto ascético e místico que tal
transformação viria a operar na sua personalidade.
Confrontando com uma nova mundividência de que ignora ainda todas as implicações,
faz o que todo o poeta faz duma nova experiência: versos. A renúncia total só
podia vir depois.
jdact
É um plano muito mais humano, embora num estilo ainda supinamente
barroco, que Fr. António das Chagas relara a Francisco de Sousa, antigo companheiro
de armas, as peripécias da sua estrada de Damasco: as leituras que motivam a
decisão de ingressar num convento, o regresso a Portugal com esse fim, as
delongas causadas pelo crime que cometera na mocidade, as recaídas no pecado,
e, finalmente, a perspectiva aberta dum asilo de salvação. [...] Exaltado embora,
o novo franciscano não tem ainda o radicalismo proselitista que se manifestará
nas “Cartas Espirituais”. Com efeito, ressalva ainda o desejo de grandeza e de
glória dos que, como o seu ilustre correspondente, não morreram para o século.
Indica ao amigo o paradeiro de grande parte dos seus escritos dizendo-lhe para
dispor deles à sua vontade. E, traço curioso pela insistência da adjectivação
(foi ‘benquisto’, ‘ditoso’, 'acariciado’), recorda com uma ponta de saudade ‘o
agrado universal, que em mim foi bênção’ [...] o frenesim gongórico atenua-se,
e vão rareando os trocadilhos, as bimembrações de frase, os paralelismos, os
conceitos. As imagens do quotidiano que Fr. António experimenta então são um
tanto canhestras excepto as que são reminiscências da vida militar ou da antiga
veia satírica (talvez mais saborosas pelo que têm de insólito, são expressões
como ‘ir-se a pólvora pela escorva’ ou ‘quebrar os focinhos’ aplicadas às experiências
de ordem espiritual).
[…]
O ardor místico que jorra em construções arrebatadas e em tentativas
esforçadas para dizer o indizível (como no uso frequente de superlativos absolutos
do tipo ‘Deus, mais que além de extraordinário’), deixa-nos páginas duma rara
beleza, quando, como diz Fr. António, lhe ‘chega a labareda’. Só uma imaginação
vigorosíssima poderia aclarar assim para outrem a sua vivência de Deus. Na sua
ascese singular, é ainda um poeta, mas um grande poeta, desta vez, que surge da franciscana miséria humana».
In Andrée Crabbé Rocha, FCG, Século XVII, Halp, 2005, A Epistolografia em Portugal.
2.ªed.; Lisboa: INCM, 1995.
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