domingo, 13 de outubro de 2024

Todas as Almas. Javier Marías. «Aquele que aqui conta o que viu e o que lhe aconteceu não é aquele que o viu e a quem aconteceu, nem o seu prolongamento nem a sua sombra nem o seu herdeiro nem o seu usurpador»

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«Dois dos três morreram desde que saí de Oxford, e isso faz-me pensar, supersticiosamente, que talvez tenham estado à espera de que eu chegasse e esgotasse o meu tempo ali para me darem a oportunidade de os conhecer e poder agora falar deles. É possível, portanto, e sempre supersticiosamente, que seja obrigado a falar deles. Não morreram senão quando deixámos de nos dar.

Pensamento não é apenas supersticioso, é também vaidoso. Mas para falar deles tenho de falar também de mim e da minha estada na cidade de Oxford. Mesmo que aquele que fala não seja o mesmo que lá esteve. Parece, mas não é o mesmo. Se a mim próprio me chamo eu ou se utilizo um nome que me tem acompanhado desde que nasci e pelo qual alguns me hão-de lembrar ou se conto coisas que coincidem com coisas que outros me atribuíram ou se chamo minha casa à casa que antes e depois foi ocupada por outros, mas que habitei durante dois anos, é só porque prefiro falar na primeira pessoa, não porque acredite que a faculdade da memória é suficiente para continuar a ser o mesmo em diferentes tempos e em diferentes espaços.

Aquele que aqui conta o que viu e o que lhe aconteceu não é aquele que o viu e a quem aconteceu, nem o seu prolongamento nem a sua sombra nem o seu herdeiro nem o seu usurpador. A minha casa tinha três andares e forma piramidal e nela passava muito tempo, dado que as minhas obrigações na cidade de Oxford eram praticamente nulas ou inexistentes. Com efeito, Oxford é, sem dúvida, uma das cidades do mundo onde menos se trabalha, e nela o facto de se estar revela-se muito mais decisivo que o de fazer ou até mesmo o de fingir.

Estar exige ali tanta concentração e paciência, e tanto esforço para lutar contra a letargia natural do espírito, que seria uma exigência desmesurada pretender que, além disso, os seus habitantes ainda se mostrassem activos, principalmente em público, apesar de alguns colegas costumarem fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do fingir.

Era o caso de Cromer-Blake e também do Inquisidor, também conhecido por Carniceiro ou Estripador, e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar. Mas quem negava todos os simulacros de agitação e dava corpo e verbo ao estatismo ou estabilidade do lugar era Will, o velho porteiro do edifício (a Institutio Tayloriana, assim chamada com pompa e em latim) onde eu costumava trabalhar em sossego e sem preocupações. Nunca vi um olhar tão limpo (certamente não na minha cidade, Madrid, onde não existem olhares limpos) quanto o daquele homem de quase noventa anos, pequeno e polido, invariavelmente vestido com uma espécie de macacão azul, a quem era permitido permanecer muitas manhãs na sua cabina envidraçada a dar os bons-dias aos professores à medida que iam entrando. Will não sabia, literalmente, em que dia vivia, e assim, sem que ninguém pudesse prever a data que escolhera e menos ainda saber o que determinava a sua escolha, passava todas as manhãs em anos diferentes, a viajar para trás e para a frente no tempo de acordo com a sua vontade ou, melhor dizendo, provavelmente à margem da sua vontade». In Javier Marías, Todas as Almas, Editora Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN 978-989-665-914-4.

 Cortesia de EMFontes/EAlfaguara/JDACT

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