sábado, 30 de junho de 2012

D. João II vs Colombo. José M. Garcia. Duas Estratégias divergentes na busca das Índias. «A proposta aqui apresentada era contrária à prática até então seguida em Portugal de proceder à circum-navegação de África, pois aconselhava os portugueses a dirigirem-se à Ásia, rumando directamente a ocidente. Esta ousada estratégia não foi adoptada pelas autoridades portuguesas»


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Texto de PieroVaglienti sobre Toscanelli
«E di causa e opera n'è principal cagione uno dottore in medicina, nostro fiorentino, el quale prima di strologia e di segnali de’cieli avendo in ciò molto perduto tempo, vidde e conobbe che non era sopra alla terra uomo che me’potese in ciò travaglisarsi con più suo comodità di tal viaggio fare e mettere in opera, che la Maestà de’re di Portogallo: e questo fu maesto Pagolo dal Pozzo Toscanelli, uomo singularissimo, el quale avvisò a uno nostro Fiorentino era in suo corte, nominato Bartolomeo Marchionne, di tal tratto. E lui ne fece avisato suo Maesta (...).
Tradução:
E de tal causa e obra foi principal ocasião um doutor em medicina, nosso concidadão florentino, o qual havendo primeiramente perdido assaz de tempo com a astrologia e os sinais do céu, viu e conheceu que não havia sobre a terra homem que se pudesse melhor disso trabalhar nem com mais comodidade sua tal viagem fazer e pôr em obra que a majestade del-rei de Portugal; e esse foi mestre Paulo dal Pozzo Toscanelli, homem singularíssimo, o qual avisou um nosso florentino que estava em sua corte, chamado Bartolomeu Marchione, de tal trato. E ele fez saber a sua majestade (...).

Bartolomeu Marchione veio para Portugal em inícios de 1470 e manteve estreitas relações com Florença pelo que nos poderemos perguntar se não teria sido ele quem trouxe em 1474 a carta de Toscanelli, sendo tal hipotético acto que teria levado a ficar recordado em Florença de uma forma vaga na sua associação com a ida dos portugueses à Índia. De outra forma não teria sido mencionado o seu nome através desta associação a Portugal e ao projecto das Índias, ainda que a observação de Vaglienti se revele de uma forma deturpada, pois não foi a proposta que preconizava Toscanelli a adoptada pelos reis portugueses.
A enorme importância histórica da carta de Toscanelli deriva não apenas do facto de ter sido o conhecimento do seu conteúdo que terá constituído o factor decisivo a contribuir para a génese do projecto de Colombo que o levaria à América, mas também porque permite perceber melhor a História dos Descobrimentos ao revelar que em 1474 se voltara a colocar em Portugal a questão de saber qual a melhor orientação a seguir no descobrimento de um caminho que pudesse levar os portugueses a chegar à Ásia das especiarias por via marítima.
A tese que defendia a opção por uma via ocidental para chegar à Asia tal como foi expressa na carta de Toscanelli sistematizava, e precisava noções de autores anteriores, algumas das quais já poderiam estar a ser equacionadas no tempo do infante Henrique.
Antes de continuar a problematizar os antecedentes e consequências da carta de Toscanelli escrita em Florença a 25 de Junho de 1474 convém apresentar a transcrição da sua parre inicial, acompanhada da respetiva tradução portuguesa.

Início da carta de Toscanelli de 25 de Junho de 1474
Ferdinando martini canonico vlixiponensi paulus phisicus salutem. De tua valitudine de gratia et familiaritate cum rege vestro generosissimo magnificentissimo principe iocundum mihi fuit intelligere.
[…]


Tradução completa:
A Fernando Martins, cónego de Lisboa, Paulo físico saúda. Foi-me grato inteirar-me de tua boa saúde e de estares no favor e na familiaridade do vosso rei, príncipe muito generoso e magnificentíssimo. Falei contigo em outras ocasiões acerca de um caminho mais rápido para chegar aos lugares da especiaria por navegação marítima do que aquele que fazeis pela Guiné. Agora pede-me o sereníssimo rei uma declaração ou, melhor, uma demonstração à vista para que inclusive os medianamente instruídos possam seguir e compreender esse caminho. E eu, ainda que saiba que isso se pode mostrar por uma representação esférica, tal como é o mundo, contudo, para facilitar a compreensão e também para aliviar o trabalho de ensinar esse caminho, decidi-me a declará-lo da forma como se fazem as cartas de marear. Envio portanto a sua majestade uma carta feita com as minhas mãos, na qual se marcam vossa costa e as ilhas de onde deveis começar a viagem sempre em direcção ao poente (...).

A proposta aqui apresentada era contrária à prática até então seguida em Portugal de proceder à circum-navegação de África, pois aconselhava os portugueses a dirigirem-se à Ásia, rumando directamente a ocidente. Esta ousada estratégia não foi adoptada pelas autoridades portuguesas, que preferiram continuar a seguir uma via oriental iniciada algumas décadas antes e que teve sucesso quase vinte e quatro anos depois de redigida esta carta». In José Manuel Garcia, D. João II vs Colombo, Duas Estratégias divergentes na busca das Índias, Quidnovi, 2012, Vila do Conde, ISBN 978-989-554-912-2.

Cortesia de Quidnovi/JDACT

Henrique VI. Rei Enfermo que sofreu Dramático Destino. «O filho do duque de York, Eduardo, não se demorou a assumir a chefia dos ‘Rosas Brancas’, manifestando a sua vontade de prosseguir na luta. Tanto mais que se sentia sustentado pela larga experiência de Warwick e apoiado, valiosamente, pelos condados do Sul»


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«As suas esperanças foram ali goradas. Em lugar de vitória com que contava, sofreu o desapontamento de uma humilhante derrota. Henrique foi mais runa vez capturado. No entanto, a rainha não desanimou. Persistente nos seus propósitos, recompôs-se rapidamente, oferecendo, de novo, batalha ao inimigo, nesse mesmo ano, já melhor preparada para a luta.
O êxito das suas armas, desta vez, ultrapassou-lhe as mais acalentadoras expectativas. Não só obtém a brilhante vitória de Wakefield, como deixa o duque de York morto no campo da liça. Era um adversário de respeito aniquilado para sempre. Nem assim mesmo a depauperante guerra interna terminou. O filho do duque de York, Eduardo, não se demorou a assumir a chefia dos ‘Rosas Brancas’, manifestando a sua vontade de prosseguir na luta. Tanto mais que se sentia sustentado pela larga experiência de Warwick e apoiado, valiosamente, pelos condados do Sul, que seguiam-lhe a causa com simpatia.
As suas hostes, impulsionadas pelo seu vigor e pela sua juventude entusiástica, marcham, quase sem resistência do contendor, sobre Londres. A capital acolhe-o calorosamente e Eduardo de York, ocupando-a, em Março de 1461, faz-se ali proclamar rei da nação, sob o nome de Eduardo IV.
A Europa assiste, então, a esta disputa singular de dois soberanos, ambos proclamados e com iguais direitos à coroa, procurando cada um deles aniquilar o outro. Margarida de Anjou, sendo forçada a admitir a realidade, não se conforma nem se rende a ela. O seu valoroso espírito, insubmisso mesmo perante o destino, rebelado, não quer domar-se às circunstâncias. E, ainda esse ano de 1461 não estava decorrido, já os dois partidos se enfrentavam, na batalha de Towton, cujo resultado de deploráveis efeitos, se apresentou desfavorável para as tropas da intrépida amazona..
Henrique VI teve a desgraça de cair, de novo, prisioneiro do rival e é expulso do reino para a Escócia. A mulher, mais expedita do que ele, forçada a fugir, procura asilo ,na França acolhedora. Em Inglaterra, o ambiente ,não é propiciário aos proscritos.
O rei da casa de Lancastre, débil e irresoluto, imbecilizado ainda mais pelas ,inúmeras atribulações que o têm massacrado, incapaz de uma reacção, não sabe nem pode tomar uma atitude conveniente, corajosa, que o dignifique aos olhos dos vassalos.
Pelo contrário, é Margarida, a rainha, quem chama a si o difícil encargo de, por todos os meios, fazer valer os seus direitos, antes, os direitos do filho, dado que o marido que lhe coubera em sorte, não passava de um desventurado ente inferiorizado por cruenta enfermidade e sem a indispensável envergadura para governar o país em tão desfavoráveis emergências. Ela tinha de arranjar energias por ambos.
Obtendo de Luís XI, que sucedera a Cados VII na coroa da França, um diminuto socorro e dispondo ainda de tropas em Inglaterra que a seguiriam nos riscos da campanha, Margarida sente-se impelida a tentar mais uma vez  a sorte das armas.
Mas, mais uma vez também, o azar a persegue, deixando-a em ultra precária posição». In Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.

Cortesia de Livraria Clássica Editora/JDACT

Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. António Quadros. «Sampaio Bruno, citando o neto do herói das Índias, abona-se, em todo o caso, nesses versos para culminar a sue tese de que ‘o sebastianismo coincide com o filosofismo’, visto que a paz anunciada surge vinculada à operação filosófica de ascender do erro»



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«Texto ambíguo, como todas as prognoses, o augúrio bandárrico ajustou-se ao restauracionismo temporalista, desde João de Castro a António Vieira, sobretudo porque a trova 88, anunciando que o ‘Encoberto’ teria um nome, permitiu a especulação exegética e propagandística. Todos quantos admitiram a referência temporal e imanentista das trovas leram ‘o seu nome é D. João’, mas a verdade é que, pelo lado judaico, só por evasiva criptonímica os judeus fiéis poderiam aceitar o nome de João como o nome do ‘Encoberto’, do ‘Príncipe da Paz Universal’. Os fiéis judeus prefeririam ler ‘D. Foão, etc.’
Aliás, escreve logo a seguir:

A aplicação do bandarrismo a Sebastião é um abuso. Com efeito, nem o Messias é, no judaísmo, um perdido que regressa, nem Alcácer Quibir foi mais do que o castigo dado aos portugueses, em vista dos pecados comeridos contra os judeus. Toda a exegese, desde Aboah a Menassé, defende esta tese, e nunca se poderia assumir que o Messias incarnasse fora do povo de Israel. A maldição lançada pelos judeus a Portugal englobou o rei Sebastião, e dela restou uma festa, celebrada desde então, o ‘Purim dos Portugueses’, ou ‘Purim de D. Sebastião’, comemorado na sinagoga. O texto litúrgico, “neguilla”, contendo a narrativa da chegada do ‘Desejado’ a Tânger é uma violenta réplica aos portugueses, a Sebastião e aos cristãos, contra os quais os judeus houveram vingança, trazida pela mão divina, em Alcácer Quibir. Esta, uma das causas pelas quais o ‘Sebastianismo’, podendo aferir algo à fundamental matriz hebraico do messianismo, não constituir, de ‘per si’, um factor judaico.

Mas continuemos a transcrever algumas das mais significativas trovas do Bandarra, não esquecendo que elas ‘falaram’, a Portugueses, quer a cristãos-novos (marranos), quer sobretudo a cristãos-velhos.
Logo no início do ‘Sonho Segundo’, Gonçalo Annes concretiza a gesta do futuro ‘bom rei Encoberto’, nalguns dos seus-versos mais famosos, em que, aliás, chega a fazer doutrina:

XCIV
Oh, quem tivera Poder
para dizer,
os sonhos que o homem sonha!
Mas fiel medo, que me ponha
grão vergonha
de mos não quererem crer.
Vi um grão Leão correr
sem se deter,
levar sua viagem,
tomar o porco selvagem
na paragem,
sem nada lho defender.

XCV
Tirará toda a escória
será paz em todo o Mundo,
de quatro Reis o segundo
haverá toda a vitória...

João de Castro, na “Paráfrase...”, apresenta os dois primeiros versos desta última quadra de outro modo: ‘Tirará, toda a Erronia, / fará Paz em todo o mundo’.
“Fará ou será Paz?”
Sampaio Bruno, citando o neto do herói das Índias, abona-se, em todo o caso, nesses versos para culminar a sue tese de que ‘o sebastianismo coincide com o filosofismo’, visto que a paz anunciada surge vinculada à operação filosófica de ascender do erro para a verdade; não é a paz, das espadas, não é o império da força; é antes um reino de verdade e de luz. O Quinto Império Português, acrescentará Fernando Pessoa insistentemente, será o ‘Império da Cultura’». In António Quadros, Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Guimarães Editores, Colecção Filosofia e Ensaios, Lisboa, 1983.

Continua
Cortesia de Guimarães Editores/JDACT

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo. «A Tia Felícia, agradecida, depois, dos trabalhos e cuidados que lhe dispensei, devotou-me as afeições dos precisados e deu-me, em troca, uma galinha branca, com seis ovos, o melhor que tinha»



jdact e cortesia de joserodrigues

«Tantas vezes olhei aquela casa, a singeleza e a humildade, ali só sustentadas pelo salário da jorna, que apenas cobria o sustento e a parca vestimenta da sua habitada. Tantas vezes admirei esteticamente aquele branco, puramente caiado, aquele subtil jogo de volumes, sem delicado tratamento no remate da chaminé, aquele casebre a resumir pobreza de cela, tamanho dos teres e haveres da dona.
A Tia Felícia veio à porta cumprimentar o Garcia, e muitas recomendações para a sua senhora, disse. Vestida de luto carregado, com o lenço atado pela cabeça, com nó corrido debaixo do pescoço, a assinar a viuvez fresca do marido, que Deus lá tenha. De semblante muito triste, saudou-me com vossa mercê e, mais nada, que o tempo era dorido.

A Tia Felícia, agradecida, depois, dos trabalhos e cuidados que lhe dispensei, devotou-me as afeições dos precisados e deu-me, em troca, uma galinha branca, com seis ovos, o melhor que tinha, coitada, que quem dá o que pode a mais não é obrigado.
Chorou ela, chorei eu, comovido pela sublimidade daquele presente, franqueado da mais prateada dádiva, que as lágrimas quiseram testemunhar, vencendo os taludes das contenções, encarreiradas pelos sulcos da face, que com rapidez tentei secar, com o lenço da mão, que era branco, para a mortalha das emoções.
Galinha branca, o mais precioso que ela tinha para pôr no ofertório a Deus, em holocausto pela sua dor,  nunca o tributo, por qualquer patrocínio, grande que fosse, na fazenda pública, em cartório ou em tribunal.
Que apaziguamento, que agasalho para a alma, naquele lugar, naquela hora, onde houve nome o obrigado!
Vaidade de qualquer mãe, senti-me envaidecido da minha, da sua herança de recatamentos que me arquitectaram frugalidades nas minhas efusões espontâneas. Se ela me pudesse ver com aqueles vassalados engalamentos, como se comoveria dos merecimentos que ao filho eram assim reconhecidos, apertando-me ao calor do seu colo, de que nunca consegui afastar-me na vida.
O Garcia não me deixou resvalar outra vez e, amparando-me pelo braço, levou-me para o trilho certo, que era aquela estrada, ao meio, o caminho a seguir.
Com o peso desta dívida comigo, sempre que me cruzava com aquele luto, em pessoa, apitava-lhe sempre do carro, sinalizando-me, com saudações largas, desenhadas por generosos acenos de mão, que ela devolvia, com inclinações.
Na minha estada em Marvão, como foi referência aquela velhinha!
Sempre carpida de dores, alegrias ausentes, nem por festas, nem por aleluias, a alma se lhe abria.
Compenetrei-me aos poucos de que a minha passagem por Marvão não se podia esbater em sombras ou indiferenças, hasteadas em qualquer galeria de vulgaridades ou de pensamentos breves. Amassei-me na magia que a terra combinava com o encanto das pessoas e das amizades, seara onde não me foi difícil trabalhar.
Fixando o seu olhar no meu, por baixo dos óculos, a auscultar a minha amaragem, falando-me solidariedades, com silêncios, o Garcia disse para continuarmos em frente, a subir a encosta, entremeando as bermas, ladeadas agora de vegetação abundante, onde os vetustos carvalhos se deixam avizinhar de árvores mais moças e mais vistosas. Transbordavam sobre os muros os galhos dissidentes, a que a zelosa disciplina do cantoneiro ia impondo ordem paisagística, concursada na Primavera com os verdes e, no Verão e Outono, com os amarelos e castanhos». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT