segunda-feira, 11 de junho de 2012

O Crime dos Illuminati. César Vidal. «Um murmúrio, inegável mas reprimido, avisou-o de que tudo iria começar em alguns instantes. Não se enganou. Em meio de um silêncio sepulcral, uma carroça desgastada, puxada por cavalos, entrou na praça e se dirigiu para o cadafalso»

Cortesia de wikipedia

Os Filhos da Luz. Paris, 21 de Janeiro de 1793
«Realmente é muito curiosa a maneira como as impressões ficam gravadas no nosso cérebro, para depois emergirem, de vez em quando, graças ao efeito quase mágico da memória. De um desfile demorado, recordamos não a aparência marcial do elegante capitão ou as palavras piedosas pronunciadas de maneira emotiva pelo capelão ao abençoar as tropas, nem mesmo a variedade de cores dos uniformes. O que fica retido na nossa mente, pelo contrário, é o semblante acalorado de um soldado camponês, suarento e avermelhado, a quem o uniforme de gala atormentava como se o estivesse submetendo a uma tortura. De um ‘te-déum’ solene esquecemos a pregação sentida do Evangelho, o grande número de fiéis e até o motivo transcendental da cerimónia impressionante, mas no coração fica impressa a aparência sonolenta de um sacristão barbeado com descuido ou da anciã que cochichava durante a homília. Assim age a memória, e a de Karl não era uma excepção entre as de outros tantos integrantes do género humano. Daquela manhã, ele se lembraria de muitas coisas, mas, principalmente, ficaria inscrita nas suas lembranças a colocação assimétrica do patíbulo.
Tratando-se de uma praça e levando-se em conta a quantidade nada desprezível de espectadores, podia-se dizer que metade de Paris estava concentrada naquele lugar, o mais lógico teria sido instalar aquele ambiente de morte no centro, procurando a equidistância, para que o maior número possível de espectadores contemplasse, talvez até com deleite, quase sempre com curiosidade, o que iria acontecer dentro de alguns segundos. No entanto, no fim das contas, os guardiães da revolução, os defensores da liberdade, os impulsionadores da igualdade tinham optado por colocá-lo quase numa esquina.
O patíbulo erguia-se assim, entre o caminho que levava aos Champs Eliseés e um curioso... pedestal? Sim, tudo parecia indicar que aquele volume enorme e quase amorfo tinha sido um pedestal em algum momento de um passado talvez não distante.
Se bem que, a ser assim, para que estátua exactamente ele tinha servido de plataforma? Devia ter sido uma escultura odiada, porque a tinham arrancado quase pela raiz. Nem mesmo o pedestal tinha-se salvado da acção daquelas multidões que os dirigentes da revolução chamavam com vigor de "cidadãos" e de "o povo". Karl achou inclusive que, em outros tempos, o pedestal devia ter contado com um revestimento de mármore e bronze, mas desses materiais tão nobres só restavam agora fragmentos em mau estado.
Até a pedra, que agora aparecia, riscada e triste, a descoberto, como uma mulher que tivessem tirado da cama para lhe arrancar a roupa em seguida, tinha um aspecto deplorável, como se alguém tivesse tido prazer em espancá-la e, no final, enfadado e exausto, tivesse desistido da tarefa extenuante.
O cadafalso tinha sido erguido a poucos passos daquele vestígio lastimável de um passado que, de tão próximo, quase parecia presente e que os "cidadãos" desejavam arrancar pela raiz. Tinha sido coberto por tábuas compridas, colocadas de maneira transversal, que serviam para esconder uma complicada estrutura que parecia proveniente do Garde-Meuble. Exactamente no extremo oposto ficava a escada sórdida que terminava na parte alta do cadafalso, desprovida de corrimão.
Karl sentiu como se uma bola de metal o atingisse violenta e inesperadamente na boca do estômago, quando contemplou um objecto de forma cilíndrica colocado sobre o patíbulo. Estava coberto de couro e, sim, não restava dúvida, era a cesta onde a cabeça do condenado deveria cair. Claro que não se tinha certeza de que fosse acontecer assim.
De saída, a lâmina da guilhotina não parecia muito pesada. Na verdade, era pequena e tinha uma forma curva, quase como um daqueles gorros frígios que muitos dos presentes usavam. Como não se via nenhum dispositivo que pudesse segurar a cabeça do réu uma vez que tivesse sido separada do corpo, podia-se imaginar que ela saltaria do cadafalso e talvez chegasse até à multidão. Os servidores da liberdade teriam preparado tudo dessa maneira ou, pelo contrário, tratava-se de mais uma demonstração de incompetência, que por ser grosseira não era menos soberba, e da qual davam mostras com tanta frequência? Karl não sabia e, para falar a verdade, também não tinha nesses momentos um espírito suficientemente forte para se dispor a investigar isso.
De maneira inesperada, uma rajada de vento percorreu a praça, arrancando-o daquelas reflexões. Não serviu, no entanto, para aliviar o mal-estar que tinha tomado conta dele. Pelo contrário: arrastou até seu nariz, mais forte e vigorosa, uma mistura repugnante e variada de cheiros. Roupa suja, suor acumulado em axilas e pés, baforadas de álcool mal digerido... tudo aquilo o envolveu com seu fedor espesso e, por um momento, ele pensou que não conseguiria conter a ânsia de vómito. Mas conseguiu.
Custara-lhe muito chegar até ali e não estava disposto a perder o espetáculo por culpa do asco. Um murmúrio, inegável mas reprimido, avisou-o de que tudo iria começar em alguns instantes. Não se enganou. Em meio de um silêncio sepulcral, uma carroça desgastada, puxada por cavalos, entrou na praça e se dirigiu para o cadafalso. Se não fosse pelas pessoas que ficaram na ponta dos pés para poder observar melhor a cena, e que se espezinharam, e que amaldiçoaram, e que blasfemaram, quase teria parecido que não havia ninguém naquele lugar.
O carro chegou, lenta mas inexoravelmente, até ao patíbulo, e Karl pôde ver que os carrascos eram quatro. Se não fosse pelas divisas, tricolores e desproporcionalmente grandes, que usavam nos modestos chapéus de três pontas, qualquer um teria dito que pertenciam ao antigo regime. As mesmas calças, as mesmas casacas, os mesmos penteados... bem, no fim das contas, também executavam o mesmo ofício realizado tantas vezes ao longo dos séculos.
O réu estava acompanhado por três sacerdotes, era evidente, mas o comportamento deles não poderia ser mais dessemelhante. Dois deles estavam vivendo, sem qualquer sombra de dúvida, um momento extraordinariamente divertido. Karl pestanejou para ter certeza de que o que estava vendo era real, e, claro, não teve dúvida alguma: aqueles dois clérigos brincavam como se estivessem desfrutando de uma alegre romaria. Engoliu a saliva. A praça transbordava de inimigos do condenado, mas ninguém se tinha atrevido a se mostrar alegre naquelas circunstâncias. Aqueles dois eram a excepção. Inclusive, um deles tinha começado a apontar a barriga e os quadris do réu e a zombar de suas formas. O terceiro, pelo contrário, demonstrava um comportamento diametralmente oposto. Da distância em que se encontrava, Karl não podia distinguir suas feições com clareza, mas tudo parecia indicar que era vítima de um forte retesamento que talvez pudesse ser atribuído à tristeza. Não, aquele sacerdote não apenas não se divertia com a cena como, de facto, ela devia estar-lhe causando uma dor insuportável». César Vidal, O Crime dos Illuminati, Relume Dumarã, 1958, Ediouro Publicações S.A., 2006.

Cortesia de Relume Dumarã/JDACT