domingo, 31 de julho de 2016

Camões no 31. Até que o Amor me Mate. Maria Lopo de Carvalho. «Pus o coração nos olhos, e os olhos pus no chão por vingar o coração. Se pouco vos mereci, não me estimais mais que o chão…»

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As Mulheres de Camões
Violante de Andrade. 1543
«Passeava eu de liteira pelas ruas de Coimbra e eis que o vislumbro, galhofando com outros moços escolares. A barba cor de fogo e o estilo peralta e galante prenderam-me a atenção. Marquei-o mas, simulando recato, baixei os olhos. Ainda que, por uso, um mero vislumbre de olhos meus seja flecha no alvo, não cuidava que um desvio de olhar fosse também dar armas de vantagem ao amor. Mas assim foi. Tardou pouco para que os versos do mancebo me chegassem às mãos:

Pus o coração nos olhos,
e os olhos pus no chão
por vingar o coração.
Se pouco vos mereci,
não me estimais mais que o chão,
a quem vós o galardão
dais, a mo negais a mi.

Logo achei ocasião de indagar a Francisco Morais, que lodos os meandros conhece, quem era aquele rapaz de tão desusado colorido. O nosso hábil e douto amigo logo se me pôs a recitar um soneto que o dito moço barbirruivo, de nome Luís Vaz Camões, escrevera aos dez anos de idade, não sem um leve esgar de contrariedade. Seria inveja, admiração ou uma mescla das duas?

Os reinos e os impérios poderosos,
Que em grandeza no mundo mais cresceram,
E por diante, e por diante.

Teve Grácia Temístocles famosos;
os Cipiões a Roma engrandeceram;

E por diante, e por diante. Era, com efeito, admirável! Aos dez anos de idade!

Francisco de Morais, autor d'O Palmeirim de Inglaterra, romance de cavalaria que não me canso de ler, secretário, conselheiro e amigo do senhor meu marido, é homem bom e justo. Pena ser um tanto depreciativo, mas o seu apurado senso de humor compensa em sarcasmo o que perde em despeito. E, nele, a vontade de ser leal ao amo sobrepõe-se a tudo. O meu amigo, que tudo via com reserva e desconfiança, não iria certamente concordar com o meu intento de contratar aquele moço para mestre de Antoninho, o primogénito dos meus três filhos. Sempre que se punha a exibir a pose de homem sábio e de extrema erudição, punha-me eu logo a recitar em voz alta uma passagem do seu Palmeirim, a que descrevia as damas de Paris, só para o ver corar de aflição: aquelas princesas e senhorias (...) jogando ao alho saltando umas por cima das outras. Muitas vezes saltam mal e caem com os focinhos para baixo Não posso dizer tudo senão que o padre para não ver desonestidades remetia-se às moças que caíam, e cobrindo-as com o manto as ajudava a levantar...
Pois ainda que se deleitasse com damas saltando umas por cima das outras, e com o manto do padre que as cobria, dizia e repetia o nosso conselheiro, torcendo o douto focinho, que trazer Luís Vaz de Coimbra para Xabregas como mestre do primogénito da Casa de Linhares sem lhe estudar minuciosamente a genealogia, a cultura e a índole era poderosa afronta: pode ter grande talento, porém só talento não chega. Afinal Vossa Excelência, senhora condessa de Linhares, é detentora do primeiro título criado por El-Rei João III, é filha do tesoureiro-mor da Coroa, sobrinha do capitão de Ceuta, e vosso marido, o senhor conde, embaixador do Reino junto da Corte francesa de Francisco I e dona Leonor de Áustria. Para mestre do morgado António não há-de servir qualquer um, senhora…
Desagradou-me o que ouvi e não descansei enquanto não larguei a Crónica do Imperador Clarimundo, do nosso muito chegado João Barros, para saborear os delicados sonetos e as oitavas que Luís Vaz escrevera à Casa de Bragança. Sus! Que estoiro! Dizem que foi beber ao moderno Petrarca, que o Cancioneiro Geral de Garcia Resende o sabe já de cor e que, ainda assim, lhe não basta, pois que quer aprender com os italianos. Custa-me a crer. Que haja quem queira saber das rimas dos italianos é coisa que me espanta..., até a mim, que me dou amiúde com gente letrada e tenho uma das melhores livrarias do Reino. Só Sá Miranda os segue e imita. E como é que Luís Vaz, que mal passou pelos bancos da universidade, conhece Petrarca? E porém a imitação dos clássicos parece nele encobrir um talento de verdadeiro homem de letras, talento que nele brota como água de fonte levando-nos de enxurrada para um outro mundo.

Vinde a ver a Teodósio grande e claro,
a quem está oferecendo maior canto
na cítara dourada o louro Apolo.

Minerva, do saber, dá-lhe o dom raro,
Palas lhe dá o valor de mais espanto,
e a Fama o leva já de pólo a pólo.

Não se esperava que Teodósio de Bragança lhe agradecesse, pois que para certa nobreza é de bom-tom desprezar os homens comuns de duvidosos costados. Diz-se que também o duque de Aveiro e o marquês de Cascais lhe encomendaram rimas. Fama de homem culto e letrado, que conhece os segredos da mitologia como as estrelas no firmamento, tem-na ele granjeado. Alguns reais vai certamente amealhando, mas nunca o bastante para a vida devassa que dizem levar...» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.



Cortesia de Odo Livro/JDACT

Prior do Crato no 31. Portugal é uma Ilha. Alexandre Borges. «Empoleirada num pequeno muro de pedra, confundida com uma rainha no alto da muralha do seu castelo, Brianda Pereira balançou e gritou até ao fim do combate: “estamos por Dom António!”»

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«(…) António não desistiria da luta e Filipe sabia disso. O novíssimo rei de Portugal chega a anunciar publicamente uma recompensa de 80 000 ducados de ouro a quem capturasse aquele agitador solitário, mas tinha ainda de se haver com outro rival: o já citado fantasma do rei que desaparecera, três anos antes, em Alcácer Quibir. Com o povo a suspirar por Sebastião, Filipe faria trasladar, de África para o Mosteiro dos Jerónimos aquele que era, alegadamente, o corpo de o Desejado, mas o esforço e o dinheiro despendidos de nada serviram e nada calaram. Nada garantia que aquele cadáver que até hoje jaz num faustoso túmulo de mármore não muito longe dos de Camões ou Vasco da Gama fosse, com efeito, o de Sebastião ou de outro infeliz qualquer, que nunca tivesse sido rei ou sequer português. Nenhum teste foi feito na época ou desde então. Nasciam o mito e o mistério do sebastianismo. Desprezá-los é não entender Portugal. Naqueles mesmos dias, aconteceria, aliás, um fenómeno curioso: o aparecimento de umas quantas figuras que reclamavam ser, nem mais nem menos, o próprio Sebastião. Alguns, consoante os dotes dramáticos, ainda conseguiram pôr umas multidões a acreditar neles. Quase todos acabaram presos. Um foi enforcado.
A guerra não terminara. Ainda não. Logo em 1581, António I, que tinha procurado apoio em França e Inglaterra, ia descobri-lo, afinal nos Açores. Ciprião Figueiredo Vasconcelos, corregedor na ilha Terceira, era um daqueles homens para quem Filipe não passava dum usurpador. Para Ciprião, o rei de Portugal, no exílio ou não, continuava a ser aquele que o povo aclamara em Santarém. No início do ano, a ilha de São Miguel tinha tomado partido, conforme declaração da Câmara Municipal de Ponta Delgada, pela causa de Filipe de Espanha. Em consequência disso, fora nomeado para governador-geral dos Açores Ambrósio Aguiar Coutinho, ao qual se seguiria Martim Afonso Melo e cuja principal tarefa seria demover Ciprião Figueiredo. Revelar-se-iam vãos, contudo, os esforços do governador: rapidamente Ciprião o obrigou a regressar a São
Miguel, fazendo-lhe notar que toda a ilha Terceira, e é provável que tenha sublinhado toda, estava por António I.
A 25 de Julho, entrando pela baía da Salga às primeiras horas da manhã, uma força de 1000 espanhóis comandada por Pêro Valdez viria determinada a fazer Ciprião e os seus terceirenses engolirem a ousadia, mas uma furiosa bateria de gado bovino mostrar-se-ia insensível perante os seus argumentos. Empoleirada num pequeno muro de pedra, confundida com uma rainha no alto da muralha do seu castelo, Brianda Pereira balançou e gritou até ao fim do combate: estamos por Dom António! Aqueles que o gado poupou não tiveram a mesma misericórdia da parte do exército de populares. O mar levou outros que se afogaram pesadamente, dentro das armaduras, na tentativa de fuga. Alguns, poucos, conseguiram alcançar os galeões e viver para regressar a Espanha e contar a história. Quando o silêncio se abateu sobre a Salga, a espuma do mar deixava um rasto encarnado nas rochas... Custava olhar aquele retrato sanguíneo do fim da batalha, mas a vitória fora completa. Sepultados os corpos caídos do vale à baía, o governador Ciprião marchou até Angra do Heroísmo, arrastando as bandeiras dos rivais. A cidade celebrou-o como a um herói antigo. Pêro Valdez faria chegar a Filipe o relato pormenorizado dos acontecimentos e a vingança viria mais cedo ou mais tarde, mas, por agora, era tempo de festejar orgulhosamente o crime de rebelião». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

A Arte no 31. Fernando Pessoa. Sónia Louro. «São as cabeças, os corpos, eles todos por inteiro, são o Caeiro, o Reis e o Campos. Podem ser sem vida os olhos dos dois primeiros, pois são sempre sem vida os olhos de um morto»

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Cai chuva do céu cinzento
«(…)
É noite.
Agora é noite. A noite assemelha-se ao nada e tenho
A impressão de que é sempre noite. Sempre, depois
de depois, virá o dia, mas será tarde, como sempre.
Tudo dorme e é feliz, menos eu. Descanso um pouco,
sem que ouse que durma. E grandes cabeças de
monstros sem ser emergem confusas do fundo de
quem sou. São dragões do Oriente do abismo, com
línguas encarnadas de fora da lógica, com olhos
que fitam sem vida a minha vida morta que os não
fita. Minto sabendo que minto, mas certo de que
acredito. Não são dragões do Oriente do abismo
que me fitam. As suas línguas são vermelhas, mas
os seus olhos não me fitam sem vida, decerto não
todos. São as cabeças, os corpos, eles todos por inteiro,
são o Caeiro, o Reis e o Campos. Podem ser sem
vida os olhos dos dois primeiros, pois são sempre
sem vida os olhos de um morto e os de um exilado
da pátria, mas os do Campo são vivos, porque
são vivos os olhos de um vencedor e ele vence-me.
Sempre me vence.

Somos todos nada, como bem dizia o Dr. Reis, mas eu ainda não sabia essa verdade quando conheci o Cavaleiro e não é à humanidade que me refiro, é apenas a mim. Com ele, a criança sozinha tinha companhia. A minha lucidez cega de criança aprendera que a vida desmoronava a qualquer momento, mas ainda me faltava perceber que ela nunca se volta a erguer. Deixava para trás mais do que podia alcançar, uma quietude de alma que não voltaria a ter: a placidez dos fins de tarde embalados pelos carrilhões da igreja dos Mártires, eram talvez outros, não, eram com certeza esses, a mesa posta para o chá em chávenas de porcelana da China, sabeis que toda a vida cabe numa paisagem de uma chávena de chá chinesa?, a meia-luz do resto de dia filtrada pelos cortinados e toda a atenção das criadas, das tias, da avó e da mamã. Foi assim durante quase dois anos e meio. O mundo era eu.
Agora sou nada. Há algum consolo nestas palavras, pois se agora sou nada, há a certeza intrínseca, pelo menos a impressão, de que terei sido outra coisa em algum momento, mesmo que breve. Talvez alguma coisa que valesse a pena. Contudo, agora, não me resta nada mais do que não fazer nada mais. Mas há, porventura, algo mais que posso fazer. Posso acreditar que um dia não fui nada. Esse dia foram todos os dias antes de perder a mamã, aquele dia muito cedo em que me vi reflectido nos seus olhos sem saber que era feliz até então e que a felicidade tinha chegado ao fim. Era feliz e deixei de o ser mesmo sem ter tido consciência disso durante o processo. A mamã casou-se no fim do ano de 1895 com o noivo ausente, no mesmo dia em que completou 34 anos. Até então os seus olhos eram tristes e melancólicos, mas eram apenas meus e nada mais me interessava.
Após a morte do meu pai, com dois filhos nos braços, deve ter pensado que não se casaria, ou, pelo menos, não voltaria a fazer um bom casamento. Talvez a morte do meu irmão tenha ajudado a que o conseguisse. Naquele dia, o do casamento, foi como se voltasse a viver. Percebi então, ou percebi depois, que entre a morte do meu pai e o casamento com o meu novo papá, ela não passara de um cadáver adiado. Eu olhava-a, dividido entre o deleite de ela ser só minha e o sentimento de culpa do sobrevivente. A partir dali a depressão dela era a minha. E sempre assim foi, mesmo depois de ela ter morrido. A mamã voltou a viver a partir do segundo casamento, mas a minha depressão que nasceu da dela nunca terminou e a partir daí cresceu em mim um tédio das emoções. Não obstante, nunca deixei de amar, pois nunca deixei de a amar, mas desde essa altura sempre tive o cuidado de não converter o afecto em amor. Nunca foi falta de paciência ou incapacidade para amar e me fazer amar. O esforço é que era totalmente desprovido de sentido. Existe prazer na dor, mas existe do mesmo modo um limite para o prazer que conseguimos suportar. Além disso, não posso imaginar nada mais entediante, depois de viver, do que amar e esperar pela recíproca». In Sónia Louro, Fernando Pessoa, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-674-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

O Corpo no 31. Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «O murmúrio escondido das palavras: reparam como está cansada, os olhos, reparem nos olhos, toda ela é um enorme cansaço, reparem. A flor murcha-lhe no peito, na pele do peito, metida entre os seios»

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«(…)
O jantar
À mesa ficava silenciosa e rígida, os olhos fixos no prato quase sempre lavrado, ou na toalha quase sempre bordada, fingindo alhear-se ou apenas dar atenção, os pulsos, as mãos assentes na mesa, os cotovelos alinhados, pegados ao dorso, ao vestido branco ou talvez amarelo-claro, de um tecido tão brando, de um amarelo tão diluído, que me parece branco daqui do outro lado da mesa de onde a fito, tentando capturar-lhe o olhar vago que me foge para se refugiar nos objectos; distingo-lhe antes a palidez macerada das mãos a contrastar com o tom moreno da pele queimada pelo sol, da pele lustrosa dos ombros, da cara, dos braços unidos ao vestido amarelo ou talvez branco, que daqui me parece amarelo devido à luz ácida que desce do tecto directamente sobre nós. E ela, hirta, a contornar com os olhos o recorte do bordado creme no verde aguado da toalha onde roça a ponta aguda dos dedos, das unhas sem verniz ou com um verniz prateado sem brilho, a confundir-se de perto com o brilho baço, sóbrio, da prata dos talheres dispostos junto aos pratos lavrados: uma rosa pintada, quase invisível. Ela imóvel, fingindo alhear-se ou fingindo-se atenta, a boca contraída pelo esforço, o corpo decerto contraído sob o vestido, o vestido macio solto nas ancas, no ventre, colado aos seios. E a luz desce, facetada nas garrafas, nos frascos quadrados onde o vinho se concentra gelado, os frascos brilhantes que os criados transportam silenciosamente nas pequenas bandejas; e ela segue os criados com os olhos, só então interessada: as únicas pessoas vivas naquela sala, pensa, sim, é isso que pensa, e a luz desce facetada na sua mão, melhor, no copo que segura, que todavia vejo erguer aos lábios sem cor, silenciosa e tensa, sempre prestes a erguer-se para correr, fugir pelas áleas geométricas do jardim de buxo aparado rente a delinear-lhe o labirinto árido, o vestido branco, então sem qualquer dúvida branco, solto, comprido, solto sobre os pés, atirado pelo vento, solto sob o vento, e ela ágil mas lenta, já a levantar-se da cadeira, a abrir as enormes portas envidraçadas. Levanta ainda as mãos como que a tentar explicar-nos, todos silenciosos a olhá-la; a tentar explicar-nos. Mas apenas afasta os cortinados e corre pelas áleas onde a lua incide como no seu fato, nos seus cabelos, como na estátua, aquela onde se encosta tentando esconder-se de nós, ou somente a apoiar-se na estátua que lhe surge de súbito, afinal apenas uma figura de mármore inclinada, sorrindo, o sorriso perdido no escuro da noite. E ela ergue as mãos como há pouco, mas num grito. Só uma vez, um único grito, ronco. Mais um gemido de animal do que um grito. Olho-a, sentada, rígida, o copo perto dos lábios, silenciosa, os dedos unidos, os cotovelos junto ao tecido amarelo do fato, tão idêntico ao meu, branco, que do outro lado da mesa talvez pareça amarelo, devido a luz ácida que desce do tecto directamente sobre nós.

Os outros
Com uma estranha sensação de desamparo, deixa cair os brincos sobre a cama; na cama aberta onde ela se deixa cair para trás, de costas atravessadas no lençol, a nuca no cobertor puxado para os pés. Tem uma vontade louca de poder dormir. Fechar os olhos e dormir. Parece simples dormir, afinal demasiado simples. Se alguém a olhasse, pensaria: uma mulher cansada, uma mulher adormecida. A única luz que atravessa o quarto passa por debaixo da porta e esvai-se quase toda, absorvida pela carpette. Alguém que a olhasse agora pensaria: adormeceu, e, inclinando-se, talvez a tentar confirmá-lo, na quase total escuridão que se roça ao de leve no quarto, encontraria sob as palmas duras das mãos a forma aguda, fria, dos brincos que ela atirara para ali ao deitar-se, ao deixar-se cair demasiado cansada para se aguentar durante mais tempo em pé, sala para sala, subtilmente em todo o sítio sorrindo para os outros ou já sem mesmo isso conseguir, deslizando apenas de uns para os outros, distribuindo assim a sua presença em que todos se detêm com minúcia, disfarçadamente: reparem nas olheiras, na boca, nos olhos, os olhos; reparem nas olheiras, reparem na boca, reparem nas olheiras, na boca, nos olhos, os olhos; reparem no movimento das mãos sobre o vestido, reparem nas olheiras, a boca..., e a mulher aproxima-se outra e outra vez, desliza as mãos sobre o vestido, nos braços, como se tivesse frio, outra vez, ainda e ainda; aproxima-se cansada, cada vez mais cansada e com todo o cansaço marcado, bem marcado no rosto, nos olhos; reparem nos olhos e a mulher aproxima se, encosta-se a um canto qualquer da sala, desliza as mãos pelo vestido, nos braços e desesperada outra vez no vestido, cansada, terrivelmente cansada: reparem como se encosta à parede; as olheiras, reparem nas olheiras, as mãos sobre o vestido, a palidez cada minuto que passa; a palidez: reparem na flor que lhe murcha no peito; a mulher desencosta-se e sente todo o peso do corpo para arrastar consigo pelas salas. Aproxima-se, dizem, reparem, aproxima-se. Mas a mulher empurra docemente a porta do quarto e lá dentro fica atenta a escutar o ruído das vozes embatendo na madeira da porta por detrás das suas costas. O murmúrio escondido das palavras: reparam como está cansada, os olhos, reparem nos olhos, toda ela é um enorme cansaço, reparem. A flor murcha-lhe no peito, na pele do peito, metida entre os seios. Reparem, pensa ela, como os meus dedos tremem e nem forças tenho para os aquentar firmes nas vossas mãos, à despedida. E a mulher tem o murmúrio baço das vozes, do conjunto baço daquelas vozes entrelaçadas umas nas outras, por detrás dos seus ombros. Encostada à porta, vai-se habituando ao escuro. Deitada de costas, vai-se habituando: habituando sempre. Quem a olhasse agora, pensaria: adormeceu, mesmo reparando nos seus olhos abertos. E inclinando-se estenderia uma das mãos até lhe tocar o rosto para a afagar na boca docemente até se convencer da sua morte. Reparem, pensa ela, como estou cansada, parece dizer-lhes encostada à parede naquele canto da sala. Sim, reparem-lhe na boca, como ela está cansada, e a flor no calor do seu corpo, as olheiras, as mãos sobre o vestido, reparem: a boca, a boca, as olheiras. Reparem. Os homens imaginarão o seu corpo; e nunca se cansariam de imaginar o seu corpo mesmo que o tivessem debaixo da carícia aguda das palmas firmes das mãos. Porém, se alguém se debruçasse agora sobre ela, para lhe encontrar no vulto uma confirmação de vida, os dedos deter-se-lhe-iam antes na forma dura e fria dos brincos, logo continuando em direcção do pescoço flexível, como que desconjuntado sobre a cama. A mulher está atenta à sua própria ausência». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia PEAmérica/JDACT

Narrativa no 31. A representação medieval dos tempos troianos na versão galega da Crónica Troiana de Afonso XI. Pedro Chambel. «… durante a convalescença de Diomedes, após ter sido ferido em combate, Briseide vai constantemente vê-lo, embora escondendo o amor que por ele já sente»


Cortesia de wikipedia e jdact

A Narrativa de Troilo, Diomedes e Briseide. O Amor Cortês
«(…) O tópico da personificação do amor e dos efeitos que provoca encontra-se, assim, realçado na obra, expressando-se de forma pormenorizada e hiperbólica as consequências que induz no apaixonado cavaleiro, que pela sua acção perde, perante a amada, a bravura e impetuosidade que o caracteriza. No que respeita ao comportamento de Briseide, até tomar Diomedes por amigo e amante, é sobretudo pelas palavras do narrador, de Troilo, nas do monólogo final da donzela e pelo seu comportamento que se transmite as diversas fases que originam a troca de amante, pois, no geral, Briseide continua a manifestar o amor pelo cavaleiro troiano. Assim, se no primeiro encontro com o herói grego, esta declara encontrar-se apaixonada por Troilo e decidida a manter a jura de amor que ambos fizeram, acaba por afirmar que não sabe se pode confiar em Diomedes, acentuando que as donzelas devem saber evitar os falsos amantes que as tentam enganar. Após falar com o pai, enquanto ainda manifesta o seu pesar por deixar Tróia e o amante, o narrador refere como, em três dias, a donzela esquecerá o desejo de voltar à cidade que foi forçada a abandonar. Seguidamente, quando recebe o cavalo que Diomedes tinha conquistado a Troilo, Briseide afirma ao donzel que lho entrega, que se aquele lhe quer bem, não deve atacar os que ela ama e anuncia a vingança do filho de Príamo, reiterando o amor pelo herói troiano. Num quarto momento, quando entrega o cavalo a Diomedes, elogia o valor guerreiro dos troianos e, em particular, o de Troilo. No entanto, o narrador afirma que a donzela, apercebendo-se que já tinha em seu poder o cavaleiro grego, torna-se alegre e dá-lhe uma manga do seu brial para que ele o use na batalha, empunhando-o na lança como pendão.
Finalmente, durante a convalescença de Diomedes, após ter sido ferido em combate, Briseide vai constantemente vê-lo, embora escondendo o amor que por ele já sente. No entanto, acaba por o assumir, o que leva o narrador a afirmar como procedeu mal ao abandonar o valoroso Troilo. Entretanto, este, depois de ferir Diomedes, condena a traição de Briseide perante mil cavaleiros, culpando-a do ataque que perpetrou contra o seu novo amante, e, depois de afirmar a inconstância da donzela, diz a Diomedes que não será o último cavaleiro que por ela sofrerá. A mesma admoestação à donzela é repetido por Troilo, depois de desarmado pelas donas e donzelas de Tróia, ao afirmar que a inconstância amorosa é própria das mulheres que assim enganam os que as amam e por elas combatem. Entretanto, antes destas palavras proferidas por Troilo, que marcam a última referência à donzela na versão galega da Crónica, surge o longo monólogo de Briseide. Neste, a donzela expressa quatro ideias principais: admite o erro de ter abandonado Troilo, concordando com os que condenam o seu procedimento, nomeadamente as donas e donzelas de Tróia, afirma a inconstância amorosa das mulheres que mesmo casadas escolhem amantes, justifica a sua atitude pelo facto de ter ficado só, sem conselho e desamparada, e, por fim, jura lealdade a Diomedes, manifestando o desejo de recuperar a alegria antes sentida. Durante o monólogo torna-se patente a incerteza da donzela na validade da argumentação justificativa da troca de amante, introduzindo-se o tema da culpa. Assim, a atitude de Briseide é condenada pelo narrador que não só a exprime nos seus comentários, como nas frases proferidas por Troilo, enquanto a inconstância amorosa acaba por ser considerada como uma característica do comportamento feminino. Neste sentido, Jean Fappier afirma que Benoit de Saint Maur manifesta no Roman não só uma ideia pessimista e fatal do amor, como uma atitude anti-feminista. Penso, no entanto, que o comportamento da donzela permite, igualmente, o desenvolvimento dos vários motivos ligados ao tema do amor cortês na narrativa, nomeadamente, como refere o mesmo autor, la description minutieuse des symptômes de l’amour maladie, e os tópicos da traição, dos remorsos e da culpa. Manifesta-se, assim, a influência da concepção ovidiana do amor, adaptada ao gosto cortês.

As Proezas Guerreiras de Troilo e Diomedes
Por fim, abordarei de forma sucinta as proezas guerreiras associadas ao episódio que escolhi analisar. Assim, a disputa que decorre, no plano amoroso, entre Diomedes e Troilo passa para o campo de batalha a partir do momento em que Briseide abandona Tróia, sucedendo-se os combates individuais entre os dois inimigos. É neste contexto que se narra o inicial triunfo de Diomedes sobre Troilo, que lhe permite capturar o cavalo do adversário, depois enviado a Briséide, e a posterior perda da sua montada, oferecida por Polidamante a Troilo. Os combates desenrolam-se como justas medievais e o narrador não deixa de assinalar como se efectuam com o intuito de demonstrar a Briseide, a valentia e o valor guerreiro dos oponentes. Entretanto, em momentos diferentes, ambos os cavaleiros utilizam nas suas armas, como pendão, ofertas da amada, assinalando o amor que a ela dedicam]. Por fim, é Troilo que acaba por ferir gravemente Diomedes, pensando os gregos que de forma mortal. De resto, após a morte do irmão Heitor, Troilo torna-se o principal combatente dos troianos, que nele depositam a esperança na vitória, relatando-se, então, como as donas e donzelas assistem aos seus feitos de armas nos muros da cidade, e os cuidados e atenções que lhe dedicam após as batalhas. Ora, é precisamente a bravura demonstrada perante os cavaleiros de Aquiles, aliada à derrota que lhes inflige chefiando as hostes troianas, que motiva a impetuosa decisão do herói grego de voltar a combater, acabando por o matar, com a ajuda dos seus cavaleiros. Depois, de lhe cortar a cabeça, Aquiles arrasta o corpo de Troilo preso à cauda do cavalo, motivando a vingança de Hécuba. Entretanto, depois da referida fala de Troilo às donzelas e damas de Tróia, em que manifesta a inconstância amorosa que caracterizaria o comportamento feminino, Briseide deixa de ser referida pelo narrador, finalizando o episódio que relata o antagonismo dos cavaleiros, motivado pela disputa do amor da donzela. Se no que respeita a Diomedes ainda se narra, nomeadamente, como acabou, após diversas vicissitudes, como a disputa pela posse do Paladium, por ser recebido no seu reino, não surge qualquer alusão ao seu amor por Briseide». In Pedro Chambel, A representação medieval dos tempos troianos na versão galega da Crónica Troiana de Afonso XI, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 4, Nº 5, 2008, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/JDACT

Vaticano no 31. Alexandre VI. Volker Reinhardt. «No caso do papa Bórgia, muitas questões permanecem em aberto. Não que faltem hipóteses, suposições ou especulações, mas nem sempre se pode apresentar provas. Para o historiador, reconhecer a falta de conhecimento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Bórgia, o papa sinistro
«(…) A fronteira entre a verdade e a difamação desenfreada não está, em hipótese alguma, delimitada. Embora venha à tona com a devida clareza a que propósitos servem essas histórias escandalosas que circulam por aí, nem tudo o que se diz à boca pequena sobre o papa e sua família tem de necessariamente ter sido inventado, não se pretende de forma alguma favorecer o surgimento de histórias misteriosas. Em vez disso, trata-se de submeter a uma nova investigação todas as referências transmitidas, incluindo os documentos que nos últimos séculos tornaram-se acessíveis pela primeira vez: o que pode ser dado como certo, o que fica em aberto, o que é menos plausível, o que está obviamente errado? Isso soa como um trabalho de detective e, de facto, assemelha-se a ele. É possível ler a história de Alexandre VI e dos Bórgia como um romance policial. Não há nada de aviltante nisso. A revisão de indícios, a consideração de situações sob pontos de vista diferentes e muitas vezes contraditórios e, especialmente, a investigação dos motivos são actividades intelectuais de conotações nobres. Levam aos métodos da crítica das fontes e, com isso, a possibilidades, riscos e limites da história como ciência. E tem mais a oferecer do que meras teorias. Quem conhece Alexandre VI, em suas negociações com embaixadores de potências estrangeiras, e César Bórgia, ao lidar com seus inimigos, é instruído detalhadamente nas artes da propaganda, da manipulação e do engano, e tem todo o direito de tirar conclusões legítimas de que o abismo entre as aparências e a realidade na política persiste até hoje. A história ensina a vida. Mesmo com todas as semelhanças, as investigações a respeito de Alexandre VI e seus familiares apresentam uma diferença crucial em relação ao trabalho de detective. Os romances policiais geralmente acabam com a identificação dos culpados e da revelação de seus motivos. No caso do papa Bórgia, muitas questões permanecem em aberto. Não que faltem hipóteses, suposições ou especulações, mas nem sempre se pode apresentar provas. Para o historiador, reconhecer a falta de conhecimento e até mesmo a incapacidade de compreensão é, portanto, um acto de honestidade. A ideia central deste livro deve ser a tentativa de trazer á luz a árdua verdade histórica, tendo liberdade até mesmo para chegar a outros resultados que não aqueles das pesquisas do autor principal, que se abstém de todo e qualquer julgamento moral. As emoções que, todavia, permeiam o texto referem-se pura e simplesmente a observações, acções e sofrimentos dos contemporâneos. Não será essa discrição uma violação das regras que garantem a exactidão? Não será aqui exigida a expressão piedosa de compaixão para com os perseguidos, expropriados e assassinados? Há três maneiras de contestar. Por um lado, quanto menor for a imposição do autor, mais naturalmente será levado a tomar partido das vítimas. Por outro, os seus contemporâneos, Nicolau Maquiavel, Francesco Guicciardini e Francesco Vettori, só para mencionar três dos mais ilustres, já interpretaram os excitantes acontecimentos do pontificado Bórgia como um objecto que nos obriga a reflectir e conduz a novos universos de ideias. E em terceiro e último lugar, a admiração da posteridade diante do presente não será supostamente menor do que a nossa estupefacção perante Roma e o papado entre 1492 e 1503. Essa estupefacção está no começo de todas as tentativas de compreender Alexandre VI e os Bórgia». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o papa sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.


Cortesia EEuropa/JDACT

sábado, 30 de julho de 2016

O Clube do Adultério. Tess Stimson. «Deixa-me falar com ela e perguntar: qual é que ela sugere, postulo. Não sejas tolo, Nicholas. Tu é que disseste que ela estava a insistir... Há mais de uma maneira de insistir em relação a qualquer coisa»

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«(…) Pão-de-ló de chocolate e laranja aromatizado com baunilha e raspa de laranja e limão ou bolo axadrezado de alperce com cobertura de chocolate?, pergunta a Mal, sem esperar que eu fale. Consigo perceber pelo tom de voz sufocado da minha mulher que tem o auscultador do telefone preso entre o queixo e o peito e que está, sem dúvida, a bater qualquer coisa de fazer crescer água na boca, enquanto falamos. Posso permitir-me indagar se... Céus, Nicholas, não sejas tão pomposo, diz a Mal com vivacidade. Não estás no tribunal agora. O teu bolo de aniversário, como é óbvio. A Metheny insiste em acabá-lo esta tarde, antes de chegares a casa. Sorrio com a referência à minha filha mais nova, com a qual tenho em comum o dia de aniversário, os dedos dos pés anormalmente compridos e um estranho gosto por gelado de pistácio. Tinha esperanças de virmos a partilhar muito mais, mas a ecografia demonstrou ser muito exacta e o meu muito esperado rapaz e potencial companheiro de pesca e críquete acabou por ser uma surpreendente terceira menina. Como prémio de consolação, deixaram-me dar-lhe o nome do meu herói de toda a vida, o guitarrista de jazz Pat Metheny.
Deixa-me falar com ela e perguntar: qual é que ela sugere, postulo. Não sejas tolo, Nicholas. Tu é que disseste que ela estava a insistir... Há mais de uma maneira de insistir em relação a qualquer coisa, como deves saber. A sua voz doce assume, sem dúvida, um tom de cama, e sinto um súbito grito de ânimo nas minhas calças, à medida que vejo flashes espontâneos de imagens de coxas cor de caramelo, bem tonificadas, meias de seda e renda cor de café na minha imaginação. A feiticeira da minha mulher sabe bem o efeito que está a ter em mim, a julgar pelo riso que agora substitui o seu tom de voz sedutor. Seja como for, diz a cantar, não podes falar com ela ou deixa de ser uma surpresa. Eu dou-te a surpresa... Vá lá, não ia ser mesmo uma surpresa, pois não? És mesmo convencida, digo. O que te faz pensar que não estou a falar da última factura de impostos municipais? O que te faz pensar que eu não estou? Estás? Estou a falar de bolos, Nicholas. Vamos, decide-te antes que tenha de colocar duas velas no da Metheny, em vez de uma. Também vou ter direito a velas? Sim, mas não quarenta e três, senão o bolo derrete. Mulher cruel. Tu também vais ter quarenta e três um dia. Mas só daqui a seis anos. Agora, Nicholas. O pão-de-ló de chocolate e laranja, claro. Seria possível pedir raspas de chocolate amargo a acompanhar?
Sim. Metheny, tira o pé da tigela do papá, por favor. Obrigada. Como correu o caso da encantadora Sra. Stephenson? Sete dígitos, informo. Quase o dobro do último divórcio. Que maravilhoso. Eu podia pensar em divorciar-me. Oiço a minha mulher lamber os dedos e a minha erecção quase fica à vista por cima da secretária. Se eu achasse que conseguias obter sete dígitos com isso, querida, eu próprio tratava dos papéis por ti - proponho, gemendo para dentro, enquanto ajeito os testículos. Infelizmente, é impossível fazer omeletas sem ovos. Ah, antes que me esqueça: o Ginger telefonou da garagem, esta manhã, por causa do Volvo. Ele disse que arranjou não sei-quê desta vez, mas que não se vai aguentar muito mais tempo nas pernas. Ou deveria dizer rodas? A voz dela ecoa no meu ouvido, enquanto anda pela cozinha. Seja como for, ele acha que não vai ser capaz de tratar dele para a maldita inspecção, em Janeiro. Por isso, não há nada a fazer, tenho de arregaçar as mangas e acabar o 1ivro, receber o resto do adiantamento... Querida, eu penso que consigo comprar um carro novo para a minha mulher se ela precisar, interrompo, espicaçado. Às vezes parece que te esqueces que agora faço parte dos associados neste escritório, não tens necessidade nenhuma de dares cabo de ti a escrever livros de culinária nesta fase.
Eu gosto de escrever livros de culinária, diz a Mal tranquilamente. Oh, meu Deus, Metheny, não faças isso. Pobre coelho. Desculpa, Nicholas, tenho de ir. Encontramo-nos na estação. À hora do costume? Suprimo um suspiro de desespero. Pelo amor de Deus, Malinche, é a festa da reforma do William esta noite! Não me digas que te esqueceste! Ficaste de apanhar o das cinco e vinte e oito de Salisbury para Waterloo, lembras-te? Pois fiquei, concorda Mal, serena, não me esqueci mesmo, só não me lembrei por um momento. Espera um segundo...» In Tess Stimson, O Clube do Adultério, 2007, Publicações dom Quixote, LeYa, 2009, ISBN 978-972-203-792-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

O Vaticano contra Cristo. I Millenari. «Estes homens da Igreja que distribuem ordens, recorrem gostosamente ao tema da vontade de Deus, identificando-a sempre e de qualquer forma com o próprio interesse…»

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«(…) Os subalternos silenciosos, da ordem dos oitenta por cento, continuam em desvantagem, porque eles próprios convencem o superior da ideia extravagante de que o seu poder é realmente ilimitado e indiscutível. A selecção, a promoção e a despromoção são a seu bel-prazer, mesmo que tenha de cair no pecado social da injustiça arbitral. E necessário saber interpretar o sofrido silêncio de quem não sabe gritar os inalienáveis direitos da pessoa humana, dado que o ambiente cria a virtude da cumplicidade de estar calado e de suportar. Os súbditos amarrados à estaca, os despromovidos, os excluídos da protecção das estrelas do clã encovilam-se no silêncio da glaciação curial. Está escrito: Zelus domus tuae comedit me. Quando a casa de Deus, a Igreja, está a arder, cada fiel tem a obrigação de saber utilizar os extintores para dominar o incêndio: se nela há o fumo do demónio, é necessário ter em atenção os focos que o alimentam. Quem se põe a olhar o incêndio de Roma do cimo da colina, como Nero, torna-se conivente com a destruição. Quo vadis Domine? Neste aniversário bimilenar? Vou expulsar satanás que está a incendiar a minha Igreja!
Enquanto os mal-intencionados contrariam o bem com a maior naturalidade, também os indulgentes o afastam com fanático desinteresse pensando, desse modo, prestar a Deus culto de abulia. E, assim, todos julgam estar de bem com as suas consciências. Deus, que tem o poder de justificar o pecador, torna-se impotente diante de quem se justifica à sua maneira, passando sem ele. Certos prelados da curia, tal como os meteorologistas, regulam os tempos da Igreja segundo os humores, as conveniências e as mutabilidades das aspirações próprias e alheias, semeando discórdias e perturbações. Os carrascos, cada um do seu próprio ponto de vista, presumem interpretar o pensamento do outro, contradizendo-se uns aos outros como nas previsões do horóscopo. A história da cúria oferece abundante material ilustrativo de eclesiásticos que procuraram fazer aplicações do Evangelho de forma a garantir-lhes a perpetuidade dos privilégios adquiridos. Isto chama-se desvirtuar a vontade divina para a fazer equivaler aos pontos de vista individuais. Estes homens da Igreja que distribuem ordens, recorrem gostosamente ao tema da vontade de Deus, identificando-a sempre e de qualquer forma com o próprio interesse ao qual todos os subalternos devem submeter-se, sem limites e sem discussões. Deste modo as coisas se baralham, depois, quando hierarquia, autoridades, amigos, juristas, psicólogos, ascetas e tantos outros se intrometem a complicar a meada dos acontecimentos vistos de perspectivas diferentes. Chega-se a um ponto em que não se sabe a quem obedecer sem desobedecer a um outro.

A Igreja não é o Vaticanismo
O pensamento dos padres orientais sobre o conceito teológico da Igreja fundada por Cristo não resulta tão totalizante como nos padres do Ocidente. A teologia ocidental ressentiu-se, de forma determinante, da conceptualização genial de Santo Agostinho, que foi capaz de exprimir a sua opinião sobre as grandes verdades do saber humano de então, orientando, assim, a vida social e individual das gerações futuras. Mas essas verdades, magistralmente expostas pela Águia de Hipona, necessitavam de se adequar e readaptar à vastidão intelectiva do saber humano das épocas seguintes, evitando condicionar-se reciprocamente. A Igreja existe para os homens e não os homens para a Igreja. Todos os estudiosos sérios, de qualquer quadrante, estão conscientes disso. Os padres orientais comparam a Igreja a um grande navio invencível, diríamos, hoje, um Titanic. Quem quer que nele embarque, neste mar tumultuoso, fará uma travessia tranquila e serena, diferente da travessia noutras embarcações. No pensamento oriental todos os que não se encontram dentro desse barco valem-se de outros meios providenciais para a travessia em ordem ao fim último de todo o homem, com jangadas, chalupas, barcas, bóias de salvação, isto é, através de outras crenças religiosas que, com dificuldade e menos rapidez, orientam os homens para a salvação. É importante esta esperança». In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.


Cortesia Casa das Letras/JDACT

Notas sobre a Identificação Social Feminina nos finais da Idade Média. Iria Gonçalves. «Mas como é que essas mulheres eram conhecidas dentro da comunidade de que faziam parte? Como é que os outros as identificavam?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«É sabido que a sociedade medieval, como patriarcal e guerreira que era, valorizava, de forma talvez desmedida a força e a coragem físicas, a audácia, o valor militar, isto é, os atributos considerados tipicamente masculinos e, por isso mesmo, subalternizava todos os que com eles se não compendiavam e que, supostamente, eram apanágio das mulheres. Por outro lado os homens medievais desconheciam a mulher e, como tal, temiam-na: o seu corpo, as suas reacções para eles tantas vezes incompreensíveis, a sua apregoada malignidade, o seu poder de sedução. Mas dependiam dela para perpetuar as suas linhagens, linhagens que se queriam continuadas, sempre, no masculino. Infelizmente para eles e sobretudo para elas, não havia meio de saber, com certeza, se o novo ser que chegava a casa era, de facto, filho daquele que todos consideravam seu pai. Na verdade, é elementar que o único laço parental óbvio é o feminino.
Por outro lado ainda, na sociedade medieval muitos homens eram celibatários por necessidade, desde uma nobreza que não podia casar muitos dos seus filhos segundos sob pena de fragmentar os seus bens a ponto de se tornar impossível a manutenção do status familiar, até uma imensa massa de camponeses pobres para quem a subsistência própria era já um problema de muito difícil e às vezes, em tantas das várias crises depressivas que a Idade Média conheceu, impossível. Passando por toda a gente da Igreja, na época a englobar contingentes muito consideráveis de homens, entre clérigos seculares, monges, freires guerreiros. Para toda esta masculinidade compulsivamente arredada do casamento a mulher só podia constituir uma tentação muito forte que, consoante os casos, as situações e os temperamentos, urgia alcançar ou esconjurar. Sobretudo aqueles últimos, temerosos e conscientemente frágeis frente às mulheres encarniçaram-se contra elas atribuindo-lhes, com cópia de argumentos, todas as culpas de que uns e outras eram culpados. Com uma força inexcedível, na medida em que tinham por detrás de si todo o poder da Igreja, aliado a esses outros, talvez pouco menores, representados pela palavra oral e escrita. Deste modo a certeza da malignidade das mulheres foi fazendo caminho nas mentalidades, criando raízes fundas e duradoiras por toda a parte. Perante esta característica, com todas as conotações que podiam ser-lhe atribuídas e superlativada pela imprevisibilidade feminil, tanto, também, para temer, aliada à indispensabilidade das mulheres no que toca à reprodução da espécie, só havia uma maneira de agir: submetê-las, controlá-las, cercear-lhes, tanto quanto possível, qualquer poder de iniciativa. Contudo, as mulheres não podiam ficar inactivas, ainda mesmo que o seu trabalho fosse de todo inútil para o agregado familiar e para a comunidade mais alargada em que se inseriam, pois só deste modo podiam libertar-se das graves tentações a que a sua fragilidade estava sujeita. Assim, eram-lhes assinaladas as tarefas de interior, as que as retinham em casa, as que as livravam de contactos alargados, isolando-as. Em resumo: as que facilitavam o seu controlo e vigilância por parte dos homens de família.
Mas, como Eileen Power já há muito tempo deixou dito, a posição da mulher é uma coisa em teoria, outra na situação legal e outra ainda no dia a dia. Para começar as mulheres não podiam estar, e não estavam enclausuradas, em casa. De acordo com o seu estatuto social e económico elas poderiam ter maior ou menor necessidade de sair do restrito privado da sua casa, mas ainda mesmo que em algumas circunstâncias essa necessidade, em termos práticos, fosse mínima, havia sempre essa outra, de carácter psicológico, que dificilmente se compadece com o enclausuramento total e prolongado, a não ser naqueles casos em que essa pudesse ter sido a sua opção de vida. De qualquer modo haveria sempre, para a mulher leiga, a obrigação de sair de casa e contactar com os outros no cumprimento dos seus deveres religiosos. E depois havia, para a grande massa da população feminina, a necessidade de trabalhar, de desenvolver um sem número de tarefas relacionadas com o quotidiano doméstico e que decorriam fora de casa, como o abastecimento em água e em alguns produtos alimentares, as idas e vindas até ao forno na tarefa, ao menos semanal, de cozer o pão familiar, a lavagem da roupa e tantas outras mais. Mas a maioria das mulheres não se ficava pelos trabalhos domésticos e juntava-lhes muitas outras actividades. Nos meios rurais trabalhava no campo, ao lado do marido, levava para venda no mercado citadino alguns dos seus pequenos excedentes; entre as populações piscatórias era às mulheres que competia a venda e a preparação, para algum tempo de conserva, do peixe capturado pelos homens da família e esse trabalho fazia-se na rua, no contacto com os outros; muitas mulheres, ao menos em meio urbano, desenvolviam uma actividade profissional, na maioria dos casos no âmbito de um pequeno comércio a retalho, o que, naturalmente, proporcionava inúmeros contactos dia a dia repetidos. Isto é, a esfera de actividade das mulheres, de todas as mulheres, desenvolvia-se sempre em espaços que passavam, ao menos, pela sua aldeia, pelo seu bairro, pela sua cidade ou vila. Mas como é que essas mulheres eram conhecidas dentro da comunidade de que faziam parte? Como é que os outros, para lá do círculo das suas relações mais próximas, as identificavam?» In Iria Gonçalves, Notas sobre a Identificação Social Feminina nos finais da Idade Média, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 4, Nº 5, 2008, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/JDACT

Portugal é uma Ilha. Alexandre Borges. «A 19 de Junho, o povo aclama António rei de Portugal, no Castelo de Santarém. Lisboa e Setúbal seguir-lhe-ão, depois»

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«(…) A relação entre tio e sobrinho nunca deixará de se deteriorar, mesmo tendo em conta que, à frente dos problemas familiares, deveria ter sido colocado o superior interesse do reino. A 23 de Novembro de 1579, o rei-cardeal decide cortar o mal pela raiz: confisca os bens de António, expulsa-o do reino e retira-lhe a nacionalidade portuguesa. Mas era uma das últimas acções que faria em vida: a 31 de Janeiro seguinte, perdia o longo combate para a morte, deixando Portugal ainda sem o corpo de Sebastião I, sem lhe ter conseguido dar um sucessor natural e sem que tivesse a coragem de nomear um alternativo. Medos, especulações e fantasias delirantes tinham agora terreno livre para medrar. Enquanto os cinco membros da junta governativa não tomavam uma decisão quanto ao futuro do reino, apresentavam-se candidatos e faziam-se números de equilibrismo para justificar pretensas legitimidades genealógicas. Com o colapso da descendência de João III, era preciso recuar ao rei Manuel I para procurar uma via alternativa à linha natural da dinastia. Assim, encontrávamos quatro netos de o Venturoso: Catarina de Bragança, que tinha em seu desfavor ser a única mulher da lista, mas que era simultaneamente a única neta por varonia, já que era filha de um filho de Manuel, o infante Duarte; Manuel Felisberto, duque de Sabóia e filho de dona Beatriz; Filipe II, rei de Espanha e filho de dona Isabel; e António, prior do Crato, filho do infante Luís e, portanto, neto por via masculina, mas sobre quem pesava a dúvida de se poder tratar de um filho ilegítimo. Acima de todos eles, pairava ainda um fantasma: Sebastião I. Enquanto o cadáver não fosse encontrado, o rei vivia nos corações do povo, sarava as feridas e recuperava forças para surgir com um exército salvador, a qualquer momento, na linha do horizonte. Rapidamente, António e Filipe II de Espanha vão emergir como os candidatos mais fortes. As estratégias que seguem, no entanto, são opostas: o primeiro apela ao povo, o segundo, ao poder. António recupera o espírito da crise de 1383-85 (eu digo Revolução) quando, numa situação com alguns paralelos, o país se uniu em torno de um sentimento patriótico para aclamar rei João I, em detrimento de João de Castela. O povo adere à causa, apoia António e recusa entregar-se a mãos espanholas, mas do outro lado está boa parte da nobrezae do clero. Filipe II consegue seduzi-la para a ideia que já circulava de uma alegada União Ibérica, uma monarquia dual onde os reinos conservariam as respectivas soberanias, com a vantagem de assegurar a estabilidade financeira de que Portugal tão necessitado estava. O rei de Espanha beneficiava ainda de outro factor de peso: o medo de que a questão se arrastasse para um confronto militar no qual o exército português, desfeito em Alcácer Quibir, não teria qualquer hipótese. Contudo, pelo sim, pelo não, Filipe jogou ainda mais uma carta: o suborno das figuras mais influentes do reino, um argumento clássico, com provas dadas ao longo da História, um pouco por todo o mundo. Contudo, a facção patriótica não se renderia. A 19 de Junho, o povo aclama António rei de Portugal, no Castelo de Santarém. Lisboa e Setúbal seguir-lhe-ão, depois, o exemplo, um terrível atrevimento que teria a resposta de Filipe...
Poucas semanas volvidas, Fernando Alvarez Toledo Pimentel, duque de Alba, recebe do rei de Espanha a missão de tomar Portugal pela força. Fá-lo em duas frentes: por terra, com um exército numeroso e bem preparado, e por mar, com uma frota que descia ao longo da costa, desde o Norte de Espanha. Cascais, São Julião, Belém e Caparica rendem-se com facilidade; só os homens que António I conseguisse reunir lhe podiam fazer frente. Mas, com os apoios internos minados pelos subornos e ameaças de Filipe e os externos, pedidos a França e Inglaterra, a tardarem em chegar, António I não conseguiu mais do que uma pequena tropa, que aguardou o duque de Alba na margem esquerda da ribeira de Alcântara. A 25 de Agosto, a batalha foi rápida. Não terá durado mais do que meia hora, mas foi quanto bastou para semear alguns milhares de mortos dum lado e doutro da contenda. Ferido, António I consegue fugir. Estará refugiado em França quando as Cortes de Tomar, se reunirem, em Abril do ano seguinte, e aclamarem formalmente Filipe de Espanha como Filipe I, rei de Portugal». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «A resolução, propôs a si própria enquanto arrastava os brincos verdes na palma da mão direita, parecendo esquecida que tinha de sair, sentindo-o bem mais do que o sabendo a esperá-la»

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«(…) Poisou a escova no pequeno armário ou apenas na borda do lavatório onde a água se aquieta, baça. Olha-se e parece não reparar no ruído da porta que dá para o quarto; é no entanto um ruído demasiado agudo para que não o tenha ouvido; todavia, na cara pálida, inexpressiva, nada se modifica, somente o corpo parece ter um pequeno movimento de fuga ao aproximar-se mais do lavatório, quase roçando o frio húmido da pedra. Os cabelos lisos, soltos, são agora nos dedos dele muito mais exactos. Nos ombros os seus cabelos e os dedos dele, nos ombros a arrastarem crispados de pressa os rolos finos das alças para os braços. Os braços caídos, moles, e os olhos fixos na escova azul a afundar-se devagar, sem ruído, na água tépida do lavatório.

O banho
Mergulha o corpo, deixa-o escorregar até aos ombros na água morna. Tem os cabelos presos numa espécie de touca amarelo-escura, da cor do robe turco pendurado nas costas da cadeira de ferro sobre a qual a toalha se encontra. Mergulha o corpo, de uma palidez doentia, que vai tomando a coloração rosada, só levemente rosada, que a temperatura da água lhe empresta. Move as pernas, os braços, escorrega ainda um pouco mais e assenta finalmente a nuca na borda redonda, curva, da banheira branca, leitosa, incrustada no mármore amarelo-torrado. O vapor que se agarra às paredes, embacia os espelhos, que adere aos frascos de sais, frascos grandes de vidro grosso, e à enorme taça dos sabonetes, parece enevoar-lhe os olhos, adensando-se lhe nas pupilas. Quase líquido. (O silêncio tem um limite no seu respirar e no movimento da água a deslizar-lhe no corpo.) As mãos assentes perto do púbis adquirem uma imobilidade modelada na carne. Vê o robe sobre o qual a cor dos seus cabelos tombará pesada, a luz filtrada pelas persianas, vê o tecto, apenas o pedaço do tecto perto da janela a formar o ângulo para o início da parede, a parede suada pelo vapor da água; a janela, vê a janela enorme, os cortinados: não os cortinados, mas antes uma espécie de persiana interna, solta, da cor dos azulejos, dos armários, excepto da cadeira de ferro trabalhado, azul, do lavatório azul, e dos frascos: cor-de-rosa e verdes, num vidro grosso, liso, alguns rugosos, negros ou brancos, também amarelos, e a enorme taça azul onde as cores brilhantes dos sabonetes se submetem umas às outras a ponto de não se poder dizer uma. Vê a pele distendida do corpo: o corpo. Dir-se-ia antes uma estátua jacente. A imobilidade quebrada apenas pelas pálpebras que descem agora a encobrir o olhar: velado. Nada lhe interessa, nem apenas o suficiente para que um músculo se lhe mova no rosto. Será assim? E ela bem sabe, ou somente pressente o erro. Por isso mesmo e porque não encontra a maneira de sair daquele vício, afunda-se nele sem remédio. Nada mais lhe interessa para além da barreira ostensiva do isolamento que constrói, que diariamente constrói contra eles. Os dedos percorrem o corpo, ao de leve, dissolvendo o sabonete rosado na água já leitosa. Estende o braço para o deixar cair perto da taça, a escorregar no amarelo-escuro dos azulejos. De pé no tapete branco, veste o roupão sobre o corpo molhado e, arrancando a touca, sente tombarem pesados os cabelos, num movimento livre, espontâneo. Quieta, demora ainda no corpo e dentro de si a frescura tépida que lhe escorre na pele.

A resolução
A resolução, propôs a si própria enquanto arrastava os brincos verdes na palma da mão direita, parecendo esquecida que tinha de sair, sentindo-o bem mais do que o sabendo a esperá-la, decerto já impaciente, pronto, ansioso por conduzi-la uma vez ainda através de todas aquelas salas repletas de gente, enquanto a adivinhava distante, mole, sob a pressão dura, habitual dos seus dedos, enquanto lhe adivinhava os olhos velados. Indiferente, o sorriso parado, estático: e passava os brincos compridos, flexíveis, da palma fria de uma mão para a outra, imaginando-o perante a recusa, a completa recusa de o seguir, porém demorando cada vez mais os movimentos. O fato branco estendido sobre o cadeirão, o fato branco decotado nas costas; demorando cada vez mais os movimentos, adiando minuto a minuto a resolução a que se propunha, conhecendo de antemão ao que se iria expôr, mas sem coragem, ou antes, sem vontade de o impedir, lassa, indiferente, tudo como se lhe fosse indiferente, porém a náusea, o vómito cravado na garganta mal lhe sinta os dedos a empurrarem-na por entre toda aquela gente, fazendo-a parar ou demorar-se, exausta: detinha-se estonteada, conseguindo finalmente arrancar o braço dormente de sob a pressão firme dos seus dedos, o fato branco direito no corpo, solto nas ancas e no ventre, o fato branco agora sobre o cadeirão e ainda por estrear, como sempre um fato por estrear e ela a demorar-se na resolução já distante, já adiada, os brincos de esmeraldas a tocarem-lhe os ombros nus, todavia neste momento apenas flexíveis entre as palmas macias das suas mãos. Mas prende-os já nos lóbulos pequenos das orelhas, o fato solto nas ancas, sobre o ventre; e lívida, de uma palidez a marcar mais, se possível, o branco do vestido, dirige-se hirta pelo corredor». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia PEAmérica/JDACT

O Êxtase de Gabriel. Sylvain Reynard. «… contemplando preguiçosamente a pele nua e os longos cabelos escuros de Julia. Quando Gabriel retomava a sua leitura, ela moveu-se ligeiramente e gemeu. Preocupado, pôs o jornal de lado»


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Florença. 1290
«Com uma mão trémula, o poeta atirou o bilhete ao chão. Ficou sentado por alguns instantes, imóvel como uma estátua. Depois, cerrando os dentes, pôs-se de pé e correu pela casa em alvoroço. Ignorando mesas e objectos frágeis, desdenhando os outros habitantes da sua casa. Só desejava ver uma pessoa. Caminhou a passo rápido pelas ruas da cidade, e quase começou a correr ao aproximar-se do rio. Deteve-se na extremidade da ponte, a ponte que era sua e dela, e os seus olhos rasos de água percorreram a margem adjacente do rio, procurando o mais ténue vestígio da sua amada. Ela não se encontrava em parte alguma. E não voltaria. A sua amada Beatriz tinha desaparecido.
O professor Gabriel Emerson estava sentado na cama, nu, a ler La Nazione, o jornal florentino. Acordara cedo no Palazzo Vecchio Penthouse do Gallery Hotel Art e pedira que lhe servissem o pequeno-almoço no quarto, mas não resistira a voltar para a cama, para observar Julia, que ainda dormia. Estava deitada de lado, voltada para ele, respirando tranquilamente, um diamante reluzindo-lhe na orelha. Tinha as faces rosadas do calor do quarto, pois o sol que entrava pelas portas envidraçadas incidia sobre a cama. Os lençóis estavam deliciosamente amarrotados, cheirando a sexo e a sândalo. Os olhos de Gabriel brilhavam, contemplando preguiçosamente a pele nua e os longos cabelos escuros de Julia. Quando Gabriel retomava a sua leitura, ela moveu-se ligeiramente e gemeu. Preocupado, pôs o jornal de lado.
Julia encostou os joelhos ao peito, enroscando-se. Murmúrios escaparam-se-lhe por entre os lábios, e Gabriel aproximou-se, tentando, sem êxito, decifrar o que ela dizia. Subitamente, o corpo dela contorceu-se, e Julia soltou um grito cortante, debatendo-se contra o lençol que a envolvia. Julianne? Gabriel pousou-lhe uma mão sobre o ombro nu, mas ela afastou-se. Julia começou a murmurar o nome dele, uma e outra vez, num pânico crescente. Julia, estou aqui, disse Gabriel, falando alto. Quando estendeu de novo a mão para lhe tocar, ela ergueu-se em sobressalto, arquejando. Estás bem? Gabriel aproximou-se, resistindo ao impulso de lhe tocar. Sob o seu olhar cauteloso, Julia continuava ofegante, agitando uma mão diante da cara. Julia? Ao fim de um minuto longo, tenso, ela encarou-o, abrindo muito os olhos. Gabriel franziu o sobrolho. Que aconteceu? Julia engoliu ruidosamente. Tive um pesadelo. Sobre quê? Estava no bosque junto à casa dos teus pais, em Selinsgrove. As sobrancelhas de Gabriel uniram-se por detrás dos seus óculos de aros escuros. Porque havias de sonhar com isso? Julia respirou fundo e cobriu os seios, puxando o lençol até ao queixo. O tecido espesso e branco envolveu toda a sua figura pequena antes de se encapelar, como uma nuvem, sobre o colchão. Fez lembrar a Gabriel uma estátua ateniense.
Fala comigo, Julianne, disse, passando-lhe suavemente os dedos sobre a pele. Ela contorceu-se sob o seu olhar azul penetrante, mas Gabriel insistiu. O sonho começou maravilhosamente. Fizemos amor à luz das estrelas e adormeci nos teus braços. Quando acordei, tinhas desaparecido. Sonhaste que eu fazia amor contigo e depois te abandonava?, perguntou Gabriel, num tom mais frio, tentando mascarar o seu desconforto. Já uma vez acordei sem ti no pomal, censurou-o Julia, calmamente. O fogo que Gabriel sentira no ventre extinguiu-se instantaneamente. Recordou aquela noite mágica, seis anos antes, em que se tinham conhecido, uma noite em que tinham apenas conversado e dormido abraçados. Gabriel acordara, de manhã, e afastara-se, deixando uma adolescente adormecida completamente sozinha. A ansiedade de Julia era compreensível, e até comovente. Gabriel soltou os dedos apertados de Julia, um a um, beijando-os com remorso. Amo-te, Beatriz. Não vou deixar-te. Sabes isso, não sabes? Magoar-me-ia muito mais perder-te agora. De sobrolho franzido, Gabriel rodeou-lhe o ombro com um braço, puxando-a para si e fazendo-a pousar a cara no seu peito. Pensou na noite anterior, e uma miríade de memórias invadiu-lhe a mente. Vira-a nua pela primeira vez e iniciara-a na intimidade do amor. Julia partilhara a sua inocência com ele, e Gabriel julgava tê-la feito feliz. Não havia dúvida de que fora uma das melhores noites da vida dele. Ponderou esse facto por um instante. Arrependes-te do que aconteceu esta noite? Não. Estou feliz por teres sido o meu primeiro. Era o que queria desde que nos conhecemos. Gabriel acariciou-lhe a cara, percorrendo-lhe a face com o polegar. É uma honra ter sido o teu primeiro. Inclinou-se para ela, sem pestanejar. Mas quero ser o último». In Sylvain Reynard, O Êxtase de Gabriel, 2012, Saída de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-504-1.

Cortesia de SEmergência/JDACT

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «No caso do papa Bórgia, muitas questões permanecem em aberto. Não que faltem hipóteses, suposições ou especulações, mas nem sempre se pode apresentar provas. Para o historiador, reconhecer a falta de conhecimento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Bórgia, o papa sinistro
«(…) A fronteira entre a verdade e a difamação desenfreada não está, em hipótese alguma, delimitada. Embora venha à tona com a devida clareza a que propósitos servem essas histórias escandalosas que circulam por aí, nem tudo o que se diz à boca pequena sobre o papa e sua família tem de necessariamente ter sido inventado, não se pretende de forma alguma favorecer o surgimento de histórias misteriosas. Em vez disso, trata-se de submeter a uma nova investigação todas as referências transmitidas, incluindo os documentos que nos últimos séculos tornaram-se acessíveis pela primeira vez: o que pode ser dado como certo, o que fica em aberto, o que é menos plausível, o que está obviamente errado? Isso soa como um trabalho de detective e, de facto, assemelha-se a ele. É possível ler a história de Alexandre VI e dos Bórgia como um romance policial. Não há nada de aviltante nisso. A revisão de indícios, a consideração de situações sob pontos de vista diferentes e muitas vezes contraditórios e, especialmente, a investigação dos motivos são actividades intelectuais de conotações nobres. Levam aos métodos da crítica das fontes e, com isso, a possibilidades, riscos e limites da história como ciência. E tem mais a oferecer do que meras teorias. Quem conhece Alexandre VI, em suas negociações com embaixadores de potências estrangeiras, e César Bórgia, ao lidar com seus inimigos, é instruído detalhadamente nas artes da propaganda, da manipulação e do engano, e tem todo o direito de tirar conclusões legítimas de que o abismo entre as aparências e a realidade na política persiste até hoje. A história ensina a vida. Mesmo com todas as semelhanças, as investigações a respeito de Alexandre VI e seus familiares apresentam uma diferença crucial em relação ao trabalho de detective. Os romances policiais geralmente acabam com a identificação dos culpados e da revelação de seus motivos. No caso do papa Bórgia, muitas questões permanecem em aberto. Não que faltem hipóteses, suposições ou especulações, mas nem sempre se pode apresentar provas. Para o historiador, reconhecer a falta de conhecimento e até mesmo a incapacidade de compreensão é, portanto, um acto de honestidade. A ideia central deste livro deve ser a tentativa de trazer á luz a árdua verdade histórica, tendo liberdade até mesmo para chegar a outros resultados que não aqueles das pesquisas do autor principal, que se abstém de todo e qualquer julgamento moral. As emoções que, todavia, permeiam o texto referem-se pura e simplesmente a observações, acções e sofrimentos dos contemporâneos. Não será essa discrição uma violação das regras que garantem a exactidão? Não será aqui exigida a expressão piedosa de compaixão para com os perseguidos, expropriados e assassinados? Há três maneiras de contestar. Por um lado, quanto menor for a imposição do autor, mais naturalmente será levado a tomar partido das vítimas. Por outro, os seus contemporâneos, Nicolau Maquiavel, Francesco Guicciardini e Francesco Vettori, só para mencionar três dos mais ilustres, já interpretaram os excitantes acontecimentos do pontificado Bórgia como um objecto que nos obriga a reflectir e conduz a novos universos de ideias. E em terceiro e último lugar, a admiração da posteridade diante do presente não será supostamente menor do que a nossa estupefacção perante Roma e o papado entre 1492 e 1503. Essa estupefacção está no começo de todas as tentativas de compreender Alexandre VI e os Bórgia». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o papa sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia EEuropa/JDACT