sábado, 29 de fevereiro de 2020

Isabel I. O Anoitecer de um Reinado. Margaret George. «Leicester tentou iniciar um contra-argumento. Competente? É isso o que você acha? Guarde a sua opinião para você mesmo!»

Cortesia de wikipedia e jdact

Isabel. Maio de 1588
«(…) Levantei a mão para calá-lo por um instante e disse: mais tarde. Por enquanto temos que decidir a implantação dos nossos recursos gerais. Assim, almirante Howard, você recomenda dois esquadrões separados de navios? Não seria melhor posicioná-los todos na entrada do Canal? Não. Se eles passarem por nós lá, terão o resto do caminho livre. Tomarão o Canal, a menos que já estejamos esperando por eles mais adiante. Não acho, interrompeu Drake. Quieto!, silenciei-o. E as nossas forças de terra? O que você diz, primo?, perguntei para Henry Carey, lorde Hunsdon. Era um homem grande que me fazia lembrar um urso, e como tal parecia pertencer à natureza. Fora responsável pelas Marchas do Leste, montando a sua base próxima à fronteira escocesa. Serei responsável pela sua segurança, disse. Terei forças com base em Windsor. Caso as coisas fiquem mais..., incertas..., posso garantir-lhe um local seguro no interior. Nunca me esconderei no interior!, respondi. Mas Vossa Majestade deve pensar no seu povo, insistiu Walsingham. Deve designar substitutos para supervisionar a administração de suprimentos e para o controle dos preparativos defensivos, ao mesmo tempo em que cuida de si mesma. Pelo amor de Deus!, gritei. Eu mesma supervisionarei tudo isso! Mas isso não é aconselhável, disse Burghley. E quem é contra?, indaguei. Comando este reino e não devo em hipótese alguma delegar o seu alto-comando a outros. Ninguém se preocupa mais com a segurança do meu povo do que eu.
Mas a senhora não é... Leicester tentou iniciar um contra-argumento. Competente? É isso o que você acha? Guarde a sua opinião para você mesmo! Ah, ele me enlouquecia às vezes! E só ele se sentia seguro o suficiente para expressar sua péssima opinião sobre mim como líder de guerra. Agora, e o restante das forças? Virei-me para Hunsdon e perguntei: quantos homens conseguiremos reunir? Nos condados do sul e do leste, talvez uns 30 mil. Mas muitos são garotos ou velhos. E muito mal treinados. Medidas defensivas?, perguntei. Farei com que algumas das pontes antigas sejam demolidas e podemos colocar barreiras no Tamisa para impedir que a Armada navegue até Londres. Lamentável, esbravejou Drake. Se a Armada chegar assim tão longe, será única e exclusivamente porque eu, John Hawkins, Martin Frobisher e o grande almirante aqui presente estaremos mortos. Aquela era uma observação importante. Fiz um gesto com as mãos para que eles ficassem quietos. Fechei os olhos e tentei organizar meus pensamentos, procurando entender tudo o que havia sido dito.
Muito bem, sir Francis Drake, concordei. Vou permitir a sua estratégia. Navegue até ao sul para enfrentar a Armada. No entanto, deve retornar no mesmo instante em que sentir que estamos em perigo. Quero todos os navios aqui para enfrentar o inimigo se ele vier. Encarei os olhares dos demais, fixos em mim e continuei a delegar: você, almirante Howard, deve comandar o esquadrão oeste, com base em Plymouth. Além disso, será comandante-geral das forças tanto em terra quanto em mar. Seu navio será o Ark. Drake será seu segundo comandante. Você se importa, Francis? O almirante Howard será seu oficial comandante. Drake concordou». In Margaret George, Isabel I, O Anoitecer de um Reinado, tradução de Lara Freitas, Geração Editorial, 2012, ISBN 978-858-130-076-4.

Cortesia de GeraçãoE/JDACT

As Crianças de Cárquere. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Então, Gomes Nunes sugerira que a filha falasse com a mãe, Elvira Peres Trava. A família da mulher sempre dominara a Galiza. A Elvira sabe muito!...»

jdact

As Crianças de Cárquere. 1146
Tui, Dezembro de 1146
«(…) O meu sogro explicara-lhes os procedimentos em Cárquere. As crianças cresciam no mosteiro até aos doze anos, momento em que conheciam o seu destino. Os rapazes eram perfilhados por agricultores ou entregues a cavaleiros-vilãos, que os adoptavam como escudeiros, levando-os para os territórios a povoar no Sul. Quanto às meninas, aprendiam o ofício de criadas, padeiras, lavadeiras ou taberneiras, mas as mais bonitas eram cedidas aos cavaleiros-vilãos, como esposas. Ninguém voltava a Cárquere. Garanto-vos que não fui o único rico-homem portucalense a lá deixar pecadilhos!, rematara o meu sogro. Curiosa, Chamoa murmurara: Egas Moniz? Gomes Nunes confirmara que meu pai tinha também levado uma menina a Cárquere. Depois, acrescentara: e o vosso marido...
Surpreendida, Chamoa franzira as sobrancelhas. Paio Soares tinha mais de quarenta anos quando casara com ela, que só lhe conhecia um filho bastardo, o templário Ramiro. Pelos vistos, havia mais. Durante o tempo que estivemos casados?, perguntara. O pai tranquilizara-a, os pecados do marido eram anteriores ao matrimónio, mas Chamoa encolhera os ombros.
Cor… de morto, já nasce torto.
Curiosa, perguntou ao pai se acreditava na história de Afonso Henriques ser um aleijadinho trocado, mas o meu sogro revelara-se descrente. A intriga de Compostela soava-lhe a uma trapalhada, típica da maliciosa rainha Urraca. Afonso VII limitava-se a seguir as pisadas da mãe. Algo se passou, afirmara Chamoa. Então, Gomes Nunes sugerira que a filha falasse com a mãe, Elvira Peres Trava. A família da mulher sempre dominara a Galiza. A Elvira sabe muito!, insinuara Gomes Nunes.

Quando as nossas duas comitivas se juntaram, já perto de Tui, e depois de relatar a conversa com o pai, Chamoa revelou a sua apreensão e nervosismo, por se ir encontrar com a mãe. Há muitos anos que não falava com Elvira Trava. Vira-a pela última vez em Arcos de Valdevez e não tinha saudades daquela desagradável criatura.
É uma ruim senhora...
A minha sogra Elvira considerava a filha uma traidora aos interesses familiares dos Trava. Porém, Chamoa levava mais a peito a forma como a mãe destratara o pai. Além de o encornar repetidamente, deixara-o cair em desgraça.
Quis ser dona de Tui e de tudo em redor...
Fosse como fosse, era imperativo reconhecer que Elvira Trava tinha jeito para a lavoura. À volta de Tui, os campos prosperavam e confirmei, ao vê-la, que talento e amabilidade nem sempre andavam juntos. A minha sogra era de uma energia inesgotável, mas também dura e implacável. Um coração de granito, que mantinha vibrantes e acesas as iras antigas.
Quem mais a incomodava era o neto, Pêro Pais, que logo desprezou, insinuando que nunca chegaria a alferes, pois Gonçalo Sousa não deixaria o posto. Aliás, avó e neto estiveram quase a engalfinharem-se, quando a matrona de braços fortes, observando Mem e as três moçárabes que connosco vinham, se indignou: e chamam-me devassa? Olhai para vós! Um almocreve para Chamoa e três mouras para o filhote! Xô, fora daqui, suas infiéis! Ide chupar gaitas em Portugal!
A intervenção pacificadora de minha mulher, Maria Gomes, permitiu atingir um ténue equilíbrio entre aqueles pecadores. Naquela estouvada família, ninguém era isento de erros, todos tinham as suas falhas e excessos. Impunha-se, pois, um armistício nos insultos mútuos. Para mais, não viéramos ajustar contas familiares, mas sim tentar esclarecer a obscura intriga de Compostela. Agora precisam dos Trava?, provocou Elvira. Acalmei-a e ela lá acabou por conceder que, ao longo dos anos, ouvira rumores. Dona Teresa não tinha certezas sobre o filho». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9
                                                 
Cortesia da CasadasLetras/JDACT

A Lenda de Santa Maria de Cárquere. Isabel Cruz. «Assustado, o infante levanta-se com esforço, evitando as chamas e a queimadura certa. Curado sim, com a ajuda da Nossa Senhora. E regressam à corte, aio e amo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Com a devida vénia a Isabel Cruz

Onde se pergunta quem foi, afinal, o primeiro rei de Portugal.
«Falamos de uma história de novecentos anos, mais pózinho, menos pózinho, quando Portugal era ainda uma miragem. Afonso VI de Castela e Leão, imperador de toda a Hispânia, quando do matrimónio de sua filha ilegítima dona Teresa com o conde Henrique da Borgonha, tinha criado o Condado Portucalense, oferecendo-o como dote a sua filha. Os condes de Portucale governavam este cantinho da Península, vassalos do Rei de Castela.
Ora, vivia na corte um fidalgo, Egas Moniz de seu nome, pertencente à nobre família de Ribadouro. Homem de toda a confiança, solicitou aos seus amos que lhe permitissem a honra de ser aio do futuro governante. E assim se fez quando nasceu Afonso Henriques que veio a ser o único descendente masculino sobrevivente de Henrique e Teresa. Pobre Afonso! Dizem alguns que terá nascido fraco, com as perninhas tortas, as más línguas diziam até que era corcundinha. Temeu-se pela sua vida. Era este bebé o futuro conde, o futuro chefe militar? Que futuro para o Condado! Que grande tristeza!
Egas Moniz era profundamente dedicado ao pequeno. Foi seu tutor, amigo, mestre d’armas… O bem-estar do amo era a sua preocupação maior. Devoto da Virgem Maria, rezava-lhe amiúde, pedindo pela saúde da criança que tanto amava. Teria Afonso uns 5 anos de idade, quando sonhou Egas com Nossa Senhora. Esta ordena-lhe: vai, Egas Moniz! Leva Afonso à minha igrejinha de Cárquere (Resende) e aí será curado! Egas pôs-se a caminho com o jovem infante, cheio de esperança.

Colocado o pequeno no altar, terá então procurado uma imagem escondida da Virgem, acendido 2 velas e esperado, murmurando as suas preces. O tempo, nesse tempo sem relógios, passa. Egas adormece, cansado. Uma das velas cai. Assustado, o infante levanta-se com esforço, evitando as chamas e a queimadura certa. Curado sim, com a ajuda da Nossa Senhora. E regressam à corte, aio e amo.
O povo rejubilou!!!! O conde Henrique, agradecido pela graça concedida, manda construir, junto à igreja, o Mosteiro de Santa Maria de Cárquere. Egas Moniz foi obreiro do milagre. Mas será que foi mais do que isso?
É que se conta, no rol de histórias que passam, que o infante, frágil e enfezado, não terá resistido à primeira infância, deixando o domínio sem herdeiros masculinos… E que Egas Moniz, combinado ou não com o conde Henrique, terá trocado a criança morta por um dos seus próprios filhos, assegurando assim a continuação do Condado Portucalense… Quem sabe?

Sabe-se que Afonso cresceu e se fez homem. Alto e forte, segundo estudos feito no seu túmulo, dizia-se que a sua espada era pesadíssima e que nenhum outro poderia manejá-la. E não queria ser conde! Queria ser Rei! E, para tal, combateu os do seu próprio sangue (?), com Egas Moniz sempre a seu lado. Conforme se diz noutro relato, no auge da guerra pela independência de Portugal, Egas Moniz faz uma promessa de cavaleiro ao rei de Castela e Leão, Afonso VII, em nome de Afonso. Afonso não cumpre! Então Egas Moniz e a família viajam a Toledo, apresentando-se ao Rei de Castela e Leão, todos de corda ao pescoço, oferecendo a vida. Afonso VII, condoído, perdoa… E os Moniz voltam para Portugal. Para seu rei…, ou seu parente chegado?
Ao falecer Egas, foi sepultado junto ao seu Paço de Sousa, Penafiel. Posteriormente, foi transladado para o interior do Mosteiro. É então que, para espanto de todos, se viu serem os ossos das suas pernas extremamente longos, transformando-o aos olhos das gentes num homem descomunal, um verdadeiro gigante para a época. Aio ou pai do primeiro Rei de Portugal, Egas Moniz foi, sem dúvida, um homem lendário!»


«O Mosteiro de Santa Maria de Cárquere é um mosteiro de Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, datado do século XII, constituído por uma igreja, de base românica, modificada no gótico, constituída por uma nave, capela-mor, sacristia, panteão e torre sineira, e por uma zona conventual construída em volta de um claustro. Nesta se pode encontrar a mais antiga iconografia da Gaita de Foles conhecida na Península, esculpida num capitel. Santa Maria de Cárquere vem referido na Crónica de 1419 como local da cura milagrosa de Afonso Henriques. Egas Moniz da casa de Ribadouro teria pedido ao conde Henrique, que o deixasse ser o aio da descendência que esperava de dona Teresa, independentemente de vir a ser um filho varão ou uma filha. Nasceu então Afonso Henriques mas, segundo a lenda, o infante recém-nascido apresentava uma má formação nas pernas que fazia temer o pior:

quando veio o tempo que a Rainha houve seu filho grande e fermoso mais que não podia mais ser moço da sua idade, senão tam soomente que tinha as pernas encolheitas, em guisa que todos dezião, assi mestres como os outros, que nunqua mais podia ser são delas.

Recebendo Egas Moniz a incumbência que tinha rogado ao conde ao ser nomeado aio encarregado da educação do infante, ficou muito sensibilizado pela maleita do recém nascido:

E, quando Egas Monis vio tam bella criatura e o vio assim tolheito, ouve dela mui grande doo, pero, confiando em Deus que lhe poderia dar saude, tomou o moço e feze-o criar tam bem e tam honradamente como se fizera se fora são.

Então, quando a criança tinha cinco anos, o milagre?! aconteceu e Santa Maria apareceu ao aio dizendo-lhe que buscasse um lugar onde existia uma igreja inacabada que lhe era dedicada e aí fizesse vigília e no altar colocasse a criança que seria curada. Egas Moniz assim procedeu e a criança foi curada. Diz-se então que, por força deste milagre, foi construído nesta igreja o mosteiro por Henrique:

E por este milagre que asi acontece o foi depois feito nesta igreja o mosteiro de Cárcere».
[…]
In Wikipedia

Cortesia de Isabel Cruz/Wikipedia/JDACT

As Crianças de Cárquere. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «A custo, seu pai lá acabara por admitir que, em trinta e tal anos, lançara ao mundo dez crianças. E onde estão agora?»

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As Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Deitei água fria em tal disparate. Era impossível entrar em Silves sem ser descoberto, muito menos chegar à fala com a princesa. Mem teria de ser paciente até que um dia a garra de Ibn Qasi afrouxasse e Zaida pudesse escapar-se daquela opressão inglória e infeliz. Ela jamais colocará a filha Maryam em risco. Após um longo silêncio, Mem sorriu-me e disse: já sou cavaleiro. Quando a Zaida fugir, caso-me com ela! O recente título enchia-lhe o coração de urna grandiosa expectativa e falava como se um destino inexorável tivesse sido corrigido. Uma princesa que aspirava ao trono de Córdova nunca poderia desposar um almocreve, mas podia fazê-lo com um cavaleiro portucalense. Ele só tinha de aguardar pelo momento certo.
Muita paciência, traz sapiência.
Assim sendo, Mem aceitou a sugestão que Chamoa lhe fez. A minha cunhada desafiara-nos, a mim e à minha Maria, a uma ida a Tui, onde ela iria também passar o Natal, com dona Justa e os seus seis filhos. E, saudosa do seu amigo, mas pensando também em Pêro Pais, que se aborrecia muito no Norte, Chamoa estendeu o convite a Mem e às três irmãs moçárabes. Sente-se sozinha e quer-nos todos por lá, comentou a minha esposa, Maria Gomes. Na verdade, meus queridos filhos e netos, eu sabia que não era apenas a saudade que movia a minha cunhada. Chamoa já fora visitar o pai, Gomes Nunes, que lhe contara novidades sobre a intriga de Compostela...

Tui, Dezembro de 1146
Meu pai envelheceu muito. Está triste, e quase cego. A lamentosa descrição de Chamoa comoveu-me e tive pena do meu sogro, Gomes Nunes, que muito estimava. O imperador Afonso VII punira-o com exagerada dureza, obrigando-o não só à perda do título de conde de Toronho, mas também a um retiro forçado no mosteiro portucalense de Pombeiro, perto de Guimarães. Vigiado em permanência, o pacato Gomes Nunes aceitara o castigo com a habitual submissão. Semanas antes, Chamoa visitara-o. Aquela extremosa filha emocionara-se com a solidão do pai, que sofria de saudades, fosse dos netos, fosse das criaditas e das padeiras de Tui. Os monges são uns chatos, queixara-se Gomes Nunes. Não lhe permitiam visitas nocturnas. Ainda tentara suborná-los, mas, sem sucesso, entediava-se, um queixume que fez Chamoa sorrir.
Tenho a quem sair...
Moía-o também uma humilhação permanente: a sua mulher, Elvira Peres Trava, vivia alegremente no castelo que fora de ambos. Diz-se que tem dois amantes, a marafona!, barafustara Gomes Nunes, mais invejoso do que raivoso. Chamoa confrontara o pai com a inconfidência do monge Leopoldo acerca das idas secretas ao Mosteiro de Cárquere.
Embaraçado, Gomes Nunes emudecera, obrigando Pêro Pais, o seu neto mais estimado, a insistir: haveis tido mais filhos? Corado, Gomes Nunes confirmara as suas responsabilidades na gravidez de várias padeiras e criaditas de Tui. Após o nascimento dos rebentos, presenteava as mães com casas e terrenos para cultivo. De seguida, colocava os bebés numa cesta e levava-os de carroça até Cárquere, onde os depositava à guarda dos monges. Quantos irmãos ou irmãs tenho?, perguntara Chamoa. A custo, seu pai lá acabara por admitir que, em trinta e tal anos, lançara ao mundo dez crianças. E onde estão agora?, -questionara Pêro Pais». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9
                                                 
Cortesia da CasadasLetras/JDACT

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Adeus até ao Meu Regresso. Poesia. «Partimos sempre meu amor! Partimos sempre! Acreditei nos dias das flores e punho e parece-me que os de hoje não têm lembrança»

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Adeus até ao Meu Regresso
«Queria descobrir o teu lenço na multidão e não conseguia.
Parecia um bando de pombas brancas acenando para a guerra.
Que ironia…
Atravessei um oceano para chegar a tanta dor.
Para quê?
Levei saudades em todo o corpo que tenho,
trouxe silêncios da cabeça até aos pés.
O que vivi encheu-me a fala.

Adeus até ao meu regresso.

Partimos sempre meu amor! Partimos sempre!
Acreditei nos dias das flores e punho
e parece-me que os de hoje não têm lembrança.
Que a memória já não conta…
Partimos porque a fome não despega, a terra não germina,
a miséria é mais um à mesa e o sol só nasceu para meia-dúzia.
Atravessamos a esperança num barco e atracamos sem conhecer destino.
Sonho que se encomenda…
Onde estavas a acenar-me?

Adeus até ao meu regresso.

Tento perceber o teu lenço.
Tento perceber o teu lenço no meio de tanta gente.
A tua barriga sendo mãe.
O meu tempo não sendo pai.
A minha lonjura permanente.
Doem-me os dias que não mudam.
As dores actuais iguais às de antigamente.
Tantos que o mar ainda come,
a guerra, sempre a guerra,
colhendo vidas em qualquer parte.
Onde ficaste a desenhar no ar uma pomba branca?

Adeus até ao meu regresso».
Poema de Jorge Serafim, in Os Fabulosos Tais Quais

Cortesia de SMusic/JDACT

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Tentou de novo, por várias vezes, e sempre com o mesmo resultado: os dois cavaleiros brincavam com ele, perseguindo-o e derrubando-o, enquanto riam. Por fim, cambaleando e ferido, ficou estendido no chão, junto às patas dos animais…»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Francesca nem sequer olhava para o menino. Aproximava o bebé, a quem deram o nome de Arnau, a um dos seios, e depois a outro. Mas não olhava para ele. Bernat vira as camponesas darem de mamar aos seus filhos e, desde a mais remediada à mais humilde, todas esboçavam um sorriso, ou deixavam fechar-se-lhes os olhos, ou acariciavam os filhos enquanto os amamentavam. Francesca, não. Limpava-o e amamentava-o, mas, nos dois meses de vida que já tinha, o filho de Bernat nunca ouvira a mãe falar-lhe com ternura, nunca a vira brincar com ele, levantar-lhe as mãozitas, mordiscar, beijar ou, simplesmente, fazer-lhe uma festa. Que culpa tem ele, Francesca?, pensava Bernat quando pegava em Arnau nos seus braços. Então, levava-o para longe da mãe, para onde podia acariciá-lo e falar-lhe, a salvo da frieza de Francesca.
Porque o filho era dele. Todos nós, Estany ol, o temos! dizia Bernat para consigo quando beijava o sinal que Arnau exibia junto à sobrancelha direita. Todos nós o temos, pai, repetia depois, levantando o menino para o céu. Esse sinal depressa se tornou algo mais que um motivo de tranquilidade para Bernat. Quando Francesca ia ao castelo para cozer o pão no forno, as mulheres levantavam a manta que cobria Arnau para o verem. Francesca deixava-as fazê-lo e depois sorriam entre si diante do forno e dos soldados. E quando Bernat ia trabalhar as terras do senhor, os camponeses davam-lhe palmadas nas costas e felicitavam-no, mesmo diante do aguazil que vigiava os trabalhos. Muitos eram os filhos bastardos de Llorenç Bellera, mas nunca uma reclamação dera frutos; a palavra dele impunha-se perante a de qualquer ignorante camponesa, embora depois, entre os seus, não deixasse de fazer alarde da sua virilidade. Era evidente que Arnau Estany ol não era seu filho, e o senhor de Navarcles começou a notar sorrisos mordazes nas camponesas que vinham ao castelo; dos seus aposentos, via que cochichavam entre elas, e mesmo com os soldados, sempre que encontravam a mulher de Estany ol. O rumor estendeu-se para além do círculo dos camponeses, e Llorenç Bellera tornou-se alvo dos gracejos dos seus iguais.
Come, Bellera, disse-lhe sorridente um barão de visita ao castelo. Chegou-me aos ouvidos que precisas de ganhar forças. Todos os presentes à mesa do senhor de Navarcles fizeram coro nos risos dessa ocorrência. Nas minhas terras, comentou outro, não permito que nenhum camponês ponha em dúvida a minha virilidade. Porventura proíbes os sinais?, replicou o primeiro, já sob os efeitos do vinho, e dando azo a sonoras gargalhadas, a que Llorenç Bellera respondeu com um sorriso forçado. Aconteceu no início de Agosto. Arnau estava no seu berço, à sombra de uma figueira, no pátio de entrada da casa; a mãe trabalhava entre a horta e os currais, e o pai sempre de olhos postos no berço de madeira, obrigava os bois a pisarem uma e outra vez os cereais que espalhara pela eira, para que as espigas soltassem o precioso grão que os alimentaria durante todo o ano. Não os ouviram chegar. Três cavaleiros irromperam a galope pela quinta: o aguazil de Llorenç Bellera e outros dois homens, armados e montados em imponentes animais criados especialmente para guerrear. Bernat percebeu que os cavalos não estavam armados como nas cavalgadas ordenadas pelo seu senhor. Provavelmente, não tinham considerado necessário armá-los para intimidar um simples camponês. O aguazil manteve-se um pouco afastado, mas os outros dois, já a passo, esporearam as suas montadas para o local onde se encontrava Bernat. Os cavalos, treinados para a guerra, não hesitaram, e lançaram-se sobre ele. Bernat retrocedeu, aos tropeções, até que caiu por terra, muito perto dos cascos dos inquietos animais. Só então os cavaleiros deram ordens para que parassem.
O teu senhor, gritou o aguazil, Llorenç Bellera, reclama os serviços da tua mulher para amamentar Don Jaume, filho da tua senhora, Dona Catarina. Bernat tentou levantar-se, mas um dos cavaleiros voltou a esporear o cavalo. O aguazil dirigiu-se para onde se encontrava Francesca. Pega no teu filho e acompanha-nos!, ordenou. Francesca tirou Arnau do berço e começou a caminhar cabisbaixa, atrás do cavalo do aguazil. Bernat gritou e tentou pôr-se de pé, mas antes que o conseguisse, um dos cavaleiros lançou o cavalo contra ele e derrubou-o. Tentou de novo, por várias vezes, e sempre com o mesmo resultado: os dois cavaleiros brincavam com ele, perseguindo-o e derrubando-o, enquanto riam. Por fim, cambaleando e ferido, ficou estendido no chão, junto às patas dos animais, que não paravam de morder os freios. Quando o aguazil se perdeu na distância, os dois soldados deram meia-volta e esporearam as suas montadas». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Durante os dias seguintes, Bernat continuou a ceifar até ao pôr do Sol; em alguns dias, trabalhou mesmo à luz do luar. Quando regressava a casa, encontrava o jantar na mesa»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Chegou Novembro e Bernat dedicou-se às tarefas próprias dessa época: pastorear os porcos para a matança, acumular a lenha para a casa e para adubar a terra, preparar a horta e os campos que seriam semeados na Primavera e podar e enxertar as vinhas. Quando regressava a casa, Francesca já se tinha ocupado das tarefas domésticas, da horta e das galinhas e coelhos. Noite após noite, servia-lhe o jantar em silêncio e retirava-se para dormir; de manhã, levantava-se antes dele, e quando Bernat descia, encontrava na mesa o pequeno-almoço e a trouxa com o almoço. Enquanto comia, ouvia-a cuidar dos animais no estábulo. O Natal passou como um suspiro e em Janeiro terminou a apanha da azeitona. Bernat não tinha muitas oliveiras, mas apenas as necessárias para cobrir as necessidades da casa e para pagar as rendas ao senhor. Depois, Bernat tratou da matança do porco. Em vida do seu pai, os vizinhos, que raramente iam a casa dos Estany ol, nunca faltavam no dia da matança. Bernat recordava-se desses dias como de verdadeiras festas; matavam-se os porcos e depois comia-se e bebia-se, enquanto as mulheres preparavam a carne.
Os Esteve, pai, mãe e dois dos irmãos, apareceram certa manhã. Bernat saudou-os no terreiro diante da casa; Francesca esperava atrás dele. Como estás, filha?, perguntou-lhe a mãe. Francesca não respondeu, mas deixou-se abraçar. Bernat observou a cena: a mãe, ansiosa, estreitava a filha nos braços, esperando que esta a rodeasse com os seus. Mas ela não o fez. Permaneceu imóvel. Bernat dirigiu o olhar para o sogro. Francesca, limitou-se a dizer Pere Esteve, com o olhar perdido mais para além da rapariga. Os irmãos saudaram-na levantando uma mão. Francesca dirigiu-se à pocilga, para ir buscar o porco; os outros ficaram no terreiro. Ninguém falou; apenas um soluço sufocado da mãe rompeu o silêncio. Bernat sentiu-se tentado a consolá-la, mas absteve-se, ao ver que nem o marido nem os filhos o faziam. Francesca apareceu com o cevado, que resistia a segui-la como se soubesse que destino ia ter, e entregou-o ao marido com o mesmo mutismo habitual. Bernat e os dois irmãos de Francesca obrigaram o porco a deitar-se e sentaram-se em cima dele. Os guinchos agudos do animal ressoavam por todo o vale dos Estany ol. Pere Esteve degolou-o com um golpe certeiro e todos esperaram em silêncio enquanto o sangue do animal caía nos alguidares que as mulheres iam mudando à medida que se enchiam. Ninguém olhava para ninguém.
Nem sequer tomaram um copo de vinho enquanto mãe e filha trabalhavam o porco, já esquartejado. Ao anoitecer, terminada a tarefa, a mãe tentou de novo abraçar a filha. Bernat observou a cena, esperando uma reacção por parte da sua mulher. Não houve nenhuma. O pai e os irmãos despediram-se dela com os olhos postos no chão. A mãe aproximou-se de Bernat. Quando te parecer que a criança está para chegar, disse-lhe, afastando-o dos restantes, manda-me chamar. Não acredito que ela o faça. Os Esteve tomaram o caminho de regresso a casa. Nessa noite, quando Francesca subia a escada para o quarto, Bernat não pôde deixar de observar-lhe a barriga. Em finais de Maio, no primeiro dia das colheitas, Bernat contemplou os seus campos com a foice ao ombro. Como iria ele recolher sozinho todo aquele cereal? Desde há quinze dias que proibira Francesca de fazer qualquer esforço, porque já sofrera dois desmaios. Ela escutara as ordens em silêncio e obedecera. Porque lho tinha ele proibido? Bernat voltou a olhar para os imensos campos que o esperavam. No fim de contas, perguntava-se, e se o filho não fosse seu? As mulheres pariam no campo, enquanto trabalhavam, mas depois de a ver cair, uma e outra vez, não conseguira deixar de se preocupar. Bernat agarrou a foice e começou a ceifar com força. As espigas saltavam no ar. O sol alcançou o meio-dia. Bernat nem sequer parou para comer. O campo era imenso. Sempre tinha ceifado acompanhado pelo pai, mesmo quando este já estava mal. O cereal parecia fazê-lo reviver. Dá-lhe, filho!, animava-o. Não podemos esperar que uma tempestade ou o granizo o destruam. E ceifavam. Quando um estava cansado, procurava apoio no outro. Comiam à sombra e bebiam bom vinho, do seu pai, do envelhecido, e conversavam e riam e..., agora só ouvia o silvar da foice a cortar o vento e a golpear a espiga; nada mais; a foice, a foice, a foice, que parecia lançar ao ar interrogações acerca da paternidade daquele futuro filho. Durante os dias seguintes, Bernat continuou a ceifar até ao pôr do Sol; em alguns dias, trabalhou mesmo à luz do luar. Quando regressava a casa, encontrava o jantar na mesa. Lavava-se na manjedoura e comia com vontade. Até que uma noite, o berço que construíra durante o Inverno, quando a gravidez de Francesca já era evidente, se mexeu. Bernat deu-se conta disso pelo canto do olho, mas continuou a comer a sopa. Francesca dormia no andar de cima. Bernat voltou a olhar para o berço. Mais uma colherada de sopa, duas, três. O berço voltou a mexer-se.
Bernat ficou a olhar para o berço, com a quarta colherada de sopa suspensa no ar esquadrinhou o resto da sala, procurando algum sinal da presença da sogra... Mas não. Ela dera à luz sozinha... E fora-se deitar. Pousou a colher e levantou-se, mas antes de chegar perto do berço, parou, deu meia-volta e tornou a sentar-se. As dúvidas acerca daquele filho caíram sobre ele com mais força do que nunca. Todos os Estany ol têm um sinal junto ao olho direito, dissera-lhe o pai. Ele tinha-o, e o pai também. O teu avô também o tinha, assegurara-lhe, e também o pai do teu avô. Bernat estava esgotado: trabalhara de sol a sol. Durante muitos dias o fizera. Voltou a olhar para o berço. Levantou-se de novo e aproximou-se da criatura. Dormia placidamente, com as mãozinhas abertas, coberta por um lençol feito com os trapos de uma camisa branca de linho. Bernat deu a volta ao bebé para lhe ver o rosto». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Elena. Marina Carvalho. «Tenho plena consciência disso. Na África, não conseguia alimentar-me muito bem. Mas uns quilos a menos não chegaram a fazer grande diferença para mim»

Cortesia de wikipedia e jdact

Elena. A filha da princesa
«(…) Olho pela janela do carro. É impossível evitar as comparações: lado a lado com o povoado da Nigéria, Perla é a visão do paraíso na Terra. Quero dizer, ela sempre foi linda, charmosa, agradável. Mas, depois de passar seis meses num lugar que parece ter sido abandonado por Deus, a capital da Krósvia, minha cidade natal, meu lar, parece ser ainda mais incrível. Pena que meu poder de deslumbramento tenha minguado um pouco desde que conheci a outra face da realidade, chocante, miserável, terrível. A vida jamais será a mesma depois de morar por seis meses naquele povoado nigeriano. Viro-me para meu pai e sorrio. É bom estar em casa. Sabe que a sua mãe vai exigir que se alimente como se o mundo estivesse prestes a acabar, não é?, comenta o pai, em tom de brincadeira. Ele nunca resiste a uma piadinha. Mãe diz que o seu Alex é o rei das tiradas de efeito. Rio-me antes de responder, mas não tenho nenhuma chance, porque ele logo emenda: você está muito magra. Dá até para enxergar os ossos da costela. Exagero dele. Sei que emagreci. Tenho plena consciência disso. Na África, não conseguia alimentar-me muito bem. Mas uns quilos a menos não chegaram a fazer grande diferença para mim. Na verdade, estou até gostando. Pelo menos, o meu quadril avantajado deu uma reduzida. Reviro os olhos e volto a observar a paisagem. Meu pai dirige pelas ruas de Perla em direcção ao Palácio Sorvinski. Nós temos a nossa casa. Fica na periferia da cidade. Foi construída quando eu ainda era pequena. Meu pai fez o projecto, claro, do jeito que minha mãe sonhava, ou seja, nada de ângulos rectos e de aparência clean. A nossa casa reproduz o estilo colonial das cidades históricas brasileiras, inspirada nas construções de Ouro Preto, Tiradentes e Diamantina. No entanto, assim que foi diagnosticada a gravidez de risco da mãe, meu avô, o todo-poderoso (e fofo) rei Andrej Markov, insistiu que ela e, consequentemente, todos nós, ficássemos no castelo, onde haveria alguém para cuidar dela 24 horas por dia.
Claro que, primeiro, a princesa Ana bateu o pé. Mas acabou vencida por muitas vozes contrárias. Eu, da minha parte, se querem saber, estou achando óptimo. Adoro o palácio, a praia particular, os jardins, as pessoas, a comida de Karenina..., tudo! Sigo devaneando sobre os bons tempos que passarei com minha família. Porém, a minha euforia se desvanece um pouco ao lembrar-me de que, como meu período como voluntária na Nigéria ainda não acabou, estou impossibilitada de voltar para a faculdade. Isso significa que logo, logo meu quadril retornará ao tamanho original. Ócio + a comida de Karenina se encarregarão de cuidar dele. Ao avistar as torres do Palácio Sorvinski, uma emoção familiar invade o meu corpo. Prepare-se. Estão esperando por você com as honras e pompas dispensadas à neta do rei, avisa o pai, com uma expressão divertida. Não me importo nem um pouco de ser apaparicada. Então, animada, deixo meu pai envolver os meus ombros com o braço e seguimos até a entrada do castelo, sentindo o estômago revirar por antecipação. Nada como a saudade para nos fazer reafirmar os nossos sentimentos pelas pessoas que amamos. Mal me vejo dentro dos limites do palácio, e várias vozes e braços queridos me assaltam. Elena! Florzinha, que bom que chegou!, exclama Irina, como sempre no ápice da animação.
Ela não é minha avó de verdade nem a considero assim, apesar de ser a esposa do meu avô Andrej e actual rainha da Krósvia. Irina é uma amiga das mais queridas, alguém com quem posso contar em todas as ocasiões, mesmo depois de ter se tornado mãe e se envolvido com todos os problemas da função. E por falar em tio... Já pedi ao Petrov para deixar a lancha a postos. Vamos marcar amanhã? Quem disse isso foi Hugo, meu tio, filho de Andrej e irmão da minha mãe». In Marina Carvalho, Elena, A filha da princesa, 2015, Editora Record, 2015, ISBN 978-850-110-436-6.

Cortesia de ERecord/JDACT

A Sereia. Camilo Castelo Branco. «Águas malditas, pudeste, tão linda e nova, mata-la, matar a pomba celeste! Ai! Pobre anjo da má sorte! Descansa, em fim, que não voltas desses abismos da morte!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Em noites de lua cheia,
Já se não ouve o cantar
Daquela triste Sereia!
Oh pobre rapariga caída,
Já sobre ti se fecharam
Os abismos desta vida!
Diz-me, diz-me, ó lua cheia,
Choras tu na sepultura
Daquela pobre Sereia?
Em que finar-se vão findos
Aqueles cabelos douro,
Aqueles olhos tão lindos!

Águas malditas, pudeste,
Tão linda e nova, mata-la,
Matar a pomba celeste!
Ai! pobre anjo da má sorte!
Descansa, em fim, que não voltas
Desses abismos da morte!
Nos céus passa a lua cheia
Para ouvir os teus cantares,
E tu não voltas, Sereia!
Mas um raio de luz pura
Coa-se através dos vidros
Sobre a tua sepultura».

Estes melancólicos tercetos, escritos há cem anos, que significado tiveram? Encontrei-os num livro manuscrito datado de 1768. Em cinquenta páginas de prosa do mesmo manuscrito, descobri o segredo dos versos.

«Estamos no dia 15 de Maio de 1762.
Naquele tempo, os dias de Maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A Primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saia da sua casa às cinco horas duma tarde cálida de Maio, com um casaco de reserva no braço para resistir ao frio das sete horas; nem o paralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante. O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e a ciência dos factos repetidos. Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar no fim do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, passado um indeterminado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta a minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, a final, acabariam de todo com a Primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para o nosso uso em Julho.
De mais disso, o Porto da Primavera de 1762, gozava-se de ar impregnado de aromas, porque, naquela era, grande numero de ruas que hoje respiram vapores nocivos pelos férreos pulmões dos seus edifícios e fábricas, eram quintas, arvoredos, jardins, ourelas e marginados verdejantes de límpidos regatos, que os duetos actuais do gaz degeneraram em água poluída dessas dezenas de chafarizes em que tragamos peçonha. Não era, todavia, o sol nem os aromas que extraordinariamente alegravam as famílias mais gradas da cidade do Porto, no dia 15 de Maio de 1762. As bandeiras que tremulavam, brandamente assopradas por olorosas brisas, por sobre os balcões e rótulos das janelas da rua Chan e Corpo-da-Guarda, significavam algum grande júbilo nacional, que certamente não era casamento de rei, nem nascimento de príncipe. Mais que no comum das famílias burguesas, brincava o contentamento nas ridentíssimas filhas do Chanceler governador das justiças Francisco José Serra Craisbeeck Carvalho, nas graciosas e fogosas meninas do governador general da Província João D’Almada Melo, nas sobrinhas do Cabo-mor Miguel José Moura, nas duas loiras irmãs do senhor de Quebrantões e Gaia-pequena Álvaro Leite Pereira, e muitas mais, assim formosas que bem nascidas. E, depois, que tráfego é este de costureiras que vão e vem; de alfaiates azafamados que sobem e descem duns palácios para outros? Porque está a praguejar aquele fidalgo impaciente contra os desgraciosos anéis da sua cabeleira, enquanto a esposa vocifera contra a modista ignorante que lhe estreitou as anquinhas, deixando-lhe quase molduradas na seda flexível as magras formas da natureza sovina? Porquê tudo isso? Toda esta azáfama desusada na cidade com os seus luxos e fidalgas folias?» In Camilo Castelo Branco, A Sereia, 1762-1768, Editora Luso Livros, Wikipédia.

Cortesia de ELusoLivros/JDACT

As Cruzadas vistas pelos Árabes. Amin Maalouf. «Antes de se afastar, ele envia uma mensagem de adeus aos defensores da cidade para avisá-los da sua dolorosa decisão e lhes recomendar que hajam conforme os seus interesses»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Invasão, 1096-1100
Os franj estão chegando
«(…) Kilij Arslan está empenhado de corpo e alma na batalha de Malatya, quando, nos primeiros dias de Maio, chega um novo mensageiro, ofegante de cansaço e medo. Os franj estao às portas de Niceia, e começam a sitiá-la. Não são mais, como no Verão, bandos de saqueadores esfarrapados, mas verdadeiros exércitos de cavaleiros pesadamente equipados. E desta vez, os soldados do basileu os acompanham. Kilij Arslan tenta acalmar os seus homens, mas ele próprio está torturado de angústia. Deve abandonar Malatya ao seu rival e voltar para Niceia? Estará certo de ainda poder salvar a sua capital? Não irá perder nas duas frentes? Após consultar demoradamente os seus mais fiéis emires, surge uma solução, uma forma de compromisso: ir ver Danishmend, que é homem honrado, colocá-lo a par da tentativa de conquista empreendida pelos rum e os seus mercenários, assim como da ameaça que pesa sobre todos os muçulmanos da Ásia Menor, e propôr-lhe que cessem as hostilidades.
Antes mesmo que Danishmend tenha dado a sua resposta, o sultão despacha uma parte do seu exército para a capital. De facto, uma trégua é concluída após alguns dias, e Kilij Arslan toma sem demora o rumo do oeste. Mas, no momento em que atinge as alturas próximas de Niceia, o espéctaculo que tem diante dos olhos lhe congela o sangue nas veias. A soberba cidade que lhe legou seu pai está cercada por todos os lados; uma multidão de soldados está ali, ocupada em por no lugar torres móveis, catapultas e instrumentos que servirão ao assalto final. Os emires são taxativos: não há mais nada a fazer. E preciso recuar para o interior do país antes que seja tarde demais. O jovem sultão não consegue, no entanto, resignar-se a abandonar assim a capital. Ele insiste em tentar uma última investida ao sul, onde os sitiantes parecem menos solidamente entrincheirados. A batalha começa na madrugada de 21 de Maio. Kilij Arslan joga-se furiosamente no corpo-a-corpo e o combate arde até ao cair da noite. As perdas são igualmente pesadas dos dois lados, mas cada um conserva as suas posições. O sultão não insiste. Ele compreendeu que nada mais lhe permitira afrouxar o cerco. Obstinar-se em lançar todas as suas forças numa batalha que se esboça tao desfavorável poderia prolongar o cerco por algumas semanas, até alguns meses, mas ele incorreria no risco de colocar em jogo a existência do seu próprio sultanato. Originário de um povo essencialmente nómada, Kilij Arslan sabe que a fonte do seu poder reside em alguns milhares de guerreiros que o obedecem, não na posse de uma cidade, por mais atraente que ela seja. Aliás, ele logo terá escolhido para a sua nova capital a cidade de Konya, localizada mais para o leste: esta fronteira, os seus descendentes vão conservá-la até ao início do século XIV. Ele jamais verá Niceia.
Antes de se afastar, ele envia uma mensagem de adeus aos defensores da cidade para avisá-los da sua dolorosa decisão e lhes recomendar que hajam conforme os seus interesses. O significado é claro, tanto para a guarnição turca quanto para a população grega: é preciso entregar a cidade a Alexis Comneno e não aos seus auxiliares francos. São iniciadas negociações com o basileu, que, à frente das suas tropas, tomou posição a oeste de Niceia. Os homens do sultão tentam ganhar tempo, na esperança, sem dúvida, de que o seu senhor possa voltar com reforços. Mas Alexis se apressa: os ocidentais, ameaça ele, preparam-se para o assalto final, e então ele não garantira mais nada. Lembrando-se do comportamento dos franj no ano anterior nas proximidades de Niceia, os negociadores ficam aterrorizados. Já vislumbram a sua cidade saqueada, os homens massacrados, as mulheres violentadas. Sem mais hesitar, aceitam entregar a sua sorte nas mãos do basileu, que fixa ele mesmo as modalidades da rendição.
Na noite de 18 para 19 de Junho, soldados do exército bizantino, turcos na sua maioria, são introduzidos na cidade por meio de barcas que atravessam em silêncio o lago Ascanios, e então a guarnição capitula sem combate. As primeiras luzes do dia, os estandartes azuis e ouro do imperador já tremulam sobre as muralhas. Os franj renunciam ao assalto. No seu infortúnio, Kilij Arslan receberá dessa forma um consolo: os dignitários do sultanato serão poupados e a jovem sultana, acompanhada do seu recém-nascido, será recebida em Constantinopla com honras reais, agredindo os franj. A jovem mulher de Kilij Arslan e filha de Tchaka, aventureiro genial, um emir turco muito famoso as vésperas da invasão franca. Aprisionado pelo povo rum enquanto efectuava uma razia na Ásia Menor, impressionara os seus carcereiros pela sua facilidade em aprender grego, idioma que apos alguns meses falava com perfeição. Brilhante, hábil, argumentador, tornara-se um visitante regular do palácio imperial, que o havia até agraciado com um título de nobreza. Mas essa espantosa promoção não lhe bastava. Ele almejava mais, muito mais aliás, queria tornar-se imperador de Bizâncio!» In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN 978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições 70/JDACT

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

O Mistério das Catedrais. Interpretação Esotérica. Fulcanelli. « Tal como o dia, no Génesis, sucede à noite, a luz sucede à escuridão. Tem por símbolo a cor branca. Atingindo este grau, os Sábios asseguram que a sua matéria está livre de toda a impureza…»

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Paris
«(…) O artista faz pouco caso delas porque são superficiais e passageiras. São apenas um testemunho de continuidade e de progressão das mutações internas. Quanto às cores essenciais, duram mais tempo que esses matizes transitórios e afectam profundamente a própria matéria, marcando uma mudança de estado na sua constituição química. Não se trata de tons fugazes, mais ou menos brilhantes, que cintilam na superfície do banho, mas sim de colorações na massa que se manifestam exteriormente e assimilam todas as outras. Será bom, cremos nós, precisar este ponto importante. Estas fases coloridas, específicas da cocção na prática da Grande Obra, serviram sempre de protótipo simbólico; atribuiu-se a cada uma delas uma significação precisa e, muitas vezes, bastante extensa para exprimir sob o seu véu certas verdades concretas. É assim que em todos os tempos, existiu uma língua das cores, intimamente unida à religião, tal como diz Portal, e que reaparece na Idade Média, nos vitrais das catedrais góticas.
A cor negra foi atribuída a Saturno, que se tornou, em Espagíria, o hieróglifo do chumbo; em Astrologia, um planeta maléfico; em Hermetismo, o dragão negro ou Chumbo dos Filósofos; em Magia, a Galinha negra etc. Nos templos do Egipto, quando o recipiendário estava pronto para as provas iniciáticas, um sacerdote aproximava-se dele e segredava-lhe ao ouvido esta frase misteriosa: Lembra-te que Osíris é um deus negro!. É a cor simbólica das Trevas e das Sombras infernais, a de Satã, a quem se ofereciam rosas negras, e também a do Caos primitivo, em que as sementes de todas as coisas estão confundidas e misturadas; é o sable da ciência heráldica e o emblema do elemento terra, da noite e da morte.
Tal como o dia, no Génesis, sucede à noite, a luz sucede à escuridão. Tem por símbolo a cor branca. Atingindo este grau, os Sábios asseguram que a sua matéria está livre de toda a impureza, perfeitamente lavada e completamente purificada. Apresenta-se então sob o aspecto de granulações sólidas ou de corpúsculos brilhantes, com reflexos adamantinos e de uma brancura resplandecente. O branco também foi aplicado à pureza, à simplicidade, à inocência. A cor branca é a dos Iniciados porque o homem que abandona as trevas para seguir a luz passa do estado profano ao de Iniciado, de puro. É espiritualmente renovado. Este termo Branco, diz Pierre Dujols, tinha sido escolhido por razões filosóficas muito profundas. A cor branca, a maior parte das línguas atestam-no, sempre designou a nobreza, a candura, a pureza. Segundo o célebre Dictionnaire-Manuel hébreu et chaldéen, de Gesenius, hur, heur, significa ser branco; hurim, heurim, designa os nobres, os brancos, os puros. Esta transcrição do hebraico, mais ou menos variável, (hur, heur, hurim, heurim) conduz-nos à palavra heureux (feliz). Os bienheureux (bem-aventurados), aqueles que foram regenerados e lavados pelo sangue do Cordeiro, são sempre representados com vestes brancas. Ninguém ignora que bem-aventurado é ainda o equivalente, o sinónimo de Iniciado, nobre, puro. Ora os Iniciados vestiam-se de branco. De igual maneira se vestiam os nobres. No Egipto, os Manes vestiam também de branco. Phtah, o Regenerador, cobria-se igualmente de branco para indicar o novo nascimento dos Puros ou Brancos. Os Cátaros, seita à qual pertenciam os Brancos de Florença, eram os Puros Florença, eram os Puros. Em latim, em alemão, em inglês, as palavras Weiss, White, significam branco, feliz, espiritual, sábio. Pelo contrário, em hebraico schher caracteriza uma cor negra de transição, ou seja, o profano procurando a iniciação. O Osíris negro que aparece no começo do ritual funerário, diz Portal, representa esse estado da alma que passa da noite ao dia, da morte à vida. Quanto ao vermelho, símbolo do fogo, assinala a exaltação, a predominância do espírito sobre a matéria, a soberania, o poder e o apostolado. Obtida sob a forma de cristal ou de pó vermelho, volátil e fusível, a pedra filosofal torna-se penetrante e idónea para curar os leprosos, ou seja, para transmutar em ouro os metais vulgares que a sua oxidabilidade torna inferiores, imperfeitos, doentes ou achacados». In Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, 1975, Lisboa, Colecção Esfinge.

Cortesia de E70/JDACT

A Arqueologia do Saber. Michel Foucault. «Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador…»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Regularidades Discursivas
As unidades do discurso
«(…) O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de série, de transformação, coloca, a qualquer análise histórica, não somente questões de procedimento, mas também problemas teóricos. São estes os problemas que vão ser aqui estudados (as questões de procedimento serão consideradas no curso das próximas pesquisas empíricas, se eu tiver, pelo menos, a oportunidade, o desejo e a coragem de empreendê-las). Entretanto, só serão considerados num campo particular: nessas disciplinas tão incertas de suas fronteiras, tão indecisas no seu conteúdo, que se chamam história das ideias, ou do pensamento, ou das ciências, ou dos conhecimentos. Há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade. Elas, sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa; mas a sua função é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenómenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e o seu mérito transferido para a originalidade, o génio, a decisão própria dos indivíduos. O mesmo ocorre com a noção de influência, que fornece um suporte, demasiado mágico para poder ser bem analisado, aos factos de transmissão e de comunicação; que atribui a um processo de andamento causal (mas sem delimitação rigorosa nem definição teórica) os fenómenos de semelhança ou de repetição; que liga, a distância e através do tempo, como por intermédio de um meio de propagação, unidades definidas como indivíduos, obras, noções ou teorias.
Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador; submetê-los ao poder exemplar da vida (com seus jogos de adaptação, sua capacidade de inovação, a incessante correlacção dos seus diferentes elementos, seus sistemas de assimilação e de trocas); descobrir, já actuantes em cada começo, um princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura; controlar o tempo por uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais determinados, sempre actuantes. O mesmo acontece, ainda, com as noções de mentalidade ou de espírito, que permitem estabelecer entre os fenómenos simultâneos ou sucessivos de uma determinada época uma comunidade de sentido, ligações simbólicas, um jogo de semelhança e de espelho, ou que fazem surgir, como princípio de unidade e de explicação, a soberania de uma consciência colectiva.
É preciso pôr em questão, novamente, essas sínteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra onde reinam. E ao invés de deixá-las ter valor espontaneamente, aceitar tratar apenas, por questão de cuidado com o método e em primeira instância, de uma população de acontecimentos dispersos. É preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares. É possível admitir, tais como são, a distinção dos grandes tipos de discurso, ou a das formas ou dos géneros que opõem, umas às outras, ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção etc., e que as tornam espécies de grandes individualidades históricas?» In Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
                                                       
Cortesia de FUniversitária/JDACT