domingo, 16 de fevereiro de 2020

A Maldição de Afonso II. Maria Antonieta Costa. «A um sinal, uma serviçal meteu sob o banco outra caldeira. A parteira comprimiu o ventre de dona Dulce de modo a retirar a bolsa»

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«(…) A parteira havia mergulhado o futuro rei de Portugal na água tépida de uma caldeira de cobre temperada com vinho, sal e mel, esfregando-o e purgando-lhe o estômago, as orelhas e as narinas. Depois de o enxugar no colo, foi depositá-lo no tampo plano de uma mesa. Primeiro, envolveu-lhe as partes genitais com um cueiro. Em seguida, colocou-o sobre um quadrado de linho posto na diagonal e dobrou os cantos sobre o frágil corpinho, comprimindo-lhe a tripa e metendo nas dobras um amuleto de jade. Coberto dos ombros aos pés, foi cingido com as ataduras do pano, enroladas num aperto consistente à sua volta. Bem enfaixado, depositou-o no berço. A criança ainda não parara de chorar, o que era um bom presságio. A parteira voltou-se então para a rainha: agora vós, senhora.
A um sinal, uma serviçal meteu sob o banco outra caldeira. A parteira comprimiu o ventre de dona Dulce de modo a retirar a bolsa. Dirigiu-se à lareira, onde ardia um fogo que, naquele cinzento 23 de Abril, aquecia a alcova, atirando para lá, miudezas, enquanto proferia palavras mágicas. O cheiro de carne assada inundou a atmosfera. Não se podia correr o risco de aquelas partes internas serem comidas por algum animal faminto ou irem parar às mãos de um qualquer ministro do Mal. Condessa, podeis mostrar o infante ao pai, condescendeu a parteira. Dona Toda curvou-se sobre o berço e retirou o recém-nascido. Depois, rodeada de outras damas presentes no acto, assomou à entrada da câmara com o novo príncipe nos braços. Quando a porta se abriu, Sancho I, conselheiros e demais cortesãos acercaram-se dela, curiosos, emitindo exclamações de alegria. Havia olhares satisfeitos e outros circunspectos, de quem temia um varão ou de quem temia outra filha. O do rei estava entre estes últimos. Mas logo a expressão da sua face resplandeceu de felicidade quando ouviu da boca da condessa: Senhor! Eis o vosso primeiro filho homem!
Godinho, o arcebispo bracarense, que a braços com o interminável conflito sobre a legitimidade de poderes eclesiásticos entre Braga e Compostela, procurava apoio régio e viera à corte para relembrar ao monarca que o seu pai, o fundador Afonso Henriques, se tornara independente com o inestimável beneplácito do poder da sua diocese, levantou-se, preparando-se para benzer o novo infante. Por entre vivas e cumprimentos, o soberano pegou na criança, elevou-a um pouco e proferiu, à laia de apresentação: sou um bem-aventurado! Finalmente, um herdeiro para o reino. E será um digno sucessor de seu pai e de seu avô, já que veio ao mundo no dia de São Jorge, o heróico vencedor do dragão, o protector dos cavaleiros no campo de batalha. Nasceu no dia do padroeiro da guerra. Melhor augúrio não poderia haver, exaltou o prelado de Braga. O rei era, verdadeiramente, o espelho da felicidade. A sua união com Dulce, princesa de Aragão, que já durava há cerca de uma dúzia de anos, frutificara em três infantas, levando as bocas da maledicência a conspirar contra a capacidade reprodutora da rainha, tanto mais que a última filha, nascida cerca de quatro anos atrás, não fora suficientemente robusta para superar uma infecção que a matara. Agora, poderia respirar de alívio, pois o nascimento de uma criança saudável do sexo masculino era o garante da continuidade do poder dinástico.
Enquanto a real esposa, enfraquecida, descansava, o rei afastou-se para os seus aposentos levando o fiel chanceler da Cúria Régia. Preocupava-se já com a educação do herdeiro. A tradição aconselhava que os varões nascidos no seio da alta nobreza e da família real fossem criados e nutridos na casa de um vassalo capaz de o formar para a guerra e para a liderança. Esse era também um processo que permitia estabelecer alianças fiéis e duradouras entre as famílias mais poderosas, fortalecendo a sua influência ao disponibilizarem esse apoio à monarquia, que assim as recompensava e as tornava leais. Dizei-me, Julião Pais..., qual dos meus vassalos vos parece ter qualidades para criar o meu sucessor? Um esgar de reflexão surgiu no rosto de Julião Pais. Se me permitis, senhor, creio que talvez não se trate de aptidão, mas de estratégia. Em que pensais? Penso que não se oferece a criação do herdeiro do trono sem contrapartidas. Há que escolher de entre as principais casas senhoriais aquela que vos pode vir a ser mais útil, a que fortalecerá o vosso poder. Poderíamos pensar em Soeiro Viegas, dos de Riba Douro, que descendem de Egas Moniz, aio que foi de vosso pai. Aquele Soeiro que na luta contra os mouros minou por baixo do chão como um coelho?, zombou Sancho, como se o atributo de abrir passagens subterrâneas não fosse suficiente para o recomendar. Olhai que não há animal que tão bem se esconda como o coelho!, ripostou o nobre. Mas se não vos agrada..., podeis pensar nos de Soverosa». In Maria Antonieta Costa, A Maldição de Afonso II, 2019, Clube do Autor, 2019, ISBN 978-989-724-483-4.

Cortesia de CdoAutor/JDACT