terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

As Cruzadas vistas pelos Árabes. Amin Maalouf. «Antes de se afastar, ele envia uma mensagem de adeus aos defensores da cidade para avisá-los da sua dolorosa decisão e lhes recomendar que hajam conforme os seus interesses»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Invasão, 1096-1100
Os franj estão chegando
«(…) Kilij Arslan está empenhado de corpo e alma na batalha de Malatya, quando, nos primeiros dias de Maio, chega um novo mensageiro, ofegante de cansaço e medo. Os franj estao às portas de Niceia, e começam a sitiá-la. Não são mais, como no Verão, bandos de saqueadores esfarrapados, mas verdadeiros exércitos de cavaleiros pesadamente equipados. E desta vez, os soldados do basileu os acompanham. Kilij Arslan tenta acalmar os seus homens, mas ele próprio está torturado de angústia. Deve abandonar Malatya ao seu rival e voltar para Niceia? Estará certo de ainda poder salvar a sua capital? Não irá perder nas duas frentes? Após consultar demoradamente os seus mais fiéis emires, surge uma solução, uma forma de compromisso: ir ver Danishmend, que é homem honrado, colocá-lo a par da tentativa de conquista empreendida pelos rum e os seus mercenários, assim como da ameaça que pesa sobre todos os muçulmanos da Ásia Menor, e propôr-lhe que cessem as hostilidades.
Antes mesmo que Danishmend tenha dado a sua resposta, o sultão despacha uma parte do seu exército para a capital. De facto, uma trégua é concluída após alguns dias, e Kilij Arslan toma sem demora o rumo do oeste. Mas, no momento em que atinge as alturas próximas de Niceia, o espéctaculo que tem diante dos olhos lhe congela o sangue nas veias. A soberba cidade que lhe legou seu pai está cercada por todos os lados; uma multidão de soldados está ali, ocupada em por no lugar torres móveis, catapultas e instrumentos que servirão ao assalto final. Os emires são taxativos: não há mais nada a fazer. E preciso recuar para o interior do país antes que seja tarde demais. O jovem sultão não consegue, no entanto, resignar-se a abandonar assim a capital. Ele insiste em tentar uma última investida ao sul, onde os sitiantes parecem menos solidamente entrincheirados. A batalha começa na madrugada de 21 de Maio. Kilij Arslan joga-se furiosamente no corpo-a-corpo e o combate arde até ao cair da noite. As perdas são igualmente pesadas dos dois lados, mas cada um conserva as suas posições. O sultão não insiste. Ele compreendeu que nada mais lhe permitira afrouxar o cerco. Obstinar-se em lançar todas as suas forças numa batalha que se esboça tao desfavorável poderia prolongar o cerco por algumas semanas, até alguns meses, mas ele incorreria no risco de colocar em jogo a existência do seu próprio sultanato. Originário de um povo essencialmente nómada, Kilij Arslan sabe que a fonte do seu poder reside em alguns milhares de guerreiros que o obedecem, não na posse de uma cidade, por mais atraente que ela seja. Aliás, ele logo terá escolhido para a sua nova capital a cidade de Konya, localizada mais para o leste: esta fronteira, os seus descendentes vão conservá-la até ao início do século XIV. Ele jamais verá Niceia.
Antes de se afastar, ele envia uma mensagem de adeus aos defensores da cidade para avisá-los da sua dolorosa decisão e lhes recomendar que hajam conforme os seus interesses. O significado é claro, tanto para a guarnição turca quanto para a população grega: é preciso entregar a cidade a Alexis Comneno e não aos seus auxiliares francos. São iniciadas negociações com o basileu, que, à frente das suas tropas, tomou posição a oeste de Niceia. Os homens do sultão tentam ganhar tempo, na esperança, sem dúvida, de que o seu senhor possa voltar com reforços. Mas Alexis se apressa: os ocidentais, ameaça ele, preparam-se para o assalto final, e então ele não garantira mais nada. Lembrando-se do comportamento dos franj no ano anterior nas proximidades de Niceia, os negociadores ficam aterrorizados. Já vislumbram a sua cidade saqueada, os homens massacrados, as mulheres violentadas. Sem mais hesitar, aceitam entregar a sua sorte nas mãos do basileu, que fixa ele mesmo as modalidades da rendição.
Na noite de 18 para 19 de Junho, soldados do exército bizantino, turcos na sua maioria, são introduzidos na cidade por meio de barcas que atravessam em silêncio o lago Ascanios, e então a guarnição capitula sem combate. As primeiras luzes do dia, os estandartes azuis e ouro do imperador já tremulam sobre as muralhas. Os franj renunciam ao assalto. No seu infortúnio, Kilij Arslan receberá dessa forma um consolo: os dignitários do sultanato serão poupados e a jovem sultana, acompanhada do seu recém-nascido, será recebida em Constantinopla com honras reais, agredindo os franj. A jovem mulher de Kilij Arslan e filha de Tchaka, aventureiro genial, um emir turco muito famoso as vésperas da invasão franca. Aprisionado pelo povo rum enquanto efectuava uma razia na Ásia Menor, impressionara os seus carcereiros pela sua facilidade em aprender grego, idioma que apos alguns meses falava com perfeição. Brilhante, hábil, argumentador, tornara-se um visitante regular do palácio imperial, que o havia até agraciado com um título de nobreza. Mas essa espantosa promoção não lhe bastava. Ele almejava mais, muito mais aliás, queria tornar-se imperador de Bizâncio!» In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN 978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições 70/JDACT