terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Elena. Marina Carvalho. «Tenho plena consciência disso. Na África, não conseguia alimentar-me muito bem. Mas uns quilos a menos não chegaram a fazer grande diferença para mim»

Cortesia de wikipedia e jdact

Elena. A filha da princesa
«(…) Olho pela janela do carro. É impossível evitar as comparações: lado a lado com o povoado da Nigéria, Perla é a visão do paraíso na Terra. Quero dizer, ela sempre foi linda, charmosa, agradável. Mas, depois de passar seis meses num lugar que parece ter sido abandonado por Deus, a capital da Krósvia, minha cidade natal, meu lar, parece ser ainda mais incrível. Pena que meu poder de deslumbramento tenha minguado um pouco desde que conheci a outra face da realidade, chocante, miserável, terrível. A vida jamais será a mesma depois de morar por seis meses naquele povoado nigeriano. Viro-me para meu pai e sorrio. É bom estar em casa. Sabe que a sua mãe vai exigir que se alimente como se o mundo estivesse prestes a acabar, não é?, comenta o pai, em tom de brincadeira. Ele nunca resiste a uma piadinha. Mãe diz que o seu Alex é o rei das tiradas de efeito. Rio-me antes de responder, mas não tenho nenhuma chance, porque ele logo emenda: você está muito magra. Dá até para enxergar os ossos da costela. Exagero dele. Sei que emagreci. Tenho plena consciência disso. Na África, não conseguia alimentar-me muito bem. Mas uns quilos a menos não chegaram a fazer grande diferença para mim. Na verdade, estou até gostando. Pelo menos, o meu quadril avantajado deu uma reduzida. Reviro os olhos e volto a observar a paisagem. Meu pai dirige pelas ruas de Perla em direcção ao Palácio Sorvinski. Nós temos a nossa casa. Fica na periferia da cidade. Foi construída quando eu ainda era pequena. Meu pai fez o projecto, claro, do jeito que minha mãe sonhava, ou seja, nada de ângulos rectos e de aparência clean. A nossa casa reproduz o estilo colonial das cidades históricas brasileiras, inspirada nas construções de Ouro Preto, Tiradentes e Diamantina. No entanto, assim que foi diagnosticada a gravidez de risco da mãe, meu avô, o todo-poderoso (e fofo) rei Andrej Markov, insistiu que ela e, consequentemente, todos nós, ficássemos no castelo, onde haveria alguém para cuidar dela 24 horas por dia.
Claro que, primeiro, a princesa Ana bateu o pé. Mas acabou vencida por muitas vozes contrárias. Eu, da minha parte, se querem saber, estou achando óptimo. Adoro o palácio, a praia particular, os jardins, as pessoas, a comida de Karenina..., tudo! Sigo devaneando sobre os bons tempos que passarei com minha família. Porém, a minha euforia se desvanece um pouco ao lembrar-me de que, como meu período como voluntária na Nigéria ainda não acabou, estou impossibilitada de voltar para a faculdade. Isso significa que logo, logo meu quadril retornará ao tamanho original. Ócio + a comida de Karenina se encarregarão de cuidar dele. Ao avistar as torres do Palácio Sorvinski, uma emoção familiar invade o meu corpo. Prepare-se. Estão esperando por você com as honras e pompas dispensadas à neta do rei, avisa o pai, com uma expressão divertida. Não me importo nem um pouco de ser apaparicada. Então, animada, deixo meu pai envolver os meus ombros com o braço e seguimos até a entrada do castelo, sentindo o estômago revirar por antecipação. Nada como a saudade para nos fazer reafirmar os nossos sentimentos pelas pessoas que amamos. Mal me vejo dentro dos limites do palácio, e várias vozes e braços queridos me assaltam. Elena! Florzinha, que bom que chegou!, exclama Irina, como sempre no ápice da animação.
Ela não é minha avó de verdade nem a considero assim, apesar de ser a esposa do meu avô Andrej e actual rainha da Krósvia. Irina é uma amiga das mais queridas, alguém com quem posso contar em todas as ocasiões, mesmo depois de ter se tornado mãe e se envolvido com todos os problemas da função. E por falar em tio... Já pedi ao Petrov para deixar a lancha a postos. Vamos marcar amanhã? Quem disse isso foi Hugo, meu tio, filho de Andrej e irmão da minha mãe». In Marina Carvalho, Elena, A filha da princesa, 2015, Editora Record, 2015, ISBN 978-850-110-436-6.

Cortesia de ERecord/JDACT