domingo, 9 de fevereiro de 2020

1Q84. Haruki Murakami. «Significa que nela existe algo. Não é mesmo? Komatsu deixou o cigarro apoiado no cinzeiro e coçou a ponta do nariz com o dedo médio da mão direita»

Cortesia de wikipedia e jdact

Tengo. Uma ideia inusitada
«(…) O que é que estávamos conversando mesmo?, perguntou Tengo, numa tentativa de retomar o assunto. Hum... Do que é que estávamos falando?, disse Komatsu, olhando para o vazio enquanto se tentava lembrar. Ou talvez estivesse apenas fingindo tentar. Tengo não saberia dizer. Os gestos e a fala de Komatsu tinham uma certa dose de encenação. Ah! Já sei. Falávamos sobre a garota chamada Fukaeri e da Crisálida de ar. Tengo concordou, balançando afirmativamente a cabeça. Conversavam sobre Fukaeri e a Crisálida de ar. Tengo começara a falar disso com Komatsu quando, de repente, sofrera o ataque e tivera de interromper a conversa. Tengo tirou da maleta um calhamaço, uma cópia do texto, e deixou-o sobre a mesa. Em seguida, colocou as mãos sobre os papéis para sentir, através do toque, a certeza de que tudo estava ali. Como já te falei rapidamente pelo telefone, o principal mérito da Crisálida de ar é o facto de ela não imitar ninguém. E é muito raro na obra de uma novata não encontrar trechos com a pretensão de querer ser como alguém, disse Tengo, escolhendo cuidadosamente as palavras. É claro que as frases estão mal-elaboradas e o vocabulário é infantil. A começar pelo título, em que ela confunde crisálida e casulo. Se o intuito fosse o de apontar os defeitos, a lista seria enorme. Mas o facto é que essa história possui algo que nos encanta. O enredo em si é fantasioso, mas os detalhes são descritos de maneira extremamente objectiva. O equilíbrio entre fantasia e realidade é muito bom. Não sei se o termo mais adequado para isso seria originalidade ou fatalidade. Se disser que o texto não é isso tudo, vou ter de concordar. Mas só sei que, quando li essa obra, ainda que com muita dificuldade, a minha reacção foi a de um reticente silêncio. Um silêncio que provocava uma sensação estranhamente incómoda, eu diria até desagradável, um sentimento difícil de explicar.
Komatsu olhava em silêncio o rosto de Tengo, aguardando mais explicações. Tengo continuou: eu não queria descartá-la simplesmente porque a redacção é infantil. Nestes últimos anos, o meu trabalho tem sido ler pilhas e mais pilhas de originais. Se bem que o certo seria admitir que eu os lia pulando trechos. Alguns eram bem-escritos, já outros nem valiam a pena serem lidos; e é claro que a maioria se enquadrava neste último caso. Mas, enfim, de tudo que pude ler até agora, a única obra que realmente me fez sentir algo foi a Crisálida de ar. E também foi a única que, após o término da leitura, senti vontade de reler desde o começo. Entendo... Komatsu disse. Após soprar a fumaça do cigarro, calou-se, com uma expressão de total desinteresse. Mas, como não era de hoje que Tengo o conhecia, ele não se deixou enganar por essa atitude. Ele sabia que Komatsu era do tipo que, às vezes, expressava no rosto sentimentos opostos ao que sentia no seu íntimo. Ciente disso, Tengo aguardou pacientemente a iniciativa de Komatsu começar a falar. Eu também li, disse Komatsu, um tempo depois. Assim que recebi seu telefonema, imediatamente resolvi ler o texto. Mas, cá entre nós, ele realmente é muito ruim. Além dos erros gramaticais, há frases em que simplesmente não dá para entender o que se está querendo dizer. Você não acha que, em vez de fazer romances, o melhor seria primeiro aprender a escrever, do zero? Mas mesmo assim você leu até ao fim, não leu? Komatsu sorriu. Um sorriso que pareceu tirar do fundo de uma gaveta pouco usada. Está certo. Você tem razão. Li até ao fim. Eu mesmo me surpreendi, pois nunca fui de ler por inteiro essas obras inscritas para concorrer ao Prémio Literário de Autor Revelação. Ainda por cima, me dei o trabalho de reler certos trechos. Nesse sentido, tenho que admitir que, apesar dos pesares, essa obra tem potencial.
Significa que nela existe algo. Não é mesmo? Komatsu deixou o cigarro apoiado no cinzeiro e coçou a ponta do nariz com o dedo médio da mão direita. A pergunta de Tengo, porém, ficou sem resposta. Essa menina tem apenas dezassete anos e ainda está no colegial. O que ela precisa é apenas ler mais romances e praticar exercícios de redacção. Reconheço que será difícil essa obra ganhar o concurso, mas, sinceramente, acho que vale a pena passá-la para a fase final. Você tem esse poder de decisão, não tem? Se assim o fizer, ela com certeza deve vencer numa outra vez, disse Tengo. Hum... Komatsu limitou-se a soltar uma interjeição e, entediado, bocejou. Em seguida, pegou o copo e tomou um gole de água. Pense nisso, Tengo. Imagine só se um texto tão malfeito como esse for seleccionado para a fase final. Os professores da comissão julgadora vão cair para trás. E, com razão, vão insultá-lo. Se bem que, para começar, eles nem vão ler até ao fim. Os quatro membros da comissão julgadora são escritores. Todos muito ocupados. Eles vão apenas passar os olhos nas duas primeiras páginas e imediatamente descartar o texto. Vão pensar que é uma redacção de algum aluno do ginásio. Acha que, se eu tentar persuadi-los dizendo que nessa obra existe um diamante que só precisa ser lapidado, alguém vai dar-me ouvidos? Se a minha opinião vale alguma coisa, prefiro que ela seja usada para indicar alguém que seja realmente promissor». In Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-053-4.

Cortesia de CasadasLetras/JDACT