sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

A Bibliotecária. Dita Dorachova. Auschwitz. Antonio Iturbe. «Os SS que o acompanham repetem a sua ordem e a amplificam, até transformarem-na num grito que penetra os tímpanos dos prisioneiros»


jdact

Auschwitz-Birkenau, Janeiro de 1944
«(…) Ela se dá conta de que já ouviu antes essa maneira tão peculiar de assobiar as sinfonias, com tal precisão de melómano. Foi depois de viajarem amontoados durante três dias num vagão de carga fechado, sem comida nem água, vindos do gueto de Terezín, para onde foram deportados ao serem expulsos de Praga e onde viveram durante um ano. Era noite quando chegaram a Auschwitz-Birkenau. Impossível esquecer o barulho de sucata do portão metálico se abrindo. Impossível esquecer a primeira baforada de um ar gelado que cheirava a carne queimada. Impossível esquecer os clarões de luz, intensos na noite: a plataforma estava iluminada como uma sala de cirurgia. E depois, as ordens, os golpes de culatras contra as paredes do vagão, os disparos, os apitos, os gritos. E, no meio da confusão, essa sinfonia de Beethoven impecavelmente assobiada com a mais absoluta calma por um capitão, um Hauptsturmführer, para o qual os próprios SS olhavam com pavor. Naquele dia, o oficial passou perto de Dita, e ela viu o seu uniforme impecável, as luvas brancas imaculadas e a cruz de ferro sobre o peitilho da jaqueta; uma medalha que só se ganha em combate. Ele parou diante de um grupo de mães e filhos e deu uma amistosa palmadinha com a mão enluvada num dos pequenos. Até sorriu. Apontou para dois gémeos de 14 anos, Zdenek e Jirka, e um cabo se apressou a tirá-los da fila. A mãe agarrou o guarda pela aba da jaqueta e se pôs de joelhos, implorando que não os levasse. O capitão interveio com absoluta calma: num lugar algum eles serão tratados como tio Josef os tratará. E, de certo modo, assim seria. Ninguém em Auschwitz tocava num fio de cabelo dos gémeos que o doutor Josef Mengele coleccionava para as suas experiências. Ninguém os trataria como ele nos seus macabros genéticos para averiguar como fazer para que as alemãs dessem à luz gémeos e assim multiplicassem os nascimentos arianos. A menina se lembra de Mengele se afastando de mãos dadas com os garotos sem deixar de assobiar placidamente. A mesma sinfonia que agora se ouve no bloco 31.
Mengele...
A porta do quarto do responsável pelo bloco se abre com um ligeiro chiado, e o Blockältester Hirsch sai de seu minúsculo cubículo fingindo ter uma agradável surpresa com a visita dos SS. Bate sonoramente os calcanhares para saudar o oficial. É uma forma respeitosa de reconhecer a patente do militar, mas também uma maneira de mostrar uma postura marcial, nem submissa, nem acobardada. Mengele mal olha para Hirsch, está distraído e continua assobiando com as mãos para trás, como se nada daquilo fosse por sua causa. O sargento, o Padre, como todos o chamam, esquadrinha o barracão com seus olhos quase transparentes sem tirar, todavia, as mãos de dentro das mangas da jaqueta, caídas sobre o colo, não muito distantes da capa da pistola. Jakopek não se enganou. Inspeção, sussurra o Obersharführer.
Os SS que o acompanham repetem a sua ordem e a amplificam, até transformarem-na num grito que penetra os tímpanos dos prisioneiros. Dita, no grupo das garotinhas, sente um calafrio, aperta os braços contra o corpo e ouve os livros roçando nas suas costelas. Se a pegarem com eles, será o fim de tudo. Não seria justo..., murmura. Tem 14 anos e a vida por estrear, tudo por fazer. Nada pôde sequer começar. A Dita lhe vêm à cabeça estas palavras que sua mãe repete há anos, de maneira maçadora, quando ela lamenta a própria sorte: é a guerra, Edita... É a guerra. Era tão pequena que quase já não lembra como era o mundo quando não existia a guerra. Tal como esconde os livros sob o vestido nesse lugar onde arrebataram tudo, também guarda na cabeça um álbum de fotografias feito de lembranças. Fecha os olhos e trata de evocar como era o mundo quando não existia o medo. Ela se vê com nove anos de idade, parada em frente ao relógio astronómico da praça da Cidade Velha, em Praga, no início de 1939. Olhava meio de soslaio para o velho esqueleto a vigiar os telhados da cidade com as suas órbitas vazias, enormes como punhos negros». In Antonio G. Iturbe, 2012, A Bibliotecária de Auschwitz, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-657-432-1.

Cortesia de PManuscrito/JDACT