Cortesia
de wikipedia e jdact
As
Regularidades Discursivas
As unidades do
discurso
«(…) O emprego dos conceitos de
descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de série, de transformação,
coloca, a qualquer análise histórica, não somente questões de procedimento, mas
também problemas teóricos. São estes os problemas que vão ser aqui estudados
(as questões de procedimento serão consideradas no curso das próximas pesquisas
empíricas, se eu tiver, pelo menos, a oportunidade, o desejo e a coragem de
empreendê-las). Entretanto, só serão considerados num campo particular: nessas
disciplinas tão incertas de suas fronteiras, tão indecisas no seu conteúdo, que
se chamam história das ideias, ou do pensamento, ou das ciências, ou dos
conhecimentos. Há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se
de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da
continuidade. Elas, sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante
rigorosa; mas a sua função é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa dar
uma importância temporal singular a um conjunto de fenómenos, ao mesmo tempo
sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão
da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença
característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na
atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas
sobre um fundo de permanência, e o seu mérito transferido para a originalidade,
o génio, a decisão própria dos indivíduos. O mesmo ocorre com a noção de influência,
que fornece um suporte, demasiado mágico para poder ser bem analisado, aos factos
de transmissão e de comunicação; que atribui a um processo de andamento causal
(mas sem delimitação rigorosa nem definição teórica) os fenómenos de semelhança
ou de repetição; que liga, a distância e através do tempo, como por intermédio
de um meio de propagação, unidades definidas como indivíduos, obras, noções ou
teorias.
Assim também ocorre com as noções
de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos
dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador; submetê-los
ao poder exemplar da vida (com seus jogos de adaptação, sua capacidade de
inovação, a incessante correlacção dos seus diferentes elementos, seus sistemas
de assimilação e de trocas); descobrir, já actuantes em cada começo, um
princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura; controlar o tempo por
uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais
determinados, sempre actuantes. O mesmo acontece, ainda, com as noções de mentalidade
ou de espírito, que permitem estabelecer entre os fenómenos simultâneos ou
sucessivos de uma determinada época uma comunidade de sentido, ligações
simbólicas, um jogo de semelhança e de espelho, ou que fazem surgir, como
princípio de unidade e de explicação, a soberania de uma consciência colectiva.
É preciso pôr em questão,
novamente, essas sínteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das
vezes, são aceitos antes de qualquer exame, esses laços cuja validade é
reconhecida desde o início; é preciso desalojar essas formas e essas forças
obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso
expulsá-las da sombra onde reinam. E ao invés de deixá-las ter valor
espontaneamente, aceitar tratar apenas, por questão de cuidado com o método e
em primeira instância, de uma população de acontecimentos dispersos. É preciso
também que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos
são familiares. É possível admitir, tais como são, a distinção dos grandes
tipos de discurso, ou a das formas ou dos géneros que opõem, umas às outras,
ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção etc., e que as
tornam espécies de grandes individualidades históricas?» In Michel Foucault, A
Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária,
Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
Cortesia de FUniversitária/JDACT