quinta-feira, 31 de agosto de 2023

No 31. Largada das Naus. António Borges Coelho. «Uma carta régia de 1426 determinava que qualquer pessoa de Lisboa ou de outro lugar que compre pão na Beira, em Entre Douro e Minho ou em Trás-os-Montes, uma vez que não seja pão da cidade do Porto ou do seu termo…»

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Tempos de Boa Memória (1383-1433)

Avanço do mundo mercantil

«João I estabeleceu o imposto da sisa, tornando-o obrigatório para o comprador e o vendedor, fosse fidalgo ou clérigo. Democratizava assim o imposto e a vida pública. Fernão Lopes contabiliza o rendimento do rei em oitenta e dois contos de reais. Os direitos do reino contribuíam com vinte e um milhões, ao passo que o rendimento das sisas subia a sessenta milhões de reais, ou seja, a três quartos. O mundo mercantil ganhava um papel crescente.

Uma companhia de mercadores, formada pelo italiano Persifal e por Rui Garcia Lisboa e Martim Afonso Dinis e Lourenço de Sousa, do Porto, emprestaram ao rei 25 000 coroas de ouro para o casamento da sua filha Beatriz. O reembolso atingirá a soma de 11 535 000 libras. Em 1432 o dote de Isabel de Portugal, duquesa de Borgonha, subirá para 154 000 coroas de ouro, pagas por Pedro Eanes, feitor do rei e mercador português na Flandres.

Vasco Anes, tesoureiro-mor, recebeu do rei em usofruto pelo menos quatro naus e duas barcas. Podia fretar, pôr mestres, escrivães. mercadores, marinheiros, receber o dinheiro dos fretes, os ganhos e empregá-los em mercadorias, tomar contas aos mestres e dar-lhes quitações, sem que lhe peçam contas. Grande depositante na Comuna de Florença, o rei João tornava-se grande armador e encarregava do negócio o seu feitor Vasco Anes. O mundo novo ganhava outro fôlego.

Uma carta régia de 1426 determinava que qualquer pessoa de Lisboa ou de outro lugar que compre pão na Beira, em Entre Douro e Minho ou em Trás-os-Montes, uma vez que não seja pão da cidade do Porto ou do seu termo, pode carregá-lo do Porto para Lisboa, porquanto nós temos ordenado que todos os mantimentos se corram de umas partes para outras por todos os nossos reinos.

A estabilidade pública dependia do preço e da abundância do pão. Na década de setenta do século XIV, os preços do alqueire de trigo aumentaram e continuaram em ascensão até 1384. Baixaram, com algumas excepções. até ao final do século XV. A fome consumiu os lisboetas durante o cerco castelhano de 1384. Houve escassez de pão em 1391 e em 1394. Em 1399, a vereação de Lisboa contratou com os mercadores estrangeiros a troca de sal por pão.

Nos anos de 1401 e 1411 muitos castelhanos atravessaram a fronteira em busca de alimento. Nuno Álvares Pereira socorreu-os com o trigo dos seus celeiros. No ano de 1418 perderam-se as colheitas. E em 1422 e 1427 Lisboa e o seu termo recolheram o ouro necessário para mandar vir trigo de fora do reino». In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal, 1385-1500, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-464-5.

 Cortesia de ECaminho/JDACT

JDACT, António Borges Coelho, Ceuta, Cultura e Conhecimento, História, Descobrimentos, 

No 31. Largada das Naus. António Borges Coelho. «… o rei considera errada a obrigatoriedade de servir nas galés e, de acordo com o seu conselho, liberta todos os marítimos dessa servidão»

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Tempos de Boa Memória (1383-1433)

«Os actos mais importantes da governação foram decididos mediante a audição do verdadeiro parlamento nacional: pedidos para a guerra, leis sobre os salários e sobre política económica, queixas dos fidalgos, do clero e dos concelhos, estabelecimento das casas dos infantes, abusos dos funcionários régios, cláusulas do tratado de paz.

Nas Cortes de Lisboa de 1389, João I estabeleceu um pacto com os concelhos: sempre que se deslocassem para guerra de fronteira, as tropas dos municípios receberiam soldo como os fidalgos.

Nas Cortes de Évora de 1408, as três ordens do reino concordaram em contribuir para montar as casas dos infantes Duarte, Pedro e Henrique, mediante o terço do rendimento das sisas, mas a recolha do dinheiro e a compra dos bens ficavam nas mãos dos homens bons, escolhidos nessas Cortes pelos concelhos. O próprio rei confirma a força deste parlamento quando responde à crítica dos fidalgos: não pode deixar de descontar o rendimento das terras da coroa no pagamento das suas quantias, porque assim. em suas Cortes fora ordenado.

Em 1386. o rei João revogou as medidas que proibiam a exportação de mercadorias sem o pagamento da dízima em prata e sem prévio juramento de que trariam em retorno mercadorias de valor igual. Esta decisão incrementava a produção destinada ao mercado interno e à exportação.

O comércio de mantimentos e de armas e a defesa de Ceuta levaram a um incremento da construção naval e da marinharia. uma armada portuguesa auxiliou os ingleses de Henrique V na batalha de Azincourt. No cerco de Ceuta de 1418-1419, a armada de Granada não se atreveu a defrontar a frota portuguesa de socorro. Antes, nos tempos do monarca Fernando, os galiotes eram arrebanhados à força pelos campos e levados em baraços para as galés. Mesmo agora, segundo uma ordenação, datada de 1420, os homens válidos fugiam e desamparavam a terra. Uns pagavam para serem substituídos, outros perdiam os bens e fugiam.

A armação duma galé provocava sempre alvoroço. Tendo em mente estes factos, o rei considera errada a obrigatoriedade de servir nas galés e, de acordo com o seu conselho, liberta todos os marítimos dessa servidão. Os galiotes passarão a ser contratados mediante o pagamento de soldo, alguns metros de pano e a partilha nos despojos». In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal, 1385-1500, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-464-5.

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No 31. A Sala das Perguntas Fernando Campos. «Oficialmente ninguém. Seria desacreditar tão feroz poder. Mas oficiosamente… Mesmo assim... Mesmo assim, só quem tivesse poder para isso, o inquisidor-geral em pessoa. O rei era jovem e visionário…»

 

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Enigma Ómega 1941

Uma janela no crânio

«(…) Os pedreiros, o coveiro, já lá estariam? Desmontar o túmulo, trasladar para a igreja de São Pedro as pesadas lápides, a do brasão, a que é encimada pela cabeça de Damião, não ía ser fácil. Não estava o amigo incumbido da trasladação pela Direcção-Geral.

Meu caro doutor, providenciei tudo.

Alcobaça? Alenquer? Mistério!... E esse papel, esse papel... ou papéis, que ainda conservava na mão? Talvez o diário a que ele próprio se referia no processo...

Talvez…

Os inquisidores fizeram-no surnir.

Não me admiraria nada.

E, não estava ele preso na Batalha? A sentença dos inquisidores condenara-o a cárcere penitencial perpétuo em lugar que Sua Alteza designaria...

O rei Sebastião ou o cardeal Henrique?

Luciano estava em crer que havia sido o inquisidor-geral, o cardeal, a indicar o mosteiro da Batalha. O superior de Santa Maria da Vitória, frei Francisco Pereira, frei António Nogueira e outros dominicanos receberam o preso das mãos de Rui Fernandes, solicitador do Santo Ofício (maldito), a dezasseis de Dezembro de mil e quinhentos e setenta e dois, e do acto lavraram certidão. Como havia aparecido então ali, no caminho ou em casa? Quem teria a coragem de, em tempos de tanto medo e perigo, se abalançar a soltar o condenado? O superior e os frades do mosteiro? Não, certamente. Cairiam nas garras do Santo Ofício (maldito) e isso constaria...

Então quem?

Oficialmente ninguém. Seria desacreditar tão feroz poder. Mas oficiosamente… Mesmo assim...

Mesmo assim, só quem tivesse poder para isso, o inquisidor-geral em pessoa. O rei era jovem e visionário. Dava lá a atenção a isso... Há quem admita ainda a comutação da pena...

Não pode ser. Estaria no processo e, que eu saiba... e Hipólito fazia menção de folhear de novo os papéis.

Também lhe parecia a Luciano. Dessem então por certo que Damião havia falecido na sua casa de Alenquer. Porque não supor que aí estivesse sob custódia?

Por mor de quê?

Se o amigo atentasse mais uma vez no texto do processo, acharia que, quando os inquisidores lavraram o acórdão de condenação a cárcere perpétuo, tiveram o cuidado de estabelecer que não fosse recebido à reconciliação e união da Igreja-ern público, mas somente na Mesa diante dos inquisidores, vista a qualidade da pessoa do réu». In Fernando Campos, A Sala das Perguntas, Difel 82, 1998, ISBN 972-290-437-X.

Cortesia de Difel/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, Literatura, História, O Saber, Cultura, Damião de Góis,

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A Sala das Perguntas Fernando Campos. «Estranha função esta nossa! Estamos a vinte e sete de Agosto de mil novecentos e quarenta e um… Trezentos e setenta e um anos!... aqui vamos nós a caminho da velha igreja de Santa Maria da Várzea…»

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Enigma Ómega 1941

Uma janela no crânio

«(…) Quem era ele? Não era aquela a grande interrogação?, respondia o doutor Luciano. Quem somos nós, a identidade de cada um, a consciência do eu? Desde o fundo dos tempos. Sim. Sabia-se muito pouco da vida e da morte dele. Só mistério.

O pavor da morte não é mais que o do aniquilamento da identidade, concordava Hipólito Cabaço.

A mesmidade, amigo, a mesmidade, insistia Luciano, ser uma pessoa si mesma e não outra, ter consciência de si, individualidade. entidade...

Concordo que são alguns os pontos obscuros da vida de Damião. Mas saber-se pouco, como dizes... , estranhava Hipólito olhando o companheiro enquanto o grupo descia a calçada.

Alguns? Muitos.

Acaso hesitou ele quanto a ser Fulano de Tal, filho de Sicrano e de Beltrana? Tenho aqui a cópia do processo, e Hipólito sacava de debaixo do braço um grosso caderno de papel almaço, de folhas tintas de uma letra miudinha, folheava nervosamente como diurno conhecedor do texto, as lunetas na mão, os olhos de míope muito chegados à escrita e lia: Aos cinco dias do mês de Abril de mil e quinhentos e setenta e um, em Lisboa, nos Estaus...

Isso pensava ele!, interrompia o doutor. Ter vivido com um nome, como quem diz com um eu que não era o seu...

Que queres dizer? Não era não saber um homem quem é. Era não saber que não sabe quem é. A suprema tragédia.

Ou saber homem que sabe quem é e não o poder dizer... A suprema comédia.

Uma vida inteira enganado, logrado, errada a letra do epitáfio que mandara lavrar no mármore…

Seguiram calados em seus pensamentos os tacões dos sapatos martelando nas pedras segundos de eternidade... Hipólito ia remordendo que não fora de bom-gosto a referência a comédia.

E onde o acharam morto? Aí tinha o amigo outro mistério.

Em casa, a cabeça caída sobre a lareira. Não esquecesse, amigo o testemunho do desembargador Vieira Sousa. Morrera indo da Batalha para o mosteiro dc Alcobaça. Pernoitara no caminho em uma venda. Era de invernada. Depois de cear mandara deitar os criados. Ele, por mor do frio, ficara-se ali à lareira, com uma manta pelos joelhos, a ler, a escrever. Os donos da hospedaria deram as boas-noites e retiraram-se. Pela manhã encontraram-no deitado de borco, as barbas queimadas das brasas, sem vida…

Sono? Um ar que lhe deu? … Alguns falam de icto apoplético, estrangulado por criados…

Sim, sirn, conhecia. Nos Hlspaniae Ilustratae de Andreas Schott; sive apoplectico correptus morbo, sive o furacibussuffocatus famulis incertus… Camilo fazio-o desancado a sacos de areia pelos esbirros do conde de Castanheira… Fosse como fosse, entre os dedos segurava o mesmo papel

Que papel?

Sabia-se lá. O mesmo, palavras do desembargador…

Mas outros asseveram que assim tal e qual apareceu morto na sua casa de Alenquer en trinta de Janeiro de mil quinhentos e setenta e quatro. O doutor fazia um trejeito de dúvida. Hipólito rebatia: O padre Luís Velho, ao tempo prior de Santa Maria da Várzea, lavrou-lhe o assento de óbito e o corpo foi sepultado na capela-mor, no jazigo que o próprio Damião mandara fazer para si, sua mulher e descendentes. Com o rodar dos séculos… Estranha função esta nossa! Estamos a vinte e sete de Agosto de mil novecentos e quarenta e um…

Trezentos e setenta e um anos!... aqui vamos nós a caminho da velha igreja de Santa Maria da Várzea…» In Fernando Campos, A Sala das Perguntas, Difel 82, 1998, ISBN 972-290-437-X.

Cortesia de Difel/JDACT

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Constança. Isabel Machado. «Ninguém deverá sentir a esta mesa que pertence a uma estirpe inferior. Se Álvaro Nuñez sentiu horror com as minhas palavras não o mostrou, mantendo o sorriso elegante no rosto moreno e esguio»

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«(…) Agradeci, voltando ao silêncio constrangido. Sentia todos os olhares sobre mim. Aguentava os reparos o melhor que podia, ainda não me fizera inteiramente ao papel de senhora do castelo, durante as ausências de meu pai e da mulher. Ele, em permanentes negociações ou conflitos, ela, noutro castelo dos senhorios dos Manuel. Fora custoso passar do cativeiro para a residência de meu pai, de uma magnificência que dir-se-ia superar a da corte de Afonso XI. A liberdade viera com encargos que me eram estranhos. Mas empenhava-me, lutando para mostrar dignidade, uma segurança que não possuía e um sorriso afável, que calava fundo nos que me reviam após anos de ausência. Era o dever que a estirpe me impunha, tão muito diferente de tantas mulheres que fizeram de Castela o que era no nosso tempo. Um reino de mulheres poderosas.

Terras de fronteira, com os seus senhores enviados para auxiliar o rei nas guerras com os mouros, os castelos e as povoações circundantes haviam crescido como pequenos reinos, onde as mulheres asseguravam que o quotidiano não seria alterado durante as longas ausências dos homens guerreiros, conservando as terras vivas e a organização dentro das muralhas. Viajantes e convidados de outros reinos, até cavaleiros que corriam o mundo cristão ou que aqui vinham para participar em torneios, estranhavam o poder das mulheres castelhanas.

A segurança militar fora entregue por meu pai a um alcaide que mantinha de reserva centenas de soldados e guardas. Manter Peñafiel inviolável era a sua tarefa.

Regressei ao convidado que merecera a honra de se sentar à minha direita, conforme as regras fixadas por meu pai e de que o mordomo-mor de Peñafiel sabia todos os preceitos. Álvaro Nuñez era um fidalgo da velha aristocracia castelhana e, como todos os outros, olhava-me como um troféu apetecido, ocultando mal a gula pelo elevado dote que poderiam levar para casa se a minha mão lhe fosse concedida. Nos cálculos dos pretendentes, eu perdera valor com o repúdio do rei de Castela, como uma mercadoria usada. Já qualquer um me podia reclamar para esposa, perdida a esperança de um casamento numa família real. Mas não era esse o entendimento de meu pai e nunca fora o meu. Segura de que a minha mão acabaria por ser dada a quem valesse mais e não figurando Álvaro Nuñez nos pretendentes que o senhor daquele castelo tinha em mente para â filha, deixei o orgulho responder:

Meu pai conserva a forte tradição familiar de receber os seus convidados com os maiores obséquios. Ninguém deverá sentir a esta mesa que pertence a uma estirpe inferior.

Se Álvaro Nuñez sentiu horror com as minhas palavras não o mostrou, mantendo o sorriso elegante no rosto moreno e esguio». In Isabel Machado, Constança, A Princesa traída por Pedro e Inês, 2015, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.

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Constança. Isabel Machado. «Cismais senhora? Sorri-lhe., desajeitada. Acreditava que sim, que cismava sempre demasiado. Perdoai o alheamento, apenas aparente»

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«(…) Pêro Coelho, hábil e erudito conselheiro do monarca, aceso defensor do interesse de Portugal, acenou em concordância e apresentou os argumentos favoráveis à ideia do rei. Que se fizessem provas aos que exerciam as profissões da saúde. Falsos físicos e cirurgiões arrancavam dentes, cortavam a carne e amputavam membros com a ligeireza de um talhante. As ruas da cidade viam-se pejadas de incapacitados e rara era a família do povo que não contava algum cadáver saído das mãos dos impostores.

Devem ser submetidos a rigorosos exames, adiantou Álvaro Gonçalves, meirinho-mor do reino, magistrado e conselheiro próximo do monarca, conhecedor das populações, que percorria constantemente.

Centralizados, frisou bem o monarca, usando uma das palavras que lhe eram mais caras. Aqui mesmo, em Lisboa. Nomearei físicos da corte, de comprovada ciência, para os realizar. Entregou o rascunho aos seus homens de mão.

Dai-lhe forma de lei e trazei-me a versão final, ordenou. Depois reuniu os documentos já prontos e passou-os a um escrivão para que fossem selados. Afonso manteve-se em silêncio enquanto observava a cera vermelha derretida a pingar sobre a fita que pendia do pergaminho, a certificação de que haviam saído da chancelaria real as novas ordens. Finalmente, o selo régio moldou a sua imagem na cera, ostentando a cruz composta por cinco escudos e rodeada por doze castelos.

É tudo?, perguntou o monarca, vendo chegar ao fim a resma de documentos sobre a mesa.

Ouvia distraidamente, contrário ao seu costume. Afonso IV tinha o corpo ali, na administração do reino, mas os pensamentos mais profundos estavam nas relações externas. Havia algum tempo que enviava mensageiros e ouvintes pela Península, a par da correspondência que ele e Beatriz nunca abrandavam, para que nenhum acordo fosse firmado sem que dele soubesse o rei de Portugal.

E para que nenhum segredo fugisse ao seu conhecimento.

Castelo de Penñfiel, Castela

Cismais  senhora? Sorri-lhe., desajeitada. Acreditava que sim, que cismava sempre demasiado.

Perdoai o alheamento, apenas aparente. Concentrava-me na música, respondi-lhe com cortesia, sem laivos dos ademanes que se esperavam das damas nestes tempos de trovas e enamoramento cortesão. Álvaro Nuñez elevou os olhos escuros, pousando-os nos músicos tocando instrumentos de cordas que animavam o nosso banquete. Acenou em concordância: Excelente grupo. Vosso pai mantém-se o melhor anfitrião de Castela». In Isabel Machado, Constança, A Princesa traída por Pedro e Inês, 2015, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.

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terça-feira, 29 de agosto de 2023

O Lago Azul. Fernando Campos. «Eu permitir-me-ia, Majestade, sugerir... Que sugeris vós, senhor ministro? ... que envieis para lá, com total poder, à frente de homens escolhidos, um anjo exterminador…»

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«(…)  Fico para ver. O céu embrulhou e caiu noite prematura. No silêncio adormecido das margens do rio, de ruelas e largos da cidade, soam as sete no sino da catedral e logo, como surgida do nada, uma correria de tochas, brandões, luzeiros dão em entrar pela sé, em invadir a Sint-Pauluskerk, a Sint-Elisabethkapel, a Sint-Iacobkerk, a Sint-Niclaaskapel. Noite de pilhagem e destruição desenfreadas. As  imagens dos santos apeadas de seus nichos vêm fazer monte com pinturas, retábulos, saltérios, missais, estantes, alfaias e paramentos litúrgicos nas fogueiras dos adros. Ainda tentam os chefes religiosos calvinistas pôr freio à voragem. Impotentes, são desacatados, e o desmando. o saqueio iconoclasta em breve, nos dias que se seguem, alastra a Armentières, a Ypres, a Gand, à Zeeland, à Friesland, à Holland…

Nem o erguerem-se, dia a dia, na serra de Guadarrama, sombrias paredes e torres do Escorial, palácio, mosteiro, igreja, cripta de panteão, amaina a fúria do rei Felipe: Não tolerarei o alagar da heresia. Não tolerarei a profanação dos templos. Os Países Baixos não afrontarão a minha autoridade. Que está a fazer minha irmã Margarita mais o cardeal Granvelle? E esse príncipe católico, Guillermo de Orange a quem nomeei estatúder dessas terras?

Eu permitir-me-ia, Majestade, sugerir... Que sugeris vós, senhor ministro? ... que envieis para lá, com total poder, à frente de homens escolhidos, um anjo exterminador... Quem? Fernando Álvarez de Toledo, duque de Alba.

O sopro de quase um ano e cavalga, caminho de Bruxelas, o general mais as suas tropas aguerridas, dezassete mil soldados, acompanhados de duas mil mancebas. homens habituados às vitórias, ao esbulho, ao estupro, à matança. regimentos lombardos, sardos, napolitanos, comandados por generais experientes, Gonçalo Bracamonte, Julián Romero, Sancho Lodrón, Alfonso Ulloa e o próprio filho do duque, Fradique Toledo.

Vem aí a chacina, senhores, diz Margarita Parma aos conselheiros. Não serei conivente em violência e crime. Regressarei a Itália». In Fernando Campos, O Lago Azul, Difel, 2007, ISBN 978-972-290-874-0.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, 18º Rei de Portugal, dom António Prior do Crato, Genebra, Conhecimento, Literatura, História,

O Lago Azul. Fernando Campos. «O sacristão não terá tempo de fechar as portas. Todos avisados? Somos multidão: professores, políticos, imprimidores, comerciantes, artistas... E os luteranos? E os anabaptistas?»

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«(…) De rajada,Antwerpen. Não espero que me abram a porta acastelada da muralha. Voo por cima' Os ânimos, a revolta prestes a estourar. Os sábios teólogos calvinistas, que se arrogam reformar o mundo, vão entrar em acção.

Dia de São Nunca, Herr Doktor. Os papistas não encontraram ainda patrono para o dia dezanove de Agosto… e, como nós não admitimos o culto dos ditos santos… Bem escolhido, sim senhor, Doktor Hendrich. Por onde começamos?

A catedral ao cair da tarde será nossa. O sacristão não terá tempo de fechar as portas.  Todos avisados? Somos multidão: professores, políticos, imprimidores, comerciantes, artistas... E os luteranos? E os anabaptistas?

Fechados em suas conchas com os iniciados. Não desejam participar no que consideram violência… Mas o povo está connosco. O povo está com eles! Isso é o que eles pensam' Não contam com o fervilhar da turba ignorante dos mesteirais. Escorro e rodopio pelos cais do Scheldt, por estaleiros e armazéns de feitorias, por tabernas da Kipdorp, da Lange Nieuwstraat, da via Caesarea, a espreitar trechos de conversas sussurradas, olhares de conluio, que a novidade do assalto calvinista depressa correu.

Dia de São Nunca, Meister Peter, segreda o petintal Franz à orelha do calafate, por debaixo da aba larga do chapéu preto. Meister Peter olha em redor antes de falar em voz baixa: A que horas? Ao soar das sete da tarde no sino da sé.

Gralham estridentes os guindastes com seus cadeados,  suas rodas, seus falcões, gemem cabrestantes a erguer âncoras, piam gaivotas à volta dos mastros ou no colher das redes de peixe, fervem as taracenas no afã de carpinteiros, almoxarifes, arrais, obreiros, e abafam as vozes da insurreição. O carregador Adrian pára com sua carroça de centeio à boca de um armazém. Aproximam-se os moços da descarga.

Mexei-me esses pés e esses braços, rapazes. Hoje à noite será outra a vossa tarefa.  Hoje à noite, Adrian?

Os chefes calvinistas vão tomar as igrejas dos católicos e nós vamos aproveitar... Iacob Tac pousou o copo de vinho sobre a mesa, os olhos vagos, vidrados, a atravessar parede para além de pipas e vasilhame:

Do báculo de Sint Niclaas hei-de fazer um bastão. Ides ver, companheiros. Hei-de fartar-me de lhes dar porrada, e ria, as bochechas inchadas, vermelhas. Eu hei-de apanhar o cálice de ouro do bispo. E eu a custódia cravejada de diamantes. E eu, diz Franz Maes, tintureiro de tapeçarias, hei-de roubar os brincos de Sint Aldegonde para dar à minha Margaret.

Nos bairros pobres, mulherezinhas embiocadas de negro tecem seus planos. Vou mas é direita à caixa das esmolas, assevera a senhora Henriette.  ‘nha mãe, pode ser para mim o anel de Sint Brigit?» In Fernando Campos, O Lago Azul, Difel, 2007, ISBN 978-972-290-874-0.

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JDACT, Fernando Campos, 18º Rei de Portugal, dom António Prior do Crato, Genebra, Conhecimento, Literatura, História, 

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Largada das Naus. António Borges Coelho. «Nunca os concelhos intervieram tão activa e decisivamente na política nacional. Nos cinquenta anos em que João I governou, as Cortes reuniram-se vinte e oito vezes, mais vezes do que em todos os reinados dos séculos XIV e XV»

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Tempos de Boa Memória (1383-1433)

«A convulsão social, as guerras, a fome, a desvalorização brutal da moeda não ofuscaram a boa memória do rei João. Os sucessos obtidos no campo político e militar refundaram a independência do reino e criaram um capital mítico que rendeu até aos nossos dias.

Nos anos da revolução, as oportunidades de ascensão social permitiram que um escudeiro de quatro rocins, embora filho de mestre e neto de arcebispo, pudesse criar, quase do nada, o maior senhorio de Portugal. Um tanoeiro alçou-se a alcaide da cidade de Lisboa. Um cavaleiro mercador e corsário. filho e neto de mercadores, tornou-se rico-homem, capitão-mor do mar, alcaide-mor de Lisboa, conde de Abranches. na Normandia. e cavaleiro da Ordem da Jarreteira.

Lançaram-se dez pedidos gerais para as despesas da guerra; gastaram-se 280 000 dobras na conquista de Ceuta, 500 000 em casamentos, viagens, expedições às Canárias. descerco de Ceuta; armaram-se frotas; iniciaram-se obras monumentais como a do mosteiro da Batalha; a moeda desvalorizou, segundo Costa Lobo, 1109 vezes. A Coroa e a economia resistiram. Alguns reais de prata, cunhados nos dias da revolução, foram pendurados ao pescoço como talismã.

As queixas principais vieram dos fidalgos. Os senhorios recebiam a renda em dinheiro e deixavam uma parte maior dos excedentes nas mãos dos produtores. Com os excedentes animavam-se as feiras e o comércio. Por outro lado, os concelhos das cidades e das vilas que, de armas na mão e com o dinheiro da sua bolsa, sustentaram a parte maior da guerra, não se esqueceram de pugnar pela libertação dos tributos feudais que oneravam a produção e o desenvolvimento de uma economia progressivamente mercantil.

Assinado o tratado de paz em 1411, o Conselho Régio decidiu em ordenança um efectivo militar de 3200 lanças, assim distribuídas: Capitães 500, Escudeiros de uma lança 2360, Ordem de Cristo e Ordem de Santiago 100 cada, Ordem de Avis e do Hospital 80. Os escudeiros de uma lança subiam a mais de dois terços dos efectivos. O capitão e ex-juiz de Lisboa Antão Vasques comandara mais de 70 lanças, algumas de fidalgos de linhagem. Vemos bem de que lado social estava a força.

As Cortes

Nunca os concelhos intervieram tão activa e decisivamente na política nacional. Nos cinquenta anos em que João I governou, as Cortes reuniram-se vinte e oito vezes, mais vezes do que em todos os reinados dos séculos XIV e XV. Realizaram-se em dez cidades e vilas: à cabeça, Lisboa, Coimbra, Santarém, mas também em Viseu, Braga, Guimarães, Montemor-o-Novo e Estremoz». In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal, 1385-1500, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-464-5.

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Largada das Naus. António Borges Coelho. «Esse projecto nascia da necessidade de firmar um pé fora, no esforço de segurar a independência política e de acalmar o medo de Castela. E da necessidade de dar emprego aos jovens candidatos a fidalgos»

 

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«A palavra mercador, corrente na época, tinha contra si o episódio evangélico da flagelação dos vendilhões do templo e a condenação jurídica e moral dos empréstimos a juros por parte do Direito Canónico. Por isso, a palavra e a actividade do mercador se escondem por trás de outros vocábulos como homem bom, homem honrado, cidadão e com crescente frequência por trás de criado d’el-rei, escudeiro, cavaleiro e mesmo cavaleiro fidalgo.

Toda a sociedade portuguesa participou, como dissemos, e foi marcada pelo movimento da expansão marítima. Mas, socialmente, os grupos determinantes têm origem urbana, honrados ou náo.

São os que constroem barcos e navegam no Mar Oceano, os que aumentam em caudal as rendas do rei e pugnam pelo fortalecimento da Coroa, os que empregam e acumulam crescentes cabedais, mas que seriam excluídos da direcção nominal suprema.

Do ponto de vista das relações exteriores, a posse de Ceuta implicava a manutenção de um corpo militar permanente, calculado em cerca de três mil homens. Portugal era um cruzado militante. O papa abençoava o seu exemplo e esforço. Esta bênção aliviava a i pressão que pudesse ser exercida por príncipes cristãos, designadamente por Castela, e propagandeava os feitos e o poder militar do eino de Portugal.

A conquista de Ceuta envolveu também, desde logo, um projecto mais largo, o de criar um Portugal Além-Mar em África, ao menos o domínio de outras praças marítimas e ainda o assentamento nas ilhas descobertas e a descobrir. Esse projecto nascia da necessidade de firmar um pé fora, no esforço de segurar a independência política e de acalmar o medo de Castela. E da necessidade de dar emprego aos jovens candidatos a fidalgos.

Vale a pena enumerar a fardagem dos títulos que ostentava o rei de Castela, pela graça de Deus, rei de Castela, de Leão, de Toledo, da Galiza, de Sevilha, de Córdova, de Múrcia, de Jaen, do Algarve, de Algeciras e senhor de Biscaia e de Molina. Pelo seu lado. em 1410, o rei de Aragão estendia o seu domínio às ilhas Baleares, à Sardenha, à Sicília. João I era tão só rei de Portugal e do Algarve, a que juntava agora o título de senhor de Ceuta.

Com os seus navios e corsários, Ceuta controlou nos séculos XV e XVI a navegação que velejava pelo Estreito de Gibraltar. Tornou-se escola de milícia e modelo de arquitectura militar. Nos séculos XVI e XVII, responderá ao corso que flagelava as armadas portuguesas e espanholas que regressavam do Oriente, do Brasil, da costa africana e das Américas». In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal, 1385-1500, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-464-5.

Cortesia de ECaminho/JDACT

JDACT, António Borges Coelho, Ceuta, Cultura e Conhecimento, História, Descobrimentos,

domingo, 27 de agosto de 2023

Infante dom Pedro. Isabel Machado. «Os dois irmãos curvaram-se perante os reis. Quando se ergueram, nos olhos do conde não se via o vermelho da emoção, mas o brilho do triunfo, por se ver distinguido com missão de tamanho prestígio»

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Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Outono de 1405

«(…) Atrás dos infantes, vinha ainda o numeroso cortejo da nobre gente, de Portugal e de Inglaterra, com a fidalguia, os príncipes da Igreja, o alcaide, os juízes, os ricos mercadores que gozavam do favor d'el-rei, os cavaleiros, os escudeiros e a fanfarra por todo o lado.

Pedro e Duarte riram quando um petiz se aproximou deles, imitando o passo bem sincopado dos cavalos com as pernas magras, as mãos a reproduzir a pose dos infantes a segurar as rédeas. Dizia-lhes qualquer coisa, mas não se distinguiam palavras, naquele cântico de centenas de vozes.

No cais de embarque, calava-se o barulho da festa e só havia lugar para a tristeza, na hora da despedida da infanta. Foi a primeira vez que Pedro viu lágrimas nos olhos do pai desde a morte do irmão Afonso.

João I mostrava o lado mole do seu coração, agarrado à filha, naquele momento definitivo. Beatriz soluçava nos braços do rei e não havia olhos enxutos perante o desgosto de quem pensa que se vê pela última vez. Filipa secava o rosto com um lenço de seda, mais contida.

Adeus, minha filha, vai com Deus. Foi tudo o que Pedro ouviu da voz cortada do pai, quando teve de se desprender da infanta. Beatriz colocou a mão sobre a de Afonso. O conde de Barcelos escoltava-a até Inglaterra, de onde partiria depois para uma longa viagem pela Europa.

Os dois irmãos curvaram-se perante os reis. Quando se ergueram, nos olhos do conde não se via o vermelho da emoção, mas o brilho do triunfo, por se ver distinguido com missão de tamanho prestígio.

E se não passasse de uma lenda, senhora? Dona Filipa pousou o livro de cavalaria que lia com o filho. Uma lenda, Pedro? Camelot. A corte do rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda. À perfeição...

Não é uma lenda, disse a rainha com firmeza. Artur representa a justeza de um rei que vem salvar um povo da desesperança. A História do mundo e de Portugal mostra-nos que é verdade». In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, ISBN 978-989-897-590-4.

Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

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Infante dom Pedro. Isabel Machado. «Os outros três, pela curta idade, ainda mal se viam em público, não fosse a inocência e a escassez de tino estragar a perfeição briosa que el-rei exigia das exibições da real família para o povo ver»

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Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Outono de 1405

«(…) O rei e a rainha acenavam, mostrando os sorrisos que aqueciam a alma das gentes. João I não desencantaría os seus de Lisboa, sempre ciente de que, aos olhos do povo, parecer é também ser. Cuidava ao pormenor as aparições reais, marcadas de simbolismo, para que perdurasse na memória de todos a imagem de um soberano bom, que devolvera a crença a Portugal, e de uma dinastia pujante.

Por isso, sabia que o maior tesouro que podia exibir ao reino estava atrás de si, naquele cortejo: os infantes de Avis, Duarte, Pedro e Henrique. Em cavalos ajaezados com os mais finos arreios, bem ataviados os infantes, com gibões de veludo bordados a fio de ouro, as figuras juvenis contrastavam entre si, tanto quanto os caracteres, que se foram moldando quase opostos. O herdeiro, de rosto redondo, meão de altura e cabelos castanhos e lisos, de olhar algo amolecido, era mais dado às dúvidas, que lhe enredavam a existência de estudo aturado e de aprendizagem do ofício de reinar, ao lado do  pai, do que às decisões terminantes, em linha recta. Duarte arrastava empenho de bem-fazer, cioso de tudo, lendo e escutando o mais que podia. Fizera-se erudito, mas, por vezes, escasseava-lhe a têmpera.

Em Pedro, alto e de corpo seco, as cores de inglês haviam-se imposto no sangue misturado, com o arruivado do cabelo de ondas fechadas e os olhos azuis, levemente descaídos nas extremidades, próprios de quem vê a minúcia das coisas e pensa muito. Tão erudito e apaixonado pelo conhecimento como o mais velho, era um natural sedutor, mas talvez não viesse a seduzir a todos com o avançar da vida, com as verdades que lhe saíam da boca. Dado a indagar a natureza humana, os deveres e obrigações de cada um no mundo e os mistérios da vida, avaliava tudo, mas a abundância de pensamento não lhe entravava a acção.

Henrique, de onze anos, desprezava a minúcia para favorecer o gesto largo, grandioso. Moreno, de olhar penetrante e agitado, mostrava uma vivacidade  rara e pouco quieta. Amigo de se mostrar, insinuante e destemido, não gostava de ser mandado, convicto de si mesmo. Na rígida hierarquia real era o terceiro, mas não se via disposto a viver na sombra. Sabendo-se convincente, dobrava a vontade dos outros pela persistência, ou pela paixão que punha nos seus interesses, desarmando-os.

Os outros três, pela curta idade, ainda mal se viam em público, não fosse a inocência e a escassez de tino estragar a perfeição briosa que el-rei exigia das exibições da real família para o povo ver. Isabel, de oito anos, já se mostrava determinada e segura, e quebrava a rigidez de ferro do pai, por ser a única infanta. João, aos cinco anos, adivinhava-se sensato, firme de ideias e menos dado ao sonho do que os mais velhos. Fernando, de três anos, louro e rosado como um querubim, exibia a delicadeza dos anjos, ou era essa a leitura dos outros, sempre mais caridosos com os últimos a nascer numa família numerosa». In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, ISBN 978-989-897-590-4.

Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

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domingo, 13 de agosto de 2023

Poesia. Natália Correia. «E os olhos emigrantes no navio da pálpebra encalhado em renúncia ou cobardia. Por vezes fêmea. Por vezes monja…»


Cortesia de wikipedia

Auto-retrato

«Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis».

A defesa do poeta
«Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
dou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis…».
(…)

In Natália Correia, Poesia completa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

JDACT, Natália Correia, Poesia, Açores, 

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «Na sua casa era frequente, quando nos reuníamos de manhã para que me desse instruções se houvesse e, se não, para que discursasse um instante, encontrá-lo caído de barriga para cima…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas da primeira vez que lhe perguntei o que havia acontecido, como o olho calado havia emudecido, me respondeu, cortante como era certas vezes com a gente que o impacientava e raramente comigo, a quem costumava tratar com benevolência e afecto: Vamos ver se nos entendemos: não o tenho aqui para que me faça perguntas sobre questões que não lhe dizem respeito.

Nesse princípio não era muito o que me dizia respeito, se bem que isso logo tenha mudado, basta ter alguém disponível, à mão, à espera, para lhe ir confiando ou criando tarefas; e aqui significava na casa dele, de modo que após certo tempo passou a equivaler vagamente a do meu lado, quando tive de acompanhá-lo numa ou outra viagem, ou visitá-lo num set, ou quando decidiu me incluir em jantares e carteados entre amigos, mais para fazer número do que outra coisa, creio, e para ele ter uma testemunha admirativa a mais.

Quando estava em uma maré mais sociável, o que por sorte não era raro, ou haveria que dizer menos melancólica ou mesmo misantrópicas, ia com regularidade de um extremo a outro, como se seu ânimo vivesse num balanço geralmente pausado que às vezes se acelerava de repente diante da mulher, por causas que não me explicava e deviam ser muito distantes, gostava de ter público e ser ouvido, ou mesmo que o incentivassem um pouco.

Na sua casa era frequente, quando nos reuníamos de manhã para que me desse instruções se houvesse e, se não, para que discursasse um instante, encontrá-lo caído de barriga para cima no chão da sala ou do estúdio adjacente (as duas peças separadas por uma porta de folhas corrediças que quase sempre estavam abertas, logo as peças permaneciam unidas de facto, formando um espaço amplo e único). Talvez optasse por isso tendo em vista suas dificuldades para posicionar as pernas sentado e se sentia mais à vontade assim, de comprido sem impedimentos nem limites, tanto no tapete do salão como no soalho de tábua corrida do escritório. Claro que quando se deitava no chão não vestia os seus casacos, que muito se amarrotariam, mas camisa com colete ou suéter de gola em v por cima e, isso sim, sempre gravata, na sua idade devia lhe parecer imprescindível essa peça, pelo menos estando na cidade, apesar de, naqueles anos, as normas indumentárias já terem ido pelos ares.

Da primeira vez que o vi desse modo, estirado como uma cortesã oitocentista ou como um atropelado contemporâneo, foi uma surpresa e me alarmei, acreditando que tivesse sofrido um AVC ou que houvesse desmaiado, ou tropeçado, caído e não conseguisse se levantar. O que foi, d. Eduardo? Sente-se mal? Quer que o ajude? Escorregou? Me aproximei solícito, as mãos estendidas para levantá-lo. Depois de um leve esforço (ele insistia para que eu o tratasse de você), tínhamos combinado que eu o trataria de senhor sem o dom antes, mas me custava muito não o antepor, saía naturalmente e me escapava». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura,

sábado, 12 de agosto de 2023

Quando a China Mandar no Mundo. Martin Jacques. «… first granted to US government debt when it was assessed in 1917, unless it took radical action to curb government expenditure»

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The Changing of the Guard. O Render da Guarda

«(…) In the long run at least, it is a merciless measure. Notwithstanding this, imperial powers in decline are almost invariably in denial of the fact. That was the case with Britain from 1918 onwards and, to judge by the behaviour of the Bush administration (though perhaps not Obama’s), which failed to read the runes, preferring to believe that the US was about to rule the world in a new American century when the country was actually in decline and on the eve of a world in which it would fi nd its authority considerably diminished, the US may well make the same mistake, perhaps on a much grander scale. The financial meltdown in 2008 belatedly persuaded a growing number of American commentators that the United States might after all be in decline, but that was still a far cry from a general recognition of the extent and irreversibility of that decline and how it might diminish American power and infl uence in the future. It has been estimated that the total budgetary and economic cost to the United States of the Iraq war will turn out to be around $3 trillion. Even with this level of expenditure, the armed forces have come under huge strain as a result of the war.

Deployments have got steadily longer and redeployments more frequent, retention rates and recruitment standards have fallen, while the army has lost many of its brightest and best, with a remorseless rise in the number of offi cers choosing to leave at the earliest opportunity. Such has been the inordinate cost of the Iraqi occupation that, regardless of political considerations, the financial burden of any similar proposed invasion of Iran, in practice likely to be much higher, would always have been too large: for military as well as political reasons, the Bush administration was unable to seriously contemplate similar military action against Iran and North Korea, the other two members of its axis of evil. The United States is, thus, already beginning to face the classic problems of imperial overreach.

The burden of maintaining a huge global military presence, with over 800 American bases dotted around the world, has been one of the causes of the US’s enormous current account deficit, which in 2006 accounted for 6.5 per cent of US GDP. In future the American economy will fi nd it increasingly diffi cult to support such a military commitment. The United States has ceased to be a major manufacturer or a large-scale exporter of manufactured goods, having steadily ceded that position to East Asia. In recent times it has persistently been living beyond its means: the government has been spending more than it saves, households have been doing likewise, and since 1982, apart from one year, the country has been buying more from foreigners than it sells to them, with a consequent huge current account deficit and a growing volume of IOUs. Current account deficits can of course be rectified, but only by reducing growth and accepting a lower level of economic activity. Growing concern on the part of foreign institutions about these deficits led to a steady fall in the value of the dollar until 2008, and this could well be resumed at some point, further threatening the dollar’s role as the world’s reserve currency and American financial power. The credit rating agency Moody’s warned in 2008 that the US faced the prospect within a decade of losing its top-notch triple-A credit rating, first granted to US government debt when it was assessed in 1917, unless it took radical action to curb government expenditure». In Martin Jacques, Quando a China Mandar no Mundo, 2009, 2012, Temas e Debates, Círculo de Leitores, ISBN 978-989-644-196-8, Penguin Books, ISBN 978-0-713-992-540.

Cortesia de TeDebates/CdeLeitores/PenguinB/JDACT

JDACT, Martin Jacques, Literatura, Economia, China, Conhecimento,