quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Constança. Isabel Machado. «Ninguém deverá sentir a esta mesa que pertence a uma estirpe inferior. Se Álvaro Nuñez sentiu horror com as minhas palavras não o mostrou, mantendo o sorriso elegante no rosto moreno e esguio»

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«(…) Agradeci, voltando ao silêncio constrangido. Sentia todos os olhares sobre mim. Aguentava os reparos o melhor que podia, ainda não me fizera inteiramente ao papel de senhora do castelo, durante as ausências de meu pai e da mulher. Ele, em permanentes negociações ou conflitos, ela, noutro castelo dos senhorios dos Manuel. Fora custoso passar do cativeiro para a residência de meu pai, de uma magnificência que dir-se-ia superar a da corte de Afonso XI. A liberdade viera com encargos que me eram estranhos. Mas empenhava-me, lutando para mostrar dignidade, uma segurança que não possuía e um sorriso afável, que calava fundo nos que me reviam após anos de ausência. Era o dever que a estirpe me impunha, tão muito diferente de tantas mulheres que fizeram de Castela o que era no nosso tempo. Um reino de mulheres poderosas.

Terras de fronteira, com os seus senhores enviados para auxiliar o rei nas guerras com os mouros, os castelos e as povoações circundantes haviam crescido como pequenos reinos, onde as mulheres asseguravam que o quotidiano não seria alterado durante as longas ausências dos homens guerreiros, conservando as terras vivas e a organização dentro das muralhas. Viajantes e convidados de outros reinos, até cavaleiros que corriam o mundo cristão ou que aqui vinham para participar em torneios, estranhavam o poder das mulheres castelhanas.

A segurança militar fora entregue por meu pai a um alcaide que mantinha de reserva centenas de soldados e guardas. Manter Peñafiel inviolável era a sua tarefa.

Regressei ao convidado que merecera a honra de se sentar à minha direita, conforme as regras fixadas por meu pai e de que o mordomo-mor de Peñafiel sabia todos os preceitos. Álvaro Nuñez era um fidalgo da velha aristocracia castelhana e, como todos os outros, olhava-me como um troféu apetecido, ocultando mal a gula pelo elevado dote que poderiam levar para casa se a minha mão lhe fosse concedida. Nos cálculos dos pretendentes, eu perdera valor com o repúdio do rei de Castela, como uma mercadoria usada. Já qualquer um me podia reclamar para esposa, perdida a esperança de um casamento numa família real. Mas não era esse o entendimento de meu pai e nunca fora o meu. Segura de que a minha mão acabaria por ser dada a quem valesse mais e não figurando Álvaro Nuñez nos pretendentes que o senhor daquele castelo tinha em mente para â filha, deixei o orgulho responder:

Meu pai conserva a forte tradição familiar de receber os seus convidados com os maiores obséquios. Ninguém deverá sentir a esta mesa que pertence a uma estirpe inferior.

Se Álvaro Nuñez sentiu horror com as minhas palavras não o mostrou, mantendo o sorriso elegante no rosto moreno e esguio». In Isabel Machado, Constança, A Princesa traída por Pedro e Inês, 2015, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.

Cortesia de EdLivros/JDACT

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