terça-feira, 29 de agosto de 2023

O Lago Azul. Fernando Campos. «O sacristão não terá tempo de fechar as portas. Todos avisados? Somos multidão: professores, políticos, imprimidores, comerciantes, artistas... E os luteranos? E os anabaptistas?»

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«(…) De rajada,Antwerpen. Não espero que me abram a porta acastelada da muralha. Voo por cima' Os ânimos, a revolta prestes a estourar. Os sábios teólogos calvinistas, que se arrogam reformar o mundo, vão entrar em acção.

Dia de São Nunca, Herr Doktor. Os papistas não encontraram ainda patrono para o dia dezanove de Agosto… e, como nós não admitimos o culto dos ditos santos… Bem escolhido, sim senhor, Doktor Hendrich. Por onde começamos?

A catedral ao cair da tarde será nossa. O sacristão não terá tempo de fechar as portas.  Todos avisados? Somos multidão: professores, políticos, imprimidores, comerciantes, artistas... E os luteranos? E os anabaptistas?

Fechados em suas conchas com os iniciados. Não desejam participar no que consideram violência… Mas o povo está connosco. O povo está com eles! Isso é o que eles pensam' Não contam com o fervilhar da turba ignorante dos mesteirais. Escorro e rodopio pelos cais do Scheldt, por estaleiros e armazéns de feitorias, por tabernas da Kipdorp, da Lange Nieuwstraat, da via Caesarea, a espreitar trechos de conversas sussurradas, olhares de conluio, que a novidade do assalto calvinista depressa correu.

Dia de São Nunca, Meister Peter, segreda o petintal Franz à orelha do calafate, por debaixo da aba larga do chapéu preto. Meister Peter olha em redor antes de falar em voz baixa: A que horas? Ao soar das sete da tarde no sino da sé.

Gralham estridentes os guindastes com seus cadeados,  suas rodas, seus falcões, gemem cabrestantes a erguer âncoras, piam gaivotas à volta dos mastros ou no colher das redes de peixe, fervem as taracenas no afã de carpinteiros, almoxarifes, arrais, obreiros, e abafam as vozes da insurreição. O carregador Adrian pára com sua carroça de centeio à boca de um armazém. Aproximam-se os moços da descarga.

Mexei-me esses pés e esses braços, rapazes. Hoje à noite será outra a vossa tarefa.  Hoje à noite, Adrian?

Os chefes calvinistas vão tomar as igrejas dos católicos e nós vamos aproveitar... Iacob Tac pousou o copo de vinho sobre a mesa, os olhos vagos, vidrados, a atravessar parede para além de pipas e vasilhame:

Do báculo de Sint Niclaas hei-de fazer um bastão. Ides ver, companheiros. Hei-de fartar-me de lhes dar porrada, e ria, as bochechas inchadas, vermelhas. Eu hei-de apanhar o cálice de ouro do bispo. E eu a custódia cravejada de diamantes. E eu, diz Franz Maes, tintureiro de tapeçarias, hei-de roubar os brincos de Sint Aldegonde para dar à minha Margaret.

Nos bairros pobres, mulherezinhas embiocadas de negro tecem seus planos. Vou mas é direita à caixa das esmolas, assevera a senhora Henriette.  ‘nha mãe, pode ser para mim o anel de Sint Brigit?» In Fernando Campos, O Lago Azul, Difel, 2007, ISBN 978-972-290-874-0.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, 18º Rei de Portugal, dom António Prior do Crato, Genebra, Conhecimento, Literatura, História,