segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

As Naus no 31. António Lobo Antunes. «… de onde se vê a porta e as tábuas do sobrado se lamentam menos, apago a luz e fico à espera, a soprar com força no escuro, que elas regressem das boites de Arroios…»

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«(…) Deixa que comigo foram três cinemas de estreia de quatrocentos lugares cada um, consolou-o o senhor Francisco Xavier. No Carnaval organizava bailes no foyer, concursos de disfarces, bebidas grátis, havia balões de gás para os gaiatos, desses que ao segundo dia já hesitam entre o tecto e o chão, vinha um conjunto de Nampula especializado cm mambos, uma pipa de massa evaporada num rufo. Os candeeiros de Arroios, os candeeiros do Paço da Rainha cintilavam no sopé da encosta como as tochas das folias nocturnas de Pedro I, e o meu filho, sempre grudado à minha manga, sempre pregado aos meus joelhos, sempre enganchado na minha cintura, fitava-me com os olhos intensos, adultos e graves, nos quais, desde que nasceu no hospital da tropa, nunca topei o luar de infância alguma: um homenzinho microscópico que se não assemelhava a mim ou a fosse quem fosse da minha família, um gnomo chegado directamente de remotos avós negros das matas de Carmona, sentados nas esteiras à entrada das palhotas, de cachimbo de cabaça na palma. Rocei-me pela ombreira, farejando, mas a noite de Lixboa não cheira a lavras de café, à vivenda de colunas do patrão na vinha-virgem do capim, à mancha da fortaleza de São Paulo, à ampla e profunda respiração da terra: cheira a butano, a fumo de farturas, à peste dos séculos idos, a mulas de frade e a fezes de chibo doente no ondeado do terreno vago. A ampola do vestíbulo piscava confundindo as melgas. Os semáforos da Avenida Almirante Reis empurravam o trânsito na direcção do largo de contrabandistas do Martim Moniz e das suas violas de pedintes que repetem até ao delírio queixumes de calafates desamparados de mar. O senhor Francisco Xavier chamou-me do balcão, a fechar o livro numa imponência eclesiástica, e dei com a mulata vestida de fantoche ou de palhaço de circo como a rapariga dos sapatos de homem, de carapinha apanhada num carrapito de laços, unhas prateadas, baton, pálpebras verdes e uma vírgula de espanto na testa franzida. A velha, de agulha na mão, compunha-lhe à pressa as pregas de lamé das ancas.
A tua esposa vai trabalhar lá em baixo num bar até a contazinha da pensão ficar paga, decidiu o indiano a esfregar com empenho a fazenda das virilhas. Se as coisas nos correrem bem, rapaz, daqui a nada é melhor do que três cinemas em Lourenço Marques.

Por mim não tem nada que saber: arrasto a cadeira de baloiço de palhinha para o centro do vestíbulo, de onde se vê a porta e as tábuas do sobrado se lamentam menos, apago a luz e fico à espera, a soprar com força no escuro, que elas regressem das boites de Arroios ou das árvores do Campo de Santana, exaustas, despenteadas, de sapatos na mão, com o baton desbotado pelos beijos dos clientes, perseguidas à distância por ladrar de cães, buzinas de automóveis despeitados e o pífaro do vento nas ervas e nos prédios em ruína. Depois do jantar aguento uma porção de tempo, a chupar o charuto, de olhos abertos na noite, e a partir das duas, ou seja a seguir ao carro-patrulha iluminar os estores fracturados e desaparecer na embaixada de Itália, levanto-me devagarinho para não acordar a minha mãe e os meus filhos que dormem na mesma cama do que eu, desço as escadas amparando a barriga com o ninho da palma, e sento-me a observar os semáforos e as insígnias da Estefânia, nomes de letras fundidas e pedaços de telhado que o luar cor de tomate aguça e revela, a pensar nos três cinemas que não tive nunca, apenas uma sala de percevejos no bairro dos paquistaneses de má morte, uma cave irrespirável de suor e de miséria e do cheiro do caril, com vaqueiros a galoparem, atrás do som dessincronizado dos cascos, no lençol do écran. A pensar em África, amados irmãos, e na vivenda com piscina que se resumia ao tanque de lavar roupa com um fundo de chuva dentro apodrecendo no capim ao lado da rulote em que morávamos, comprada ao circo falido que depositava as girafas e os leões nos penhoristas da cidade, bichos gastos como cotovelos de sobretudo estendidos nas vitrines entre pulseiras e despertadores, ou palhaços pobres nas estantes das montras a sorrirem para nós enormes gargalhadas melancólicas». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT

No 31. As Naus. António Lobo Antunes. «A rapariga do caixote saiu para a noite a fumar, mascarada de boneca de mercearia de bairro, de bochechas de palhaço e de pescoço apertado numa estola leprosa»

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«(…) Desta feita não trazia atrás de si a comprida procissão das crias mas uma velha minúscula e descalça, de carrapito, cabelo apartado ao meio e pinta vermelha na testa, uma copa de jogar entre os arcos de capela das sobrancelhas grisalhas, e em cujas pupilas se refractavam tanques de crocodilos, silhuetas de piratas e as naus de João Castro sob um céu de catástrofe, fundeadas no mar de icterícia de Diu. Uma velha centenária trazida de Malabar ou de Timor com a primeira pimenta, amante de descobridores barbudos de tosse espessa de barrica, que conversava com o senhor Francisco Xavier na linguagem colorida dos ídolos de pau adormecidos sob árvores imensas nos seus pagodes de cobre, uma vetusta namorada de marujos que assistira impávida a abordagens ferozes, ulcerações de escorbuto, fumigações de bálsamos e melancolias de vice-reis, debruçados para as andorinhas nas varandas do poente. Não se preocupou muito com o miúdo ou comigo, ocupados a medir a densidade da noite pela pressa das corujas, mas avançou e recuou várias vezes na direcção da mulata observando-lhe a cara, o corpo, as pernas, e eu sentia-me na Ribeira ou no mercado de Cascais em manhãs de vozearia, papagaios, zangas, regateio, a assistir ao desembarque dos escravos, de penas de galo na nuca, por uma portinha das fragatas. O gordo accionou um interruptor de pêra e uma claridade súbita mostrou o átrio adornado em que nadavam percas, as pranchas soltas da ponte de comando do soalho, o reboco em pedaços, as feridas, nódoas e cicatrizes do estuque. Os vagabundos amornavam-se no baldio para dormir, arrebanhando jornais contra o orvalho do estio. Cães sem dono e arcebispos despadrados, de mitras de palhetas de vidro na cabeça, esvoaçavam em cambaleios de anjo rente à porta.
A rapariga do caixote saiu para a noite a fumar, mascarada de boneca de mercearia de bairro, de bochechas de palhaço e de pescoço apertado numa estola leprosa. O senhor Francisco Xavier, derramado num ângulo de balcão, copiava custosamente os nossos nomes num caderno pautado, na caligrafia gótica dos cabeçalhos de jornal. Um rafeiro uivou a cinquenta metros de nós e logo um segundo, mais distante, retorquiu das bombas de gasolina num lamento dorido, de goela ampliada pela concha de cimento da garagem com outras vozes lá dentro, de automobilistas, de carteiros de motorizada, de estofadores, do último mecânico a ensaboar-se a uma torneira cuja água se espalhava a brilhar pelas gretas do chão: sei como é por há anos ter trabalhado de aprendiz numa oficina em Sá da Bandeira entre os relentos do óleo, do cabedal e da estopa, a ver, sob o leite coalhado do flúor, electricistas comporem baterias em mesas fuliginosas, repletas de desperdícios e amperímetros.
Desisti porque o encarregado me apanhou o dedinho no casaco do bate-chapas à cata de uns trocozitos inocentes para um maço de cigarros, e me expulsou ao tabefe, rampa acima, até à chuva da rua. O indiano, subtraído pela fé dos evangelhos aos seus ídolos risonhos e às suas trovoadas monstruosas, veio vindo do balcão com a papada da barriga a baloiçar sobre o cinto: não tens as coroas, mocinho? Os ratos que conspiravam no forro do tecto desprenderam do alto uma placa de caliça, e nisto a velha, de boca aberta, pulou como um sapo aleijado, filou a mulata com as pinças das garras e arrastou-a para os túneis da Apóstolo das Índias, onde uma criança se esganiçava no salão decorado de azulejos do século XVII do primeiro piso, representando cenas de caça ou milagres de virgens. E dei comigo a pensar se o chibo dos mendigos dormiria de pé, de joelhos a tremerem nos cardos do baldio.
Nem a miséria de um tostãozinho te sobrou, ora confessa ao chefe, alegrou-se o senhor Francisco Xavier a aplicar-me palmadas exultantes nas costas, quando o vento trouxe da beira-rio o aroma de oleado heróico do hidroavião sem hélices, exposto, para além do Beato, no pontão dos pescadores de domingo, com os passageiros ainda sentados nas cadeiras conforme se podia espreitar pelo suor das vigias». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT

domingo, 30 de dezembro de 2018

A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal. François Soyer. «A distribuição geográfica das comunas muçulmanas e judaicas em Portugal era bastante diferente. No século XV, as comunidades judaicas já se haviam espalhado por todo o reino…»

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Manuel I e o fim da tolerância religiosa (1496 - 1497
Organização comunitária: judiarias, mourarias e comunas
«(…) O cargo mais importante exercido por um muçulmano na corte portuguesa medieval foi o de estribeiro-mor do rei. Um certo mestre Ali foi o estribeiro-mor de Afonso IV (1325-1357), que o enviou com embaixador ao sultão merínida de Marrocos em 1337-1338. No tempo do mesmo monarca, um médico da corte chamado mestre Ali (talvez o mesmo homem?), agindo em nome de todos os muçulmanos do reino procurou obter da Coroa a garantia de que esta respeitaria o direito dos muçulmanos de resolver as suas questões segundo as suas leis. No entanto, este parece ter sido um acordo informal entre o aparentemente influente Ali e os seus correligionários. Só no reinado de Afonso V é que houve uma tentativa de criar o cargo de um oficial responsável por todos os muçulmanos em Portugal. Com efeito, em 1451, Sa'id Caciz de Lisboa foi nomeado representante (requeredor sobliçitador procurador jerall) de todas as comunidades muçulmanas no reino. Não parece que este cargo se tivesse tornado uma instituição e não existem outras referências ao mesmo nos registos da chancelaria régia. Uma importante consequência da inexistência de um alcaide-mor era que os recursos contra as sentenças proferidas pelo alcaide das comunas tinham de ser intentados junto de um corregedor de comarca cristão e não junto de um magistrado muçulmano.

Demografia e distribuição geográfica
A distribuição geográfica das comunas muçulmanas e judaicas em Portugal era bastante diferente. No século XV, as comunidades judaicas já se haviam espalhado por todo o reino, desde a fronteira com a Galiza, a norte, às cidades do Algarve no sul. Estabeleceram-se comunidades judaicas em praticamente todas as municipalidades de Portugal. A sua dimensão era muito variável e, na maioria das cidades, o número da população judaica rondava provavelmente as dezenas e centenas, e não os milhares. A população judaica de Estremoz em 1462 era constituída por apenas 25 casas, comparadas com as 800 cristãs, enquanto um recenseamento da população masculina da região da Beira, realizado em 1496, regista um total de 2334 homens, incluindo 108 judeus, residindo na vila da Covilhã. Só nos centros económicos mais importantes do (a Crónica de Affonso XI, em castelhano, conta que, durante a guerra luso-castelhana de 1336-1339, Afonso IV de Portugal enviou o mestre Ali como seu embaixador ao sultão merínida de Marrocos, em l337,para tentar conseguir o apoio deste contra Castela) reino é que a população judaica devia atingir, ou mesmo ultrapassar, um milhar. Não existem números para as comunidades de Lisboa e Porto, mas estas eram, com certeza, as maiores, contando alguns milhares de indivíduos. Em 1496, os judeus de Santarém constituíam 400 casas.
As comunas muçulmanas, ao contrário das judaicas, situavam-se quase todas na metade sul do reino, precisamente no território que havia permanecido sob domínio muçulmano durante mais tempo. Documentos do século XIV confirmam a existência de comunas muçulmanas, ou pelo menos de comunidades muçulmanas organizadas, em Lisboa, Leiria, Alenquer, Santarém, Avis, Elvas, Estremoz, Setúbal, Alcácer do Sal, Évora, Moura, Beja, Silves, Loulé, Tavira e Faro. No século XV, as comunas de Alenquer, Avis e Estremoz deixam de aparecer em registos documentais. Não se sabe se estas comunas deixaram efectivamente de existir ou se simplesmente não constam dos registos oficiais ainda existentes.
A presença muçulmana em Leiria e Coimbra levanta algumas questões importantes. Um documento de 1303 refere-se a uma mouraria com uma mesquita em Leiria e a um indivíduo chamado Ibraim Alcayde. A comunidade muçulmana de Leiria seria, portanto, suficientemente numerosa para ter um local de culto designado e um alcaide. No entanto, não existem provas de que alguma vez tivessem tido uma comuna legalmente constituída. Parece que a importante cidade de Coimbra também tinha uma mouraria, pelo menos no século XIII, mas a sua população muçulmana nunca esteve organizada numa comuna. Um documento de 1433 confirma a presença de muçulmanos livres vivendo em Coimbra, pagando um imposto individual anual de 20 soldos.
Outras interrogações envolvem também a possível presença de muçulmanos nas vilas fronteiriças de Sabugal e Serpa. Os registos fiscais leoneses e castelhanos indicam a existência de comunidades muçulmanas organizadas e contribuintes nestas vilas em 1284-1285 e 1290. Depois de Castela ceder estes territórios a Portugal em 1297 , não existem mais informações relativas à existência de comunidades muçulmanas em qualquer destas vilas. Sabe-se que existiram algumas comunidades muçulmanas noutras partes do reino, mas os documentos ainda existentes não fornecem quaisquer informações sobre a sua organização ou importância numérica. Outros documentos revelam indícios de uma comunidade muçulmana nas pequenas vilas de Colares e Sintra. Em meados do século XIV, havia uma comunidade muçulmana no porto de pesca de Olhão, no Algarve, suficientemente organizada para ter um alcaide, mas mais nada se sabe acerca da mesma. Noutros documentos, ainda encontramos referências casuais a habitantes muçulmanos residindo em Cuba, Coina, Montemor-o-Novo, Campo Maior, Vila Viçosa, Vidigueira, Olivença, Óbidos, Muge, Castelo Branco e Abrantes. Se existiram populações muçulmanas no Norte de Portugal, o seu número nunca foi suficientemente importante para que as mesmas formassem as suas próprias comunas». In François Soyer, A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal, 2007, Edições 70, 2013, ISBN 978-972-441-709-7.
                                                                                                         
Cortesia de E70/JDACT

A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal. François Soyer. «O veredicto final isentou Yusuf do pagamento retroactivo dessa taxa, mas decretou que ele pagasse daqui em diante a pensão do dito tabeliado que detinha como pagavam…»

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Manuel I e o fim da tolerância religiosa (1496 - 1497
Organização comunitária: judiarias, mourarias e comunas
«(…) O foral de 1170 e os seus sucedâneos não especificam durante quanto tempo o alcaide devia permanecer no cargo, nem se a sua eleição devia ser confirmada pela Coroa. Só no foral, em língua portuguesa, outorgado aos muçulmanos de Moura (1296) se definia categoricamente que a eleição do alcaide estava sujeita à confirmação régia. Na prática, apesar das garantias do foral, o processo de escolha do alcaide durante o século XV alternava entre a eleição pela comuna e a nomeação arbitrária pela Coroa (em 1416, um muçulmano chamado Ferfão (Faraj?), por exemplo, foi nomeado alcaide dos muçulmanos de Santarém por Afonso V, em troca de serviços militares prestados em Castela com cavalos e armas). Os mandatos dos alcaides lisboetas também variavam bastante, entre um e seis anos. Em Évora, o sistema de eleição parecia não correr muito bem. Quando a comuna muçulmana de Évora pediu a Pedro I que demitisse o seu alcaide, solicitou também ao monarca para decretar que o alcaide não ocupasse o cargo para toda a vida ou durante longos períodos de tempo, mas que o exercesse durante um período fixo de apenas um ano e ainda que o rei, ou quem ele quisesse, confirmasse a sua eleição. Quase um século mais tarde, em 1455, a Coroa foi novamente obrigada a intervir, quando representantes dos muçulmanos de Évora pediram a Afonso V que nomeasse Ali Caeiro, porque se encontravam desregidos e a ponto de se perder por não terem alcaide.
Em, pelo menos, um caso extraordinário, muçulmanos portugueses perderam completamente o seu direito de eleger o seu líder. Estes muçulmanos, contudo, não se encontravam sob jurisdição régia, mas sujeitos à Ordem Militar de Avis. Em 1331, os muçulmanos de Avis intentaram uma acção no tribunal real de apelação contra o seu senhor Gil Peres, o mestre de Avis, sobre a questão do seu direito de escolher o alcaide. Representados pelo seu alcaide eleito, Muhammad Francelho, os muçulmanos alegaram que sempre haviam gozado do direito de eleger o seu próprio alcaide segundo o seu foral, que derivava do de Lisboa. O mestre de Avis refutou categoricamente esta alegação, afirmando que sempre desde o povoamento da terra os alcaides foram designados pelos mestres [de Avis] e que ele e os seus antecessores sempre escolheram para alcaide quem bem entendessem. No fim, o processo foi abruptamente interrompido quando a delegação muçulmana em Lisboa recebeu ordens da comunidade de Avis para retirar a sua acção, e a coroa não teve outra alternativa senão reconhecer o direito do mestre de Avis.
Os outros funcionários das comunas muçulmanas eram muito semelhantes aos das comunidades judaicas. Como na sua equivalente judaica, cada comuna muçulmana tinha uma câmara, um escrivão e um tabelião. Os detentores destes últimos dois cargos podiam ser muçulmanos ou cristãos. Os escrivães eram eleitos, mas os tabeliães compravam uma licença à coroa e deviam pagar uma taxa anual pelo privilégio. Em 1414, o procurador da Coroa, Bartolomeu Domingues, processou Yusuf, tabelião dos muçulmanos de Lisboa, por não pagar as cinquenta libras anuais que devia pelo seu cargo, que ele exercera durante catorze anos. Yusuf contestou, alegando que o ofício de tabelião da comuna muçulmana de Lisboa fora inicialmente dispensado desse pagamento.
O veredicto final isentou Yusuf do pagamento retroactivo dessa taxa, mas decretou que ele pagasse daqui em diante a pensão do dito tabeliado que detinha como pagavam todos os outros tabeliães da dita cidade. Para proteger os seus interesses, a coroa nomeou um juiz especial para superintender a cobrança de tributos e resolver quaisquer disputas que dela surgissem.
A diferença mais notável na organização das comunidades judaica e muçulmana era, provavelmente, a manifesta ausência de um oficial muçulmano equivalente ao rabi-mor judeu. Não existem indícios de que os governantes de Portugal alguma vez tivessem criado um cargo equivalente ao do alcade mayor de las aljamas de los moros no reino de Castela ou ao do qadi general em Aragão». In François Soyer, A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal, 2007, Edições 70, 2013, ISBN 978-972-441-709-7.
                                                                                                         
Cortesia de E70/JDACT

sábado, 29 de dezembro de 2018

A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal. François Soyer. «O alcaide exercia jurisdição de primeira instância sobre todas as causas cíveis e crimes entre os muçulmanos, ou entre muçulmanos e cristãos quando os primeiros eram os réus…»

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Manuel I e o fim da tolerância religiosa (1496 - 1497
Organização comunitária: judiarias, mourarias e comunas
«(…) Em Junho de 1463, Afonso V aboliu o cargo de rabi-mor, a pedido do conde de Guimarães, por razões não inteiramente claras. No decreto de abolição, o monarca declara que o ofício foi extinto para evitar as grandes discórdias, trabalhos e despesas que o mesmo podia trazer. A explicação mais plausível, sugerida pela dra Tavares é que Afonso V tomou esta medida para travar a luta sectária pelo domínio do cargo de rabi-mor entre as principais famílias judaicas de Portugal e os seus poderosos patronos na nobreza portuguesa. Após essa data, e até 1496, os poderes anteriormente investidos no rabi-mor foram distribuídos por diferentes oficiais, incluindo alguns cristãos. Os poderes do rabi-mor foram divididos entre um novo corregedor da corte para os judeus e um contador de todas as comunas judaicas. Na prática, tanto Afonso V como o seu filho João II ofereceram estes dois ofícios a favoritos judeus e estes tornaram-se efectivamente os rabis-mores de Portugal em tudo menos no título. O mestre Abraão, médico de Afonso V, foi não só corregedor, mas também contador até à sua morte em 1471. O seu sucessor, o mestre Abas, exerceu brevemente o mesmo cargo entre 1471 e 1472, e subsequentemente João II (1481-1495) nomeou o seu alfaiate, Abraão Abet, para o ofício de contador, com o poder: de verificar as finanças das comunidades judaicas e organizar o lançamento dos impostos régios sobre os judeus. No reinado de João II, os corregedores de comarca cristãos foram encarregados de fiscalizar e aprovar os impostos cobrados pelos oficiais das comunas.

As comunas dos mouros
Duma maneira geral, a organização das comunas muçulmanas era semelhante à dos judeus. Existiam, porém, algumas diferenças significativas. Nos documentos ainda existentes, o principal funcionário das comunidades muçulmanas em Portugal é invariavelmente identificado como o alcaide, título derivado do arábico para juiz. Como o rabi-menor judeu, o alcaide era responsável pela administração judicial e financeira da comuna sob seu domínio. O foral em latim concedido por Afonso Henriques às comunidades muçulmanas de Lisboa, em 1170, prometia-lhes que nenhum cristão ou judeu exerceria jurisdição sobre eles em seu detrimento e garantia-lhes o direito de eleger o seu próprio juiz. O alcaide exercia jurisdição de primeira instância sobre todas as causas cíveis e crimes entre os muçulmanos, ou entre muçulmanos e cristãos quando os primeiros eram os réus, e julgavam as mesmas de acordo com o direito e lei dos mouros.
Esta função judicial implicava que o alcaide fosse um homem letrado, com o conhecimento necessário para resolver disputas no seio da comunidade segundo os preceitos da lei islâmica. Quando, em 1362, a comuna muçulmana de Évora enviou uma delegação a Pedro I para lhe pedir que demitisse o alcaide então no poder, uma das suas queixas era que o dito alcaide não sabia ler nem escrever e nem sabia a sua lei. Esta situação era inaceitável, uma vez que a sua lei não permite que seja alcaide senão aquele que for sabedor [da sua lei]. Os funcionários auxiliares do alcaide, pelo menos na Lisboa do século XIV, eram um carcereiro e um beleguim». In François Soyer, A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal, 2007, Edições 70, 2013, ISBN 978-972-441-709-7.
                                                                                                         
Cortesia de E70/JDACT

A Bela Adormecida Vai à Escola. Gonzalo Ballester. «Canuto abriu os olhos no quarto escuro e decidiu, como todas as manhãs, que o estrondo tinha sido uma alucinação e que podia continuar a dormir»

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A casinha do bosque
«(…) Em compensação, uns e outros detestavam-no, e as sátiras de uns atacavam a instituição e a pessoa, enquanto as dos outros respeitavam a instituição. Uns e outros mantinham as aparências e procediam por alusões de que toda a gente, menos Canuto, possuía a chave, e tanto os monárquicos como os republicanos acrescentavam cada dia um pequeno detalhe ao mito nacional do rei Canuto, símbolo sempre, para uns, da suprema estupidez, e para outros da maior perversidade, em ambos os casos injusto, porque Canuto era medianamente bom, como o seu antepassado Hamlet, e muito mais inteligente do que a maioria daqueles que o rodeavam.
Finalmente, consideravam-no um fim de raça. Como ninguém lhe desejava descendentes que lhe pudessem suceder, propagara-se a lenda da sua esterilidade, e nunca se pensara num casamento de conveniência, e como as potências estrangeiras não incluíam a aliança com Canuto nos seus projectos políticos, e como não despertasse amor nas princesas casadoiras, não porque não fosse bonito e amável, mas porque relatórios secretos, muitos deles procedentes de Gisela, contribuíam para a sua má reputação como possível marido, os republicanos esperavam a sua morte para realizar aquilo a que chamavam a salvação política do país, e os monárquicos para a dignificação da Monarquia na pessoa do presumível herdeiro. Por todas estas razões, Canuto perntanecera solteiro.
O dia de Canuto começava com o tiro disparado, do alto de uma torre, por um velho canhão às oito horas em ponto da manhâ. Acordava com o estrondo, e invariavelmente confessava a si próprio que gostaria de dormir um pouco mais, e voltava a adormecer. Davam-lhe uma hora para a higiene pessoal. Às nove tinha que dar o seu habitual passeio a cavalo pelas ruas da cidade, sem escolta nem vigilância, para que os cidadãos se convencessem de que ele era um ser inofensivo, para além de indefeso. De regresso ao palácio às dez, entrava na biblioteca, onde o esperavam os diários matutinos convenientemente seleccionados, que ele tinha que ler e quase aprender como uma lição nos parágrafos e passagens assinaladas a lápis vermelho pelo senhor Camareiro-Mor, factótum e chefe da camarilha palaciana.
Na manhã em que começa esta história, o tiro de canhão das oito horas soou rotundo e impertinente como de costume. Canuto abriu os olhos no quarto escuro e decidiu, como todas as manhãs, que o estrondo tinha sido uma alucinação e que podia continuar a dormir. Nesse mesmo instante entrou Gibbs, o seu criado de quarto. Trazia na mão uma bandeja com um jarro de água e o first cup of tea que Canuto introduzira nos seus hábitos depois de uma breve estada em Inglaterra, convidado pessoal do Príncipe de Gales. Gibbs deixou a sua carga sobre uma cómoda, avançou pela alcova, abriu a janela e os cortinados. Uma luz tristonha e fria penetrou no quarto. Lá fora chovia. Gibbs aproximou-se do leito real e disse: bom dia, Majestade. Está uma excelente manhã. E Canuto respondeu com voz turva: já sei, Gibbs. Tenho muito sono». In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.

Cortesia de Caminho/JDACT

A Bela Adormecida Vai à Escola. Gonzalo Ballester. «Canuto não conhecera a mãe, e descansou em Gisela como no regaço materno; teve em quem depositar a sua intimidade e mais uma pessoa a quem obedecer, mas há que proclamar em abono de Gisela…»

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A casinha do bosque
Estripador e a sombria recordação de Lourenço, o Galante, cujas intemperanças sexuais provocaram uma revolta célebre; e da rainha Ferdinanda, em cujos amores a magia e o mistério se misturavam com o crime e a mais patológica incontinência. Acontece que os partidários de ambas as versões se desentenderam, e para o caso de o instinto recém-desperto se empenhar em persistir, ou a tripla herança degradante insistir nos seus efeitos, o Conselho de Educação de Sua Majestade decidiu, depois de graves e longas disputas, colocá-lo nas mãos de Gisela-Lillo-Inés, cuja juventude experiente tomou a seu cargo a canalização dos reais instintos: trabalho pelo qual foi considerada funcionária do Estado, figurando na lista dos fundos secretos.
Gisela-Lillo-Inés não era uma desconhecida na Corte, e muito menos uma adventícia. A sua figura carnuda, embora espigada, uma fausse maigre, contava-se entre as coristas da Ópera, e os galanteadores habituais tinham comprovado repetidas vezes as suas excelentes aptidões para o cargo palaciano com que mais tarde foi agraciada. Contava entre a sua clientela o mais extravagante da aristocracia e o mais promissor da política, e por ter protectores em ambos os bandos a sua nomeação foi aceite«(…) Mas os outros viram por trás do galanteio a sombra perversa de Frederico IV, ao qual as crónicas secretas chamavam o  sem discussões, especialmente por parte do Camareiro-Mor, por cujo filho primogénito Gisela se tinha apaixonado e ao qual se empenhava em fazer seu legítimo esposo.
Foi para Canuto uma experiência dolorosa: o seu espírito inocente mal entrevira os aspectos pecaminosos do amor. Tinha galanteado uma rapariga pelo simples facto de a ter achado bela e amável, e porque lhe parecera uma forma desconhecida de felicidade sentar-se junto dela e tentar que a conversa se impregnasse da poesia do momento. Falou de amor, porque nas suas leituras tinha descoberto qualquer coisa como um mistério a que não sabia que nome dar, mas podia do mesmo modo ter falado de cinza, girassol ou peristilo, de igual modo misteriosos. O seu encontro com Gisela, a maneira desenvolta que esta teve de se insinuar, a surpresa do Rei, a surpresa maior de Gisela, € o resultado final, formavarn na mente de Canuto um complexo de recordações desagradáveis e dolorosas, como uma chaga do espírito que apenas com o receio de um contacto se acende e dói: naquela noite, nos braços de Gisela, convencera-se definitivamente da sua pouca imporlância, da sua pequenez, da pequena e miserável coisa que é ser rei quando não se é ao mesmo tempo um hornem feito e direito. Por sua vontade teria fugido. Ela apoderou-se de Canuto com uma plenitude inesperada, porque ele não só a deixou governar o seu corpo, mas também a sua alma, sempre na medida compatível com a Constituição.
Canuto não conhecera a mãe, e descansou em Gisela como no regaço materno; teve em quem depositar a sua intimidade e mais uma pessoa a quem obedecer, mas há que proclamar em abono de Gisela que não abusou desse privilégio. É certo que pôs imediatamente um preço aos seus serviços, e que uma potência estrangeira os adquiriu muito caros, o que não afectava a pessoa de Canuto, mas a segurança do Estado. De certo rnodo, a influência de Gisela foi benéfica, pois embora nunca tenha conseguido curar Canuto da abulia, infundiu-lhe pelo menos a enganosa impressão de que em determinados momentos era capaz de actuar por conta própria.
Quanto ao resto, a situação de Canuto no seu reino parecia-se com a de todos os reis constitucionais. Reinava, não governava, e era governado. Presidia às grandes paradas e à colocação das primeiras pedras, recebia os embaixadores e aborrecia-se. Os monárquicos toleravam-no com receio dos republicanos, e os republicanos transigiam com ele com receio das aspirações hereditárias de certo príncipe estrangeiro, chamado ao trono por rigoroso direito sucessório se Canuto morresse ou fosse destronado». In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.

Cortesia de Caminho/JDACT

A Bela Adormecida Vai à Escola. Gonzalo Ballester. «… de um instinto adolescente despertado pelo efeito combinado da festa, da noite, do perfume e da Lua que actuaram energicamente sobre o seu grande-simpático»

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A casinha do bosque
«(…) Voltando a Canuto, o relatório de urn diplomata sagaz assegura que lhe falta personalidade num grau verdadeiramente incalculável. O diplomata era inglês, de boa casta e melhor educação, e a sua leitura afirma-o como humorista. O rei Canuto, afirma, é uma curiosa entidade abstracta perante a qual podem surgir graves dúvidas existenciais. Quando o visitante se aproxima dele no Grande Salão de retratos onde recebe as embaixadas, tem a impressão de que o Rei se desvanece como pessoa viva, e que, ao contemplá-lo, sofre de uma alucinação persistente. A figura do rei Canuto carece de qualquer elemento próprio. As suas costas curvam-se como as do rei Roberto. Os seus olhos são os olhos da rainha Carolina. As mãos recebeu-as sem dúvida do avô matemo. o imperador da Alemanha, e no corte do nariz parece-se com Ladislao, o Fero. A boca e o sorriso podem ver-se no retrato de Frederico IV, e todos, absolutamente todos, os restantes elementos da sua figura e do seu carácter podem ser identificados nos grandes retratos que pendem das paredes, até os mais antigos, incluindo Boris, o Magnífico, fundador da dinastia. E quando o visitante domina a ilusão de se encontrar diante de um fantasma, cai inevitavelmente na convicção de estar a falar com um homem feito de retalhos. Não duvido de que aconteceria o mesmo a qualquer um, se dispusesse de boas efígies dos seus antepassados com as quais pudesse comparar-se; mas nós, os restantes homens, mal conhecemos os nossos bisavós, e chegamos a julgar-nos possuidores de uma personalidade original e própria. Se uma velha amiga nos acusa de parecença com qualquer tio carnal defunto, achamo-la esúpida e visionária. O rei Canuto, pelo contrârio, considera-se um resumo lastimável dos seus antepassados, e talvez alimente o receio de que qualquer dia cada um deles reclame a parte que lhe cabe e de Canuto não fique mais que a recordação, uma recordaçâo tão vaga que quase se pode temer que não exista.
Contudo, o investigador discreto sabe ser cauteloso perante estes relatórios. Se se estuda Canuto sem preconceitos, se se convive com ele, pode chegar-se a conclusões um tanto diferentes, embora igualmente pouco satisfatórias. É indubitável que a sua educação o impediu de formar uma personalidacle no sentido da escola americana, e em vez disso contribuiu para a criação de vários complexos no sentido da escola vienense. Como nasceu enfezado, convenceram-no da necessidade de ser atleta e, mais do que isso, de que os seus súbditos só o respeitariam pelos ombros largos e os bicípites poderosos; e Canuto tomou o ténis, a natação e a ginástica como um dever, embora contrário à sua tendência romântica para vaguear pelos jardins, ler romances e deleitar-se na contemplação das brumas matinais. Quando chegou à idade apropriada, informaram-no de que os actos reais carecem de validade se não forem referendados por um Ministro responsável, e, ao mesmo tempo, de que esses actos devem estar de acordo com a opinião maioritária, não ser hostis à oposição e ser bem acolhidos pela Imprensa. Mas quando Canuto fazia qualquer coisa em que essas condições coincidissem, os seus camareiros, os seus professores, os senhores generais e cortesãos, o tutor e o ajudante de cãmara mostravam-se discordantes; e não sabendo encontrar o ponto médio entre tanta desavença, decidiu nunca actuar, mas deixar-se empurrar para a acção pela máquina privada palaciana e pela pública máquina política, eliminando assim a tradicional contenda entre uma e outra. Foi, sem dúvida, o seu acto mais inteligente, mas há muitos que duvidam em atribuir-lhe a responsabilidade, atribuindo o feito a Gisela-Lillo-Inês.
Ai, Gisela-Lillo-Inés! Esta sim, é uma boa história. Tinha Canuto uns quinze anos, e em certa ocasião cometeu o erro de galantear uma certa rapariguinha da aristocracia, a condessa Waldoska, mais ou menos da sua idade. Foi numa noite de festa, no jardim, à beira do rio, com perfume de flores e luar. Canuto pensou que aquele galanteio era um acto verdadeiramente pessoal, e levou o seu entusiasmo até ao abraço e à carícia. Aqueles que quiseram desculpá-lo, que foram poucos, interpretaram-no como o resultado de um instinto adolescente despertado pelo efeito combinado da festa, da noite, do perfume e da Lua que actuaram energicamente sobre o seu grande-simpático». In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.

Cortesia de Caminho/JDACT

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Inocente, não é verdade? Ou melhor, pueril. Mas acontece que turulú é a palavra que chateia, que irrita, que faz perder as estribeiras a Carlos Frederico Guilherme…»

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«(…) Não vejo as pessoas com estes binóculos mínimos. Às vezes pareço adivinhá-las, mas não é impossível que sejam ilusões favorecidas pelo desejo. Isto que vou contar agora não o sabe Carlos Frederico Guilherme, ignora-o Christian: só estão no segredo quatro ou cinco leais sem emprego que, de um momento para o outro, tiveram ocasião de exercer a sua lealdade. Acontece que não tive outro remédio senão pôr em jogo a minha liberdade e, talvez, a vida e entrar na minha cidade como incógnito clandestino. A minha filha Rosanna teve uma filha e, ainda que o pai seja o imbecil mais bem vestido da corte imperial, o mais afectado dos hussardos que ornamentam as tropas do meu primo, a criança era minha neta e apetecia-me dar-lhe um beijo. Circularam correios entre mim e Rosanna. Recorremos às pessoas que referi: numa noite de vento favorável aproximou-se certo bergantim ligeiro da praia mais próxima. A um sinal, entrei num bote e embarquei. A travessia foi boa, as entradas secretas do palácio não haviam sido entaipadas nem sequer encerradas e, assim, pude ver Rosanna e a pequena Carlota, que tinha o nariz de seu pai (o melhor do pai dela é o nariz), mas os olhos de Amélia e isto consolou-me e fez-me amá-la desde o início. Quando o disse a Rosanna, ela perguntou-me: e isso alegra-te? Sussurrei-lhe: tu não sabes que amei muito a tua mãe?
Ficou perplexa e, mais ainda, quando acrescentei: e também gosto de Myriam. É mais parecida com a tua mãe do que tu. Então, Rosanna deu-me um beijo. Foram as palavras e o beijo menos sinceros das nossas relações, porque eu sabia, e ela não sabia que eu sabia que ela sabia. Pois eu passei no meu palácio três dias sem ser reconhecido e, numa daquelas noites, alguns desses leais acompanharam-me a dar uma volta pelas ruas da cidade, pelos bairros marinheiros, pelos jardins. Numa tasca em que entrámos para tomar uns copos de rum, desse rum forte dos navegantes que eu não posso comprar, ouvi alguém que dizia a alguém: aquele com o casaco à inglesa não te parece o destronado Ferdinando? Estás com visões, Alfredo!; e não houve mais. Mas diverti-me naquela noite, enchi os pulmões de um ar esquecido e incomparável (não existe cidade marítima do mundo onde a humidade do ar seja tão fresca como na minha) e fumei um cachimbo com os cotovelos assentes num varandim, por cima da muralha, vendo afastar-se as luzes de presença de um navio de cinco mastros que zarpava para o além. Ainda navegavam os últimos cinco mastros: agora já não os há. O que se perde no horizonte são uns vestígios de fumo.
Naquela mesma noite, reintegrado no palácio e a coberto de indiscrições e suspeitas (uma mulher como Rosanna, casada contra vontade com um imbecil como Raniero, não tem outro remédio senão espevitar a astúcia para continuar vivendo sem que a tentação da alta torre não a ronde mais do que um par de vezes por ano; acontecia isto a Rosanna de cada vez que Raniero aparecia pela cidade e se deitava com ela: como já disse, um par de vezes); naquela noite, digo, escrevi ao meu primo Carlos Frederico Guilherme uma carta anónima nos seguintes termos: Senhor, a sua polícia não sabe que o ex-duque Ferdinando Luís vem com frequência a esta cidade e se reúne com um grupo de conspiradores que tentam repô-lo no trono? Ninguém o informou de que a Inglaterra lhes fornece armas, de que centenas de emigrados se treinam militarmente nos Estados Unidos e de que o sinal da sublevação será a chegada ao porto de um navio carregado de voluntários? Majestade, a sua polícia deixa muito a desejar!
Mas, depois, pensei que acabariam pagando os justos pelos pecadores e que Carlos Frederico Guilherme era capaz de torturar Rosanna até lhe arrancar o segredo da minha visita. Rasguei a carta anónima e escrevi outra, que, essa sim, lhe enviei e que me consta que recebeu:

Majestade: turulú!
Inocente, não é verdade? Ou melhor, pueril. Mas acontece que turulú é a palavra que chateia, que irrita, que faz perder as estribeiras a Carlos Frederico Guilherme e por boas razões, já que, em virtude de certos jogos infantis que não pôde esquecer, turulú!, recorda-lhe a Turquia. Mas só eu é que sei disto, que brinquei com ele em criança. Também ninguém entende porque não lhe passa a irritação até dormir com sua majestade, a imperatriz, que descende de Cados Magno, ela só capaz de enobrecer um rato só com levá-lo para a cama! Nos seus braços, o meu primo sente-se secretamente enobrecido e isso também não o sabe ninguém a não ser eu e, secretamente, por cima de todas as genealogias sem mácula, se é que as há (mas ele tem necessidade de que as haja). Quando a senhora está à mão, tanto melhor; mas quando está a viajar, ocasiões que ela aproveita para enobrecer a quem o necessita, o meu primo é capaz de cometer os maiores disparates. Como a famosa guerra contra a França que se temeu que ele declarasse num desses arrebatamentos, só porque o netinho lhe dissera: turulú!, e a senhora estava a tomar águas». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Cruzam a cidade canais e braços de mar, o mar penetra-a, as casas têm janelas viradas para o mar e varandas erguidas sobre as ondas e, por todos os lugares navegáveis»

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«(…) Ter-se-á rodeado meu tio Aleixo de monges inquisidores, de belas bruxas e de aparelhos de tortura? Desses pormenores nada se sabe. Isso de medieval referente às orgias, será um indício? No rés-do-chão e nas caves conservam-se, ainda, tanto a atmosfera sinistra como a quantidade de corvos e morcegos que os romancistas ingleses costumam considerar suficiente para este tipo de castelos, apesar de os descreverem maiores e mais complicados. Não sei se um aspecto tenebroso tão literário não deverá alguns dos seus pormenores ao arquitecto francês, que também percebia de aperfeiçoar as sombras e que, com bastante segurança, interveio, com os seus remendos, na atmosfera tenebrosa do castelo. Em qualquer caso, aqueles aposentos são tão escuros, tão amplos e lúgubres os patamares, que me metem medo, ainda que na medida estritamente indispensável para não sermos atrevidos. A porta de comunicação entre o meu mundo quotidiano e esse, excepcional, está fechada e firmemente trancada. Não recordo ter descido a esse inferno mais do que uma vez, apesar da sua indubitável fascinação: faz lá muito frio.
Adoptei, pelo contrário, o terraço. Fica por cima do mar, por cima da espuma e dos rochedos; quando sopra o vendaval, o estrondo sobe e ouvem-se as vozes que o vento traz, ora gemidos de moribundos, ou alaridos de triunfo e alvoroços de soldados sem freio. Às vezes, as gaivotas colaboram e, então, o estrépito adquire uma ordem, quase uma forma, que o torna semelhante a um concerto, ainda que bastante inusitado. Mas a brisa traz, com os seus sussurros, mensagens que quase ninguém entende; quando o tempo está calmo, o castelo fica como um fantasma no alto da névoa. Não disse ainda que, precisamente em frente daquela que foi a minha cidade, fica um estreito famoso por causa das batalhas navais que nele se travaram, talvez pela visibilidade do cenário; e como está elevado, refiro-me ao castelo, ao declinar da tarde instalo-me no terraço com os meus binóculos para ver se, com um pouco de sorte, vejo pôr-se o Sol: há poucos dias em que isso aconteça porque o engolem o nevoeiro ou a chuva, mas o que acontece é que o Sol cai sem pressas, lá longe, entre franjas negras de nuvens e franjas vermelhas de céu; sei que, então, o meu coração se comove e salta do mesmo modo que os corações dos que foram meus súbditos. Ainda não disse, mas digo-o agora, que no nosso escudo há um Sol poente e a palavra além: os nossos antepassados foram os primeiros a navegar mais além. O que, contudo, posso contemplar, com maior ou menor nitidez, são os mastros dos veleiros atracados nos molhes exteriores, de perfis imprecisos porque chove. No meu país chove muito; certa vez andou por lá um poeta inglês que disse, da minha cidade, que era de mastros e de chuva. Tinha razão. Cruzam a cidade canais e braços de mar, o mar penetra-a, as casas têm janelas viradas para o mar e varandas erguidas sobre as ondas e, por todos os lugares navegáveis, se metem barcos de todos os calados e de todas as bandeiras, de modo que, ao abrir as vidraças, de manhãzinha, há sempre uma fragata ou um bergantim cujos penóis se aproximam familiarmente, ou passam de largo como gente conhecida: é muito frequente que, da cozinha de um veleiro, um cozinheiro peça um pouco de sal a uma senhora que está varrendo o passeio em frente da porta. Já não vejo tudo isto, mas posso pressenti-lo como se estivesse por detrás de uma cortina, graças à generosidade e à cortesia do meu primo Christian, como já disse. Com uns binóculos mais potentes talvez chegasse a vê-lo, mas estão caros, com tantos avanços que agora têm. Uma vez veio por aqui de visita um capitão da marinha mercante cuja família se manteve sempre fiel à dinastia: pelo menos mil anos de fidelidade, desde os tempos em que um tetravô meu, de cornos no capacete, dava ordens a um timoneiro sobre questões de rumo. Prometeu trazer-me uns binóculos muito mais potentes mas, como me contou que andava apaixonado por uma morenita de Nova Orleães, não deixa de ser possível, ou que tenha ficado por lá de vez, ou que o não tenham deixado voltar por meio de bruxarias: tentadores como são os louros para melhorar a raça! Se não lhe tivesse acontecido nada deste género eu teria os binóculos e veria melhor a chuva e os veleiros. Às vezes, Christian vem, incógnito, almoçamos juntos, tomamos café e ele, depois, regressa. Numa dessas tardes disse-me: vês como, a longo prazo, a guerra de 1783 acabou por te favorecer? Se os teus antepassados tivessem vencido os meus, agora os nossos países seriam ambos de Carlos Frederico Guilherme e não poderias consolar-te do desterro contemplando a tua casa de tão perto. Já não contemplo o meu palácio de móveis inventariados desde que, numa tarde das claras, descobri que a bandeira que ondeava na torre não era a minha!» In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Diz-se que nele celebrava Aleixo as suas orgias medievais, mas este dado histórico, dito assim, nunca consegui entendê-lo»

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«(…) Para além das cartas há, também, alguns documentos dos chamados confidenciais. Rasguei muitos, na sua maioria delacções repugnantes, cartas anónimas contra este ou a favor daquele, quando não contra mim próprio. Pergunto-me como desafogariam certas pessoas a sua alma miserável antes de se popularizar a escrita. Quem terá sido o inventor genial da carta anónima? Fácil como é! Põem-se os insultos uns atrás dos outros e já está. Dá-se saída à inveja e ao ressentimento e já está: ficam rios de lixo. Não sei se falei já da senhora Stolle, mas voltarei a falar dela. Tem um salão frequentado por artistas e por outras pessoas inteligentes. Porque será que eu suspeito que foi desta casa que saiu a maior parte das denúncias contra os liberais, as acusações de deslealdade e de perversidade contra pessoas que considero minhas amigas ou, pelo menos, minhas defensoras? A senhora Stolle denuncia os seus próprios companheiros de tertúlia e imagino-a convencida de que presta um serviço à pátria, quando só favorece a Águia do Leste. Pelo contrário Paulus, o sargento... Tem a seu cargo informar-me do que se passa pela cidade. Dá voltas pelas ruas e fala com este e com aquele. Depois escreve-me.

Do sargento Paulus a S. A. o grão-duque Ferdinando Luís, respeitosamente
Senhor, no meu último relatório falava-vos de que a senhora Sauce iria dar à luz um dia destes: pois já foi mãe de uma formosa menina, à qual pôs o nome de Tarakanova o qual, na minha opinião, vai acabar por ser comprido demais. A menina Rosa, da loja das rendas, zangou-se com o namorado e isto causou grande agitação no bairro do Sul, porque a gente do bairro do Sul é muito solidária com todos os do bairro do Sul, e como o noivo da menina Rosa era do bairro do Leste, não o viam com bons olhos e o abandono de que fez objecto a menina Rosa é considerado como uma ofensa a todo o pessoal. É muito possível que haja brigas entre os rapazes do bairro do Sul e os do bairro do Leste que, segundo parece, também se solidarizaram com o noivo da menina Rosa. A vendedeira de hortaliças da Rua do Leme Partido, que tem uma pocilga, apesar dos protestos de toda a gente, viu aumentada a sua população porqueira em oito rosados leitões, dos quais já vendeu quatro; e é o que diz a menina Verbena, que lhe faz concorrência: ou vende couves ou porcos, mas as duas coisas, não. Com certeza que o filho da senhora Verbena, contra a vontade dos pais que queriam associá-lo ao negócio, se embarcou numa fragata das que vão para Inglaterra, mas com a intenção de passar à América quando estiver mais desembaraçado a trepar aos mastros. Senhor grão-duque, à senhora Zanahoria, que tem uma loja de produtos importados na Rua do Leme Intacto, apareceu-lhe um caroço maligno debaixo de um sovaco e correu o boato de que ainda lhe vão aparecer outros seis: que pelo número lhes chamam andorinhos, não sei porquê: a senhora Zanahoria está  muito abatida e o marido dela dedica-se a correr os barcos estrangeiros em busca de um unguento que lhe cure a mulher, a quem, como está tão dorida, não pode tocar de noite. Por essa coisa de tocar ou não tocar também houve conflito, com bronca das grandes, na Rua do Caderna Esburacada: porque se descobriu que o senhor Saulo, o enfermeiro do Hospital, tinha tido relações com uma das enfermeiras e, por esta razão, a mulher dele não o admite no leito conjugal, e diz-lhe que se vá divertir com a outra: o bairro está dividido, os homens a favor do senhor Saulo e as mulheres a favor da Senhora Stella, que assim se chama a interessada.
O ponto alto do escândalo costuma ser por volta das oito da noite: é um espectáculo divertido e recomendável, no qual se vê como as pessoas se contentam com palavras, sem passar aos actos. Senhor grão-duque, à menina Esmeralda, que vende linhas e aviamentos de costura, tudo isso que elas chamam de capelista, na Rua do Peixe Voador, conforme se entra, o banco quis-lhe fechar a loja, porque não pôde pagar uma letra de vinte moedas que lhe vinha do estrangeiro: pois as pessoas fizeram imediatamente uma colecta, eu contribuí com dez peniques que faltavam e, quando chegaram os executores, pagou-se-lhes a letra e ficaram com uns narizes de palmo, porque o que faz os executores felizes é, precisamente, executar. Ele há gente mesmo má!

A villa que o meu amigo Christian me emprestou para viver é, na realidade, mais do que uma villa e um pouco menos do que um castelo: lindíssimo, se o pai de Christian, o meu tio Aleixo, não se tivesse lembrado de o restaurar: trouxe de França um arquitecto que o fez parecer mais medieval do que era, apesar de novo. Diz-se que nele celebrava Aleixo as suas orgias medievais, mas este dado histórico, dito assim, nunca consegui entendê-lo. Como foram as orgias medievais e em que se distinguiam das contemporâneas?» In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «Não te falei do tempo. Vou fazê-lo agora, depois de ter escolhido, quando me disseres que te apetece ouvir música, Vivaldi ou Monteverdi, dessa que organiza o espírito…»

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«(…) Hoje, no entanto, não pensava fantasiar sobre o teu corpo: tema que veio sem querer, imagens trazidas por uma dessas associações fortuitas que tão facilmente explicam a alma nos seus movimentos e no-la tornam transparente e compreensível como a exposição de um teorema. A alma, porém, tem vazios, buracos escuros como aqueles que os astrónomos dizem existir no espaço: abismos do nada de que um dia emergirão as mãos que hão-de agarrar o cosmos, as fauces que o vão devorar. Bom, hoje não pretendia falar-te do teu corpo, nem sequer (pelo menos alongadamente) do problema de Claire, que me disseram na universidade que vai bastante mal, parece que na sua reunião os decanos concordaram em nomear um comité de especialistas para estudar o caso e decida se o sentido de humor espalhado no livro o exime, pela sua própria exuberância (e talvez pelo seu peso), de toda a pretensão científica e o relega para o âmbito inocente da mera poesia, nesse caso sendo Claire perdoado, se bem que na condição de se desculpar em público (há quem fale em organizar um simpósio, mas eu acho, e assim o disse, que a única forma de explicar um livro é escrevendo outro). Mas caso contrário, ainda considerando que é costume dos Anglo-Saxões expressarem-se com graça, e quanto mais abstruso for o tema mais se procura mascarar a sua gravidade, se Claire se empenhar em que a pretensão científica do livro permaneça como sua justificação e como sua substância, perderá a cátedra. Revelaram-me em segredo quem é que elegeram para o comité: gente tão inteligente como Jones, tão honrada como Jackson, tão sagaz como Wilson. E, para ostentar a presidência, coisa que fará com um impacte como se verdadeiramente fosse o presidente do país, um pavão com penas tão brilhantes como Catskill, o qual, como toda a gente sabe, só deseja o bem de Claire, a quem, por outro lado, deve o seu posto e a sua reputação. Por isso mesmo! Fosse o livro uma espécie de Peter Pan, e apresentá-lo-iam como a prova do esforço frustrado a que um cientista em declínio se arrisca para manter suspensa da sua obra a atenção do mundo inteiro. R. I. P., Ariadne! Pobre Claire!
E sabes que estou a pensar ajudá-lo? Tu ainda não te apercebeste. Talvez penses (ou não te atrevas a pensar) que te trouxe comigo para olhar para ti com liberdade e sem pressa, para que conversemos juntos à hora do crepúsculo e do anoitecer em que só se diz o essencial; talvez para distrair a tua mente e afastá-la da recordação e até do amor de Claire. É possível que tudo isso seja certo. Bom: é verdade, e não o ignoras. Mas, além disso, há a questão da ajuda. Até agora nunca te falei do tempo. Hoje preciso de o fazer já, não assim que chegares, como sempre, com vontade de fechar os olhos e de me ouvir disparatar acerca de bagatelas, com fome, porventura, ou com exclamações exageradas de que vens moribunda, de tão longe que está já a sande das onze e meia, de que te aborreceste mais do que um polvo numa garagem (a frase é tua); pois, para este caso, tenho sabido com que saciar-te, porque esta tarde arrisquei-me a caminhar para lá do bosque, cheguei à downtown e comprei algumas das vitualhas que sei que tu gostas: um monte de castanhas assadas, figos secos tão gregos como tu, ou pelo menos assim mo garantiram. Comi um deles: doce e pastoso, e tinha a polpa cor de mel. Espero que te façam lembrar a tua terra e que chores um pouco embalada pela nostalgia: momento, como podes compreender, pouco oportuno para metafísicas.
Não te falei do tempo. Vou fazê-lo agora, depois de ter escolhido, quando me disseres que te apetece ouvir música, Vivaldi ou Monteverdi, dessa que organiza o espírito e faz dançar a alma. Ou também é possível que pegues na viola e me cantes um desses poemas de Kavafis a que um candiota teu amigo deu a música. Tanto me faz, mas, se tivesse de escolher, pedir-te-ia que cantasses, porque prefiro a tua voz ao violoncelo. Vou falar-te do tempo, e para isso tenho de me referir ao Grande Copta, e primeiro que a ele, a Ashverus, porque um traz o outro, porque um veio pelo outro, com outros mais, todos místicos e misteriosos, e a quem procurei e com quem falei também durante uma das minhas últimas viagens, quando a questão de Claire já me inquietava e os livros não respondiam às minhas perguntas. Acerca dessas amizades, que tu ignoras, tenho algumas notas nos meus papéis, e se calhar um dia falarei delas, à margem das nossas coisas e de Claire, isto é, noutro dos meus cadernos; mas o Grande Copta pertence a este por direito próprio, como a seguir perceberás. Noutro lugar e tempo, ainda que não muito distantes, contei os termos do meu encontro, certa tarde, em Nova lorque, com o Judeu Errante». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
                                                                                                                                
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «E apontava com o dedo estendido o camarote do pirata, aquele de que eu gostara para mim e agora ocupas, essa cela encantadora para refúgio de um intelectual cansado»

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«(…) Gostámos da cabana. Não sei quem mais de nós dois, mas, de qualquer forma, o teu entusiasmo pareceu maior do que o meu, e não pelo que ias cobrar de comissão, uns dez por cento sobre a renda, mas sim pela verdadeira vontade que tinhas e ocultavas de passar ali uns dias, de ver como o Outono se metia no tempo, se apoderava uma a uma das folhas do bosque: notava-se-te nos olhos, no ágil gesto das mãos, sobretudo na voz, quando elogiavas as virtudes e méritos da ilha e do refúgio, lugar para o amor também, não só para o estudo e para o recolhimento. Foram uns minutos em que, se Claire ali se encontrasse, teria sorrido um pouco com aquele seu sorriso de anglo-saxão prepotente perante os povos inferiores, e no caso de ir mais além do sorriso, que já basta por si próprio para uma pessoa se sentir incomodada, ter-te-ia censurado como a uma meridional incorrigível o movimento e a expressividade, precisamente o que eu elogio em ti, a voz que sobe e se quebra, e o que dizem as tuas mãos quando a língua se recreia. Estava entusiasmado a contemplar-te, sentara-me num dos cadeirões e via-te ir e vir, abrir portas e armários, parar junto à lareira, descrever-me a chama estremecida da lareira nas noites escuras, e a luz das velas trémulas se quisesse acendê-las, criando nas esquinas as sombras do mistério do medo, o levei tempo a aperceber-me do teu desejo; quando o compreendi, apressei-me a convidar-te: por que é que não vens também e me acompanhas durante todo esse tempo? E apontava com o dedo estendido o camarote do pirata, aquele de que eu gostara para mim e agora ocupas, essa cela encantadora para refúgio de um intelectual cansado. Perguntaste-me se estava a oferecer-te a sério; respondi-te que sim, e ficaste pensativa durante um bom bocado, até que me disseste: era preciso ir e vir para a universidade todos os dias. Sim, e depois? Também não vais da tua casa? Foi muito curioso, um pouco incoerente, pelo menos segundo o meu modo racional de ajuizar: não respondeste nem que sim nem que não. Disseste: apetece-me tomar banho. Peço-te que não olhes: não quero que me vejas nua. E sem que eu concordasse, sem que sequer protestasse contra a tentação, saíste, e uns minutos depois, traidor como sou, gente de pouco fiar, vi-te bracejando lenta pelas águas do lago, sair mais tarde e esconderes-te depressa, talvez no interior da cabana. Gostei então do teu corpo, magro e moreno, não rosado como o das vikings, mas sim de pele como a pátina das teclas de um piano velho. E lembrei-me enquanto o contemplava daquele poema egípcio que Claire nunca te recitou, porque provavelmente não figura na sua limitada antologia: é tão bonito atirar-me para dentro do tanque e ali banhar-me à tua frente! Vê como estou bela, como a minha túnica molhada molda o meu corpo! Mergulho ao pé de ti, e, ao emergir, aproximo-me de ti e levo preso nos caracóis um peixinho vermelho. Aproxima-te e revista-me! Regressaste ao salão enxugando o cabelo. A água estava um pouco frio, e pediste-me whisky, se eu tivesse: dei-to do meu frasco de prata, aquele que Tatiana me ofereceu quando foi aprovada summa cum laude a tese que eu tinha orientado. Perguntaste-me uma vez, ainda éramos amigos há pouco tempo, se Tatiana tinha sido minha amante; desatei a rir: Tatiana é uma rapariga sensata; acredita no casamento e vai casar-se com um químico qualquer que resgatou da droga. O frasquinho de prata para whisky que me deixou como recordação recebera-o do pai, oficial do exército do czar, acabado de sair da escola quando se deu aquilo da revolução. Tatiana é o fruto tardio do casamento entre o tenente emigrado e uma menina colombiana encontrada numa catástrofe qualquer: falava o espanhol, Tatiana, ondulante e doce da sua mãe, o mais bonito que alguma vez ouvi. Não. Nunca foi minha amante.
Nunca te disse que o teu corpo, visto despido mais algumas vezes, todas as que tomaste banho no lago, não é um corpo de mãe, nem sequer de esposa: eu destiná-lo-ia a outro tipo de amor feito de tempestade e tormenta. Vendo-o pela cortina entreaberta, iluminava-o um bocadinho o sol poente, era terrível e seco como um relâmpago; compreendi então porque é que agrada a Claire, e um dia dir-te-ei as razões, embora ainda não perceba porque é que me agrada a mim, e temo que nunca o possa explicar satisfatoriamente, nem sequer nas páginas deste caderno, onde posso escrever tudo, onde desejaria fazê-lo». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
                                                                                                                                
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «Uma vez perguntei a Claire, com base nos primeiros acontecimentos, como é que a ideia lhe tinha ocorrido, ou qual tinha sido o caminho que o levara até ela…»

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«(…)» Napoleão examinadas, as quais, além disso, classifica como sendo de origem ou fonte francesa (Chateaubriand), alemã (Metternich) e inglesa (quem?). Espero que um dia o método de Claire, essa multiplicidade de técnicas pela primeira vez utilizadas na investigação histórica, chegue a ser usual, e que um dia terá igualmente envelhecido e terá de ser superado; hoje é tão abrupta a sua novidade, é tão desafiadora, que não estranho a repulsa com que foi recebida e a chacota geral com que os demais manifestam a sua pessoal e irreparável rotina. Naquela noite, Ariadne, tu lias, fomos progressivamente conquistados por um discurso de estrutura rigorosamente matemática e por uma palavra de expressão rigorosamente poética, de forma que o resultado foi a mais perfeita embriaguez, a mais inconcebível, da inteligência e da sensibilidade. Reconheço que cheguei a estar-me nas tintas para o que se debatia: se Napoleão foi algo mais do que uma palavra favorecida, embalada, amamentada pela necessidade política.
Uma vez perguntei a Claire, com base nos primeiros acontecimentos, como é que a ideia lhe tinha ocorrido, ou qual tinha sido o caminho que o levara até ela, e o que me respondeu não deixou de me chocar: até ouvi palavras pelas quais se calhar nós dois, isto é, tu e eu, estamos agora na ilha, e fora os dias em que as minhas aulas me levam a acompanhar-te de manhã e a regressar contigo ao entardecer, espero-te à hora do crepúsculo como vou fazer agora, e consumo cigarro após cigarro até ouvir a tua buzina; contemplo-te depois enquanto estacionas e como agitas a mão ao descobrires-me, fingindo surpresa: sabes de sobra que estou à tua espera; e depois entras no barco e vens a conduzi-lo até à mão que te ajuda a saltar e à face que recebe o teu beijo. Hoje não tiveste carta. Natália, a ucraniana, perguntou-me por ti. Daqui a dois dias, às seis da tarde, há reunião do departamento: Olga recomendou-me que não te esqueças de comparecer. Hoje mal comi: apenas uma sande na cafetaria e regressei ao gabinete de Claire, porque me mandou recado de que às duas e meia me telefonaria.
Disse-te onde está? Acabou por não telefonar. Estou preocupada. Claire contou-me naquele dia que, quando era pequeno, ao ouvir o nome de Napoleão, este lhe soou como se fosse falso e ao mesmo tempo conhecido, como um nome de nada posto a nada. Tinha sete anos, sabes? Uma idade ainda muito cedo para certas intuições, uma idade em que se pensa que atrás de um nome há sempre uma realidade; mas, explicou-me Claire, com ele foi como se aquele nome lhe recordasse algo que já sabia, ou como se, ao seu conjuro, se destapasse um saber até, então velado. Deu-me a entender que aquela convicção devia ter-lhe vindo como a cor do cabelo e a forma do nariz com os mesmos cromossomas, mas isto, claro, é o que ele diz agora, a forma como o interpreta. O que acontecia então era que, quando falavam de Napoleão na escola, se levantava e dizia ao professor que aquele imperador nunca tinha existido: mas como é que sabes? Contra quem lutou então Pitt, o Jovem? E quem foi vencido, em Trafalgar, pelo almirante Nelson? Pitt, o Jovem, lutou contra a República Francesa; Nelson venceu o almirante Villeneuve. Pois foi essa a explicação que Claire me deu, vê lá bem. Há quem lhe aconteça o mesmo com Deus, que ouve o seu santo nome e o recebe como palavra vã, e passa o resto da sua vida convencendo os outros de que Deus não passa disso». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «O meu único ensejo era chorar. Que medonho abalo. Depois de me despedir da Rainha. descendo o joelho ao chão e tomando-lhe a mão para a beijar»

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Catarina Ataíde. Paço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) A tarde azedara em Almeirim, e só a chegada de El-Rei nas suas botas, que entretanto tinham lançado moda na Corte, e naquele seu falar manso e grave apaziguou os ânimos e restituiu ao paço real alguma normalidade. Vinha de uma caçada às lebres na coutada régia, seguido pelo bobo Panasco, o negro nascido no Congo. Não soube nunca se Paula Vicente ou alguma das irmãs Sigeia suspeitavam do meu envolvimento com Luís Vaz. Mas Joana afiançava-me: podem saber latim, grego, hebraico, árabe e siríaco, podem até ser mestras em latim e tanger as cordas com a precisão dos anjos, mas de amor nada sabem! E acrescentava, com a sua habitual malícia: bem te avisei para não confiares em ninguém, muito menos na infanta. Toda a gente sabe que mal fareja uma intriga amorosa se torna implacável.
O meu único ensejo era chorar. Que medonho abalo. Depois de me despedir da Rainha. descendo o joelho ao chão e tomando-lhe a mão para a beijar, fui-me trancar nos meus aposentos a ler e a reler todas as rimas e todas as cartas que Luís Vaz me dedicara. A sua alma oscilava entre a alegria e o desconsolo, a amargura e a saudade, o atrevimento e a dor da paixão. Era grande, era enorme, era verdadeiro poeta aquele que ali me derramava torrentes de luz. E amava-me. Jurei-lhe também que jamais amaria outro homem. Estava certa dos meus sentimentos. Tinha, porém, de me precaver. Paula Vicente defendera-o com unhas e dentes, mas a devota e severa Rainha tinha-o na mira, lera-lhe as rimas, e a infanta dona Maria, pelos vistos, não lhe queria bem.
Só me restava uma solução: avisá-lo. Luís Vaz teria de ter mil cautelas, pois que estava a Corte de olho nele. Fora uma insensatez tocar na ferida aberta da Rainha. Abri o bufete de pau-preto, tirei de lá uma palmatória pequena de marfim, um pedaço de papel, a pena e a tinta e escrevi: meu amor, todas as cautelas são poucas, el-rei Seleuco provocou um terramoto na Corte. Tua, Catarina de Ataíde. O silêncio era de tal sorte que acrescentava noite à matéria esquiva com que a noite se tece. Ainda assim, sem ter podido pregar olho, escapuli-me para o pombal e atrevi-me a suplicar ao moço pombeiro, toda a noite de vigia, que me enviasse a mensagem ao palácio dos condes de Linhares, a Xabregas. O moço acedeu, a troco de alguns reais; tinha dois pombos vindos dos Linhares e logo enviaria um de volta. Insisti para que a mensagem fosse apenas entregue ao mestre de António Noronha. O moço abriu um sorriso largo e honesto:
Ora, senhora dona Catarina Ataíde, estamos sempre a mandar correio para o palácio dos Linhares e nunca o pombeiro de lá se engana, ora vai missiva para um, ora para o outro»
Descansei e regressei mais leve aos meus aposentos, agarrando o saio com as mãos para que se não sujasse de terra. Mas, fosse pela inquietação ou pela revolta, o certo é que pressenti uns passos miúdos no meu encalço.
Parei. Olhei. Nada vi. Só as tapeçarias da Flandres e os panos brocados a cobrirem as paredes e a abafarem os meus passos. Seria o medo, o medo que me ganhava? A culpa era da noite. A noite acrescentava medo ao medo. Nem o galo havia ainda cantado. O Paço de Almeirim continuava mergulhado em silêncio. Faltava-me ainda atravessar um bom pedaço de noite e de angústia.
Contigo sou tudo, meu amor maior, que Deus te proteja, suspirei, enquanto ajeitava as almofadas de penas, tentando adormecer». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.

Cortesia de OdoLivro/JDACT