terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Claraboia. José Saramago. «O som do relógio, que expulsara o silêncio, morria em vibrações cada vez mais ténues e distantes. Depois de apagar todas as luzes, Justina foi sentar-se numa cadeira, perto da janela…»

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«(…) Na janela do rés do chão esquerdo do prédio uma mulher dava, e tornava a dar, um recado a um garoto loiro que a olhava de baixo, com o narizito franzido pelo esforço de atenção que estava fazendo. Falava com acento espanhol e abundantemente. O garoto já percebera que a mãe queria dez tostões de pimenta, e estava pronto a partir, mas ela repetia a encomenda só pelo gosto de falar com o filho e de ouvir-se a si mesma. Parecia nada haver mais a recomendar. Lídia chamou: dona Carmen, ó dona Carmen! Quien me llama? Ah, buenos días, dona Lídia! Bom dia. Dava licença que o Henriquinho me fizesse um recado da mercearia? Precisava de chá... Deu o recado e lançou uma nota de vinte escudos para o garoto. Henriquinho deitou a correr rua fora, como se o perseguissem cães. Lídia agradeceu a dona Carmen que respondia na sua língua de trapos, alternando palavras espanholas com frases portuguesas e deixando estas a escorrer sangue na pronúncia. Lídia, que não gostava de exibir-se à janela, despediu-se. Daí a pouco chegou Henriquinho, muito vermelho da carreira, com o pacote do chá e o troco. Gratificou-o com dez tostões e um beijo, e o garoto foi-se embora. A chávena cheia, um prato de bolos secos ao lado, Lídia instalou-se de novo na cama. Enquanto comia ia lendo um livro que tirara de um pequeno armário da casa de jantar. Preenchia o vazio dos seus dias desocupados com a leitura de romances e tinha alguns, de bons e maus autores. Neste momento estava interessadíssima no mundo fútil e inconsequente de Os Maias. Ia bebendo o chá em pequenos goles, trincava um palito de la reine e lia um período, exactamente aquele em que Maria Eduarda lisonjeia Carlos com a declaração de que além de ter o coração adormecido, o seu corpo permaneceu sempre frio, frio como um mármore... Lídia gostou da frase. Procurou um lápis para marcá-la, mas não encontrou. Então, levantou-se com o livro na mão e foi ao toucador. Com o bâton fez um sinal na margem da página, um risco vermelho que ficava sublinhando um drama ou uma farsa. Da escada veio um rumor de vassoura. Logo, a voz aguda de dona Carmen entoou uma cantilena melancólica. E, ao fundo, atrás desses ruídos de primeiro plano, o zumbido perfurante de uma máquina de costura e as pancadas secas de um martelo sobre a sola. Com um bolo delicadamente apertado entre os dentes, Lídia recomeçou a leitura.

O velho relógio da sala, que Justina herdara por morte dos pais, bateu nove pancadas fanhosas, depois um arquejo de maquinismo cansado. A casa, de tão silenciosa, parecia desabitada. Justina usava sapatos de rasto de feltro e passava de um quarto para outro com a subtileza de um fantasma. Estavam tão certas uma para a outra, ela e a casa, que, vendo-as, se compreendia imediatamente por que uma e outra eram assim e não de outro modo. Justina só podia existir naquela casa, e a casa, assim tão nua e silenciosa, não poderia ser o que era sem a presença de Justina. Dos móveis, do chão, subiam emanações de mofo. Havia no ar um cheiro a bafio. As janelas sempre fechadas produziam aquela atmosfera de túmulo, e Justina era tão lenta e tardia que a limpeza da casa nunca se fazia completamente.
O som do relógio, que expulsara o silêncio, morria em vibrações cada vez mais ténues e distantes. Depois de apagar todas as luzes, Justina foi sentar-se numa cadeira, perto da janela que dava para a rua. Gostava de ali estar, imóvel, desocupada, as mãos abandonadas no regaço, os olhos abertos para a escuridão, à espera nem ela sabia de quê. Aos seus pés veio enroscar-se o gato, o seu único companheiro de serões. Era um animal tranquilo, de olhos interrogadores e andar sinuoso, que parecia ter perdido a faculdade de miar. Aprendera com a dona o silêncio e, como ela, a ele se abandonava. O tempo fluía lentamente. O tiquetaque do relógio empurrava o silêncio, insistia em querer afastá-lo, mas o silêncio opunha-lhe a sua massa espessa e pesada, onde todos os sons se afogavam. Sem desfalecimento, um e outro lutavam, o som com a obstinação do desespero e a certeza da morte, o silêncio com o desdém da eternidade.
Depois, outro ruído maior se interpôs: pessoas descendo a escada. Se fosse dia, Justina não deixaria de espreitar, mais por não querer ou não ter outra coisa para fazer do que por curiosidade, mas a noite deixava-a sempre sem forças, muito cansada, com uma estúpida vontade de chorar e de morrer». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.

Cortesia ECaminho/JDACT