A morte de Lancelot
«(…) Evidentemente que o Rei
português, apesar de tudo, achou toda a conversação positiva, agradável, e saiu
muito esperançado perante o olhar arguto do outro. Até se foi, em Dezembro,
encontrar com o primo Carlos. A Casa de Borgonha achava-se nos espasmos finais,
em estado de agonia, e Afonso não previra nunca isso. Nem ele nem ninguém. E o
Duque avisou o primo que o outro, o Raposão, o intrujara. Ele apenas se
divertira à custa do Africano, o herói da longínqua Arzila, de Tânger, o
tal do Reino dos Algarves d'Aquém e Além Mar! O pobre Afonso soube logo
em Janeiro, uns dias depois, que enquanto ele acreditara no Rei de França, este
enviava-o para mediador e simultaneamente mandava reforços, um exército, para
auxiliar o fim de Carlos e da Borgonha! O primo, esse, tivera a sorte do tio em
Alfarrobeira. Pior sorte. Ficara em Nancy e o corpo, no meio do seu exército
desbaratado, entregue à intempérie e à gula dos lobos que o devoraram em parte.
Foi encontrado dois dias depois do desastre. O duque de Lorena vencera o filho
de Isabel de Borgonha, o neto de João I de Portugal. O desastre arrastava a
Casa de Borgonha, a bolsa florentina de Bruges, que os Médicis exploravam, e as
esperanças do infeliz Rei de Portugal. Carlos, esse, não teve como o tio Pedro,
quem chorasse por si e intercedesse junto do Papa pelos seus ossos aqui, em
Portugal, como a mãe fizera pelos do irmão. O Rei Luís estava demasiado
satisfeito para se importunar com o nefelibata Afonso de Portugal. Recebia,
este, notícias de Portugal e sabia o filho aflito por falta de dinheiro. Sem dúvida
a sua administração, a guerra, as suas loucuras e dissipações arrastavam o
Reino para uma situação difícil que o rapaz era obrigado a solucionar.
A resposta de Roma ao casamento
não foi satisfatória. O Rei não percebia nada de política e o Príncipe
compreendia que o Papa, que estava de boas relações com a França e com Isabel
de Castela e o marido, não teria intenções de promover a discórdia para as
bandas do Ocidente... O Rei Luís XI, inclusivamente, deixou de o tratar com a
dignidade que lhe cabia, como o demonstrara em Arras. Praticamente o despediu,
apressado e impaciente, embora com frases de melíflua complacência. Só lhe restava
partir para Honfleur e regressar a Portugal. O pobre imbecil (as
más línguas afirmavam que assim se lhe referira Luís XI) ainda teve um breve
movimento de revolta. Partiu, sim, mas para longe! Ele iria entrar em religião,
visitar a Terra Santa, abdicar. Morrer por morrer, só em Jerusalém. Como
cantara o seu astrólogo judeu, o Guedelha, aquele esperto judeu amigo do
Abravanel (mas este era um Príncipe, claro!, descendente da Casa de David!): oh
Jerusalém, oh, Jerusalém de Ouro, se eu te esquecer que o Senhor retire a luz
dos meus olhos e a paz ao meu coração! Persignou-se.
Aqueles
eternos Judeus sempre a falar da Cidade do Senhor como se lhes pertencesse, a Cidade
Santa, onde o tinham crucificado e cuspido na sua face! Mas eram belas aquelas
frases e mestre Guedelha fora sempre um homem culto, inteligente e fiel. A sua
decisão estava tomada. Não voltaria atrás. Talvez nesse instante se tenha
recordado do tio que visitara Jerusalém e descansara à sombra do que restava do
velho templo. Seria, da família, o segundo a pisar as suas ruas por onde as
legiões romanas tinham marchado no passado longínquo e, mais tarde, outros
também, porque o tempo não pára de deslizar sob os nossos pés indiferente,
quantas vezes, ao nosso destino. Portanto, para Jerusalém! De França escreve
uma carta, em Setembro, destinada ao filho e onde anuncia a sua abdicação». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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