quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O Labirinto Perdido. Kate Mosse. «O homem faz uma pausa e estende a mão para pegar os óculos. Seus olhos estão anuviados de lembranças, mas o guignolet é forte e doce, e reacende a sua energia»

Cortesia de wikipedia e jdact

Los Seres. Sudoeste de França
«(…) Vi o verde da Primavera dar lugar ao dourado do Verão, o cobre do Outono dar lugar ao branco do Inverno, enquanto eu, sentado, esperava a luz se esvanecer. Muitas e muitas vezes perguntei a mim mesmo: por quê? Se eu soubesse como seria viver em tamanha solidão, suportar, como única testemunha, o ciclo interminável de nascimento, vida e morte, o que eu teria feito? Alais, o fardo da minha solidão tornou-se prolongado demais para que eu o possa suportar. Eu sobrevivi esta longa vida com um vazio no coração, um vazio que, ao longo dos anos, não parou de aumentar até se tornar maior do que o meu próprio coração. Eu lutei para manter as minhas promessas. Uma delas foi cumprida, a outra não. Pelo menos até agora. Já faz algum tempo que o sinto perto. Nossa hora está quase chegando de novo. Tudo aponta para isso. Logo a caverna será aberta. Sinto a verdade disso à minha volta. E o livro, que durante tanto tempo repousou em segurança, também será encontrado.
O homem faz uma pausa e estende a mão para pegar os óculos. Seus olhos estão anuviados de lembranças, mas o guignolet é forte e doce, e reacende a sua energia. Eu a encontrei. Enfim. E me pergunto, se puser o livro nas suas mãos, será que ela o reconhecerá? Estará a sua lembrança escrita no sangue e nos ossos dela? Será que ela se lembrará de como a capa cintila e muda de cor? Se desatar a sua tira e o abrir, tomando cuidado para não danificar o velino seco e quebradiço, será que se lembrará das palavras ecoando pelos séculos passados? Rezo para que, à medida que os meus longos dias se aproximam do fim, eu tenha enfim a oportunidade de consertar o que um dia estraguei, para que eu enfim conheça a verdade. A verdade me libertará. O homem se recosta na cadeira e estende diante de si, sobre a mesa, as mãos cobertas pelas manchas marrons da idade. A oportunidade de saber, tanto tempo depois, o que aconteceu no final. Isso é tudo que ele quer.

Chartres. Norte da França
Mais tarde, nesse mesmo dia, quase mil quilómetros para o norte, outro homem está de pé num corredor mal iluminado sob as ruas de Chartres, esperando a cerimônia começar. As palmas de suas mãos estão suadas, sua boca está seca e ele tem consciência de cada nervo, cada músculo do seu corpo, até mesmo do pulsar das veias nas suas têmporas. Sente-se pouco à vontade, aéreo, embora não saiba dizer se isso se deve ao nervosismo e à expectativa ou aos efeitos do vinho. A túnica branca pesa nos seus ombros, um peso pouco familiar, e as cordas feitas de cânhamo torcido repousam sem naturalidade sobre os seus quadris ossudos. Ele olha de relance para as duas figuras silenciosas de pé ao seu lado, mas os capuzes escondem-lhes o rosto. Ele não sabe dizer se estão tão ansiosos quanto ele ou se já passaram por esse mesmo ritual muitas vezes antes. Estão vestidos da mesma maneira que ele, mas as suas túnicas são douradas em vez de brancas, e eles estão calçados. Os seus próprios pés estão descalços, e as pedras do piso são frias.
Bem lá em cima, acima da rede escondida de túneis, os sinos da grande catedral gótica começam a badalar. Ele sente os homens ao seu lado se retesarem. E o sinal pelo qual estavam esperando. Imediatamente, ele abaixa a cabeça e tenta se concentrar no momento presente. Je suis prêt, murmura, mais para reconfortar a si mesmo do que em uma afirmação. Nenhum dos seus dois companheiros esboça qualquer reacção. Quando a última reverberação dos sinos se transforma novamente em silêncio, o acólito à sua esquerda dá um passo à frente e, com uma pedra parcialmente escondida na palma da mão, desfere cinco batidas na porta maciça. Lá de dentro vem a resposta. Dintrar. Entrar. O homem pensa por um instante que reconhece a voz da mulher, mas não tem tempo de adivinhar de onde nem de quando, porque a porta já está abrindo para revelar a câmara que ele esperou tanto tempo para ver». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT