sábado, 29 de dezembro de 2018

A Bela Adormecida Vai à Escola. Gonzalo Ballester. «Canuto não conhecera a mãe, e descansou em Gisela como no regaço materno; teve em quem depositar a sua intimidade e mais uma pessoa a quem obedecer, mas há que proclamar em abono de Gisela…»

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A casinha do bosque
Estripador e a sombria recordação de Lourenço, o Galante, cujas intemperanças sexuais provocaram uma revolta célebre; e da rainha Ferdinanda, em cujos amores a magia e o mistério se misturavam com o crime e a mais patológica incontinência. Acontece que os partidários de ambas as versões se desentenderam, e para o caso de o instinto recém-desperto se empenhar em persistir, ou a tripla herança degradante insistir nos seus efeitos, o Conselho de Educação de Sua Majestade decidiu, depois de graves e longas disputas, colocá-lo nas mãos de Gisela-Lillo-Inés, cuja juventude experiente tomou a seu cargo a canalização dos reais instintos: trabalho pelo qual foi considerada funcionária do Estado, figurando na lista dos fundos secretos.
Gisela-Lillo-Inés não era uma desconhecida na Corte, e muito menos uma adventícia. A sua figura carnuda, embora espigada, uma fausse maigre, contava-se entre as coristas da Ópera, e os galanteadores habituais tinham comprovado repetidas vezes as suas excelentes aptidões para o cargo palaciano com que mais tarde foi agraciada. Contava entre a sua clientela o mais extravagante da aristocracia e o mais promissor da política, e por ter protectores em ambos os bandos a sua nomeação foi aceite«(…) Mas os outros viram por trás do galanteio a sombra perversa de Frederico IV, ao qual as crónicas secretas chamavam o  sem discussões, especialmente por parte do Camareiro-Mor, por cujo filho primogénito Gisela se tinha apaixonado e ao qual se empenhava em fazer seu legítimo esposo.
Foi para Canuto uma experiência dolorosa: o seu espírito inocente mal entrevira os aspectos pecaminosos do amor. Tinha galanteado uma rapariga pelo simples facto de a ter achado bela e amável, e porque lhe parecera uma forma desconhecida de felicidade sentar-se junto dela e tentar que a conversa se impregnasse da poesia do momento. Falou de amor, porque nas suas leituras tinha descoberto qualquer coisa como um mistério a que não sabia que nome dar, mas podia do mesmo modo ter falado de cinza, girassol ou peristilo, de igual modo misteriosos. O seu encontro com Gisela, a maneira desenvolta que esta teve de se insinuar, a surpresa do Rei, a surpresa maior de Gisela, € o resultado final, formavarn na mente de Canuto um complexo de recordações desagradáveis e dolorosas, como uma chaga do espírito que apenas com o receio de um contacto se acende e dói: naquela noite, nos braços de Gisela, convencera-se definitivamente da sua pouca imporlância, da sua pequenez, da pequena e miserável coisa que é ser rei quando não se é ao mesmo tempo um hornem feito e direito. Por sua vontade teria fugido. Ela apoderou-se de Canuto com uma plenitude inesperada, porque ele não só a deixou governar o seu corpo, mas também a sua alma, sempre na medida compatível com a Constituição.
Canuto não conhecera a mãe, e descansou em Gisela como no regaço materno; teve em quem depositar a sua intimidade e mais uma pessoa a quem obedecer, mas há que proclamar em abono de Gisela que não abusou desse privilégio. É certo que pôs imediatamente um preço aos seus serviços, e que uma potência estrangeira os adquiriu muito caros, o que não afectava a pessoa de Canuto, mas a segurança do Estado. De certo rnodo, a influência de Gisela foi benéfica, pois embora nunca tenha conseguido curar Canuto da abulia, infundiu-lhe pelo menos a enganosa impressão de que em determinados momentos era capaz de actuar por conta própria.
Quanto ao resto, a situação de Canuto no seu reino parecia-se com a de todos os reis constitucionais. Reinava, não governava, e era governado. Presidia às grandes paradas e à colocação das primeiras pedras, recebia os embaixadores e aborrecia-se. Os monárquicos toleravam-no com receio dos republicanos, e os republicanos transigiam com ele com receio das aspirações hereditárias de certo príncipe estrangeiro, chamado ao trono por rigoroso direito sucessório se Canuto morresse ou fosse destronado». In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.

Cortesia de Caminho/JDACT