sábado, 29 de dezembro de 2018

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Inocente, não é verdade? Ou melhor, pueril. Mas acontece que turulú é a palavra que chateia, que irrita, que faz perder as estribeiras a Carlos Frederico Guilherme…»

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«(…) Não vejo as pessoas com estes binóculos mínimos. Às vezes pareço adivinhá-las, mas não é impossível que sejam ilusões favorecidas pelo desejo. Isto que vou contar agora não o sabe Carlos Frederico Guilherme, ignora-o Christian: só estão no segredo quatro ou cinco leais sem emprego que, de um momento para o outro, tiveram ocasião de exercer a sua lealdade. Acontece que não tive outro remédio senão pôr em jogo a minha liberdade e, talvez, a vida e entrar na minha cidade como incógnito clandestino. A minha filha Rosanna teve uma filha e, ainda que o pai seja o imbecil mais bem vestido da corte imperial, o mais afectado dos hussardos que ornamentam as tropas do meu primo, a criança era minha neta e apetecia-me dar-lhe um beijo. Circularam correios entre mim e Rosanna. Recorremos às pessoas que referi: numa noite de vento favorável aproximou-se certo bergantim ligeiro da praia mais próxima. A um sinal, entrei num bote e embarquei. A travessia foi boa, as entradas secretas do palácio não haviam sido entaipadas nem sequer encerradas e, assim, pude ver Rosanna e a pequena Carlota, que tinha o nariz de seu pai (o melhor do pai dela é o nariz), mas os olhos de Amélia e isto consolou-me e fez-me amá-la desde o início. Quando o disse a Rosanna, ela perguntou-me: e isso alegra-te? Sussurrei-lhe: tu não sabes que amei muito a tua mãe?
Ficou perplexa e, mais ainda, quando acrescentei: e também gosto de Myriam. É mais parecida com a tua mãe do que tu. Então, Rosanna deu-me um beijo. Foram as palavras e o beijo menos sinceros das nossas relações, porque eu sabia, e ela não sabia que eu sabia que ela sabia. Pois eu passei no meu palácio três dias sem ser reconhecido e, numa daquelas noites, alguns desses leais acompanharam-me a dar uma volta pelas ruas da cidade, pelos bairros marinheiros, pelos jardins. Numa tasca em que entrámos para tomar uns copos de rum, desse rum forte dos navegantes que eu não posso comprar, ouvi alguém que dizia a alguém: aquele com o casaco à inglesa não te parece o destronado Ferdinando? Estás com visões, Alfredo!; e não houve mais. Mas diverti-me naquela noite, enchi os pulmões de um ar esquecido e incomparável (não existe cidade marítima do mundo onde a humidade do ar seja tão fresca como na minha) e fumei um cachimbo com os cotovelos assentes num varandim, por cima da muralha, vendo afastar-se as luzes de presença de um navio de cinco mastros que zarpava para o além. Ainda navegavam os últimos cinco mastros: agora já não os há. O que se perde no horizonte são uns vestígios de fumo.
Naquela mesma noite, reintegrado no palácio e a coberto de indiscrições e suspeitas (uma mulher como Rosanna, casada contra vontade com um imbecil como Raniero, não tem outro remédio senão espevitar a astúcia para continuar vivendo sem que a tentação da alta torre não a ronde mais do que um par de vezes por ano; acontecia isto a Rosanna de cada vez que Raniero aparecia pela cidade e se deitava com ela: como já disse, um par de vezes); naquela noite, digo, escrevi ao meu primo Carlos Frederico Guilherme uma carta anónima nos seguintes termos: Senhor, a sua polícia não sabe que o ex-duque Ferdinando Luís vem com frequência a esta cidade e se reúne com um grupo de conspiradores que tentam repô-lo no trono? Ninguém o informou de que a Inglaterra lhes fornece armas, de que centenas de emigrados se treinam militarmente nos Estados Unidos e de que o sinal da sublevação será a chegada ao porto de um navio carregado de voluntários? Majestade, a sua polícia deixa muito a desejar!
Mas, depois, pensei que acabariam pagando os justos pelos pecadores e que Carlos Frederico Guilherme era capaz de torturar Rosanna até lhe arrancar o segredo da minha visita. Rasguei a carta anónima e escrevi outra, que, essa sim, lhe enviei e que me consta que recebeu:

Majestade: turulú!
Inocente, não é verdade? Ou melhor, pueril. Mas acontece que turulú é a palavra que chateia, que irrita, que faz perder as estribeiras a Carlos Frederico Guilherme e por boas razões, já que, em virtude de certos jogos infantis que não pôde esquecer, turulú!, recorda-lhe a Turquia. Mas só eu é que sei disto, que brinquei com ele em criança. Também ninguém entende porque não lhe passa a irritação até dormir com sua majestade, a imperatriz, que descende de Cados Magno, ela só capaz de enobrecer um rato só com levá-lo para a cama! Nos seus braços, o meu primo sente-se secretamente enobrecido e isso também não o sabe ninguém a não ser eu e, secretamente, por cima de todas as genealogias sem mácula, se é que as há (mas ele tem necessidade de que as haja). Quando a senhora está à mão, tanto melhor; mas quando está a viajar, ocasiões que ela aproveita para enobrecer a quem o necessita, o meu primo é capaz de cometer os maiores disparates. Como a famosa guerra contra a França que se temeu que ele declarasse num desses arrebatamentos, só porque o netinho lhe dissera: turulú!, e a senhora estava a tomar águas». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT