quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

A Caminho de Jerusalém. Jan Guillou. «Deixar de comparecer à grande inauguração da catedral encomendada pelo rei para agradar a Deus poderia gerar mal-entendidos»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Cruzadas
«(…) Mas essa era uma maneira egoísta de pensar, isso ela sabia muito bem. Era bem comum as mulheres morrerem na cama ao dar à luz. E ela sabia que os seres humanos teriam que nascer na dor. Mas cometeu o erro de rezar para a Virgem Maria para que a poupasse, e ela tentaria cumprir os seus deveres matrimoniais de forma que isso não conduzisse a uma nova gravidez. O filho deles, Eskil, sobrevivera e era uma criancinha bem constituída e esperta, com todas as qualidades que qualquer criança deve ter.
A Virgem Maria, certamente, a havia punido. O dever das pessoas era encher o planeta, portanto, como é que se poderia esperar que a sua prece fosse atendida quando ela pretendia escapar dessa responsabilidade? E, assim, ela esperava novas dores, isso era certo. E ainda, mais uma vez, muitas vezes, ela pediu para que mais uma vez sobrevivesse sem graves consequências. Para escapar, pelo menos, à tortura muito menor, mas incómoda, de, por muitas horas, ficar em pé e se ajoelhar, levantar-se e logo se ajoelhar novamente, ela deixou que Sot, a sua criada, fosse baptizada para que pudesse ir com ela e entrar na casa de Deus, ficar com ela a seu lado para lhe dar apoio na hora de abaixar-se e levantar-se. Os olhos grandes e negros de Sot ficaram paralisados, como se fossem os olhos amedrontados de um cavalo, por tudo o que ela pôde ver, e se ela antes não era cristã de verdade, então, agora, devia passar a ser. Três metros à frente de Sigrid, estavam o rei Sverker e a rainha Ulvhild. Ambos eram muito pesados pela idade e, assim, tinham muito mais dificuldades para, sem excessivos gemidos ou ruídos impróprios saídos pelo traseiro, levantar-se e cair de joelhos. No entanto, foi por eles e não por Deus que Sigrid se encontrava na catedral. O rei Sverker não considerava muito bem os ancestrais noruegueses ou da Götaland Ocidental dela, nem os do seu marido. E, agora, já bastante idoso, o rei ficou tão desconfiado quanto preocupado com a sua vida depois da morte. Deixar de comparecer à grande inauguração da catedral encomendada pelo rei para agradar a Deus poderia gerar mal-entendidos. Se o homem ou a mulher desagrada a Deus, eventualmente a coisa pode ser resolvida directo com Ele. Já contrariar o rei seria para Sigrid muito pior. Mas, lá pela terceira hora, começaram as tonturas na cabeça de Sigrid, e cada vez a situação piorava, na decorrência do eterno exercício de cair de joelhos e levantar-se, com a criança dentro dela, chutando-a e se mexendo cada vez mais, como se quisesse protestar. Ela teve a sensação de que o chão de lajes amarelo-claras e polidas começava a balançar sob seus pés, e que começava a rachar, como se quisesse abrir-se e, de repente, sugá-la. Foi então que ela fez algo nunca visto nem contado. Partiu resoluta, com as sedas farfalhando, e sentou-se num pequeno banco lá longe na nave lateral. Todos viram o acontecido, o rei também. Justo no momento em que ela, aliviada, se deixou cair no pequeno banco de pedra junto da parede da igreja, entraram em procissão na igreja os monges de Lurõ. Sigrid enxugou o suor na testa e no rosto com um lencinho de linho e fez para o seu filho, que estava lá longe com Sot, um aceno estimulante. Então, os monges começaram a cantar. Tinham avançado por toda a nave central, de cabeça baixa, como se estivessem em oração, e foram colocar-se bem lá na frente junto ao altar, de onde os bispos e os seus ajudantes estavam se retirando. Primeiro, escutou-se apenas algo como um murmúrio, fraco e surdo, e depois, de repente, vozes agudas juvenis; isso mesmo, uma parte dos monges de Lurõ tinha capas marrons e não brancas, e era claramente bem entendido que se tratava de rapazes de pouca idade e as suas vozes subiam como se fossem pássaros brancos esvoaçando em direcção ao enorme tecto da nave, e quando as vozes alcançaram o seu ponto mais elevado, enchendo toda a grande nave surgiram as vozes graves e adultas dos próprios monges que cantavam ora em compasso ora em descompasso. Sigrid já tinha escutado cantos em duas ou três vozes, mas neste caso o canto estava sendo apresentado em pelo menos oito vozes. Parecia um milagre, uma coisa que não poderia acontecer, uma vez que três vozes já era muito difícil de conceber». In Jan Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Editora Bertrand Brasil, Grupo Editorial Record, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.
              
Cortesia de EBertrandB/JDACT