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As
Cruzadas
«(…) Mas essa era uma maneira egoísta de pensar, isso ela sabia
muito bem. Era bem comum as mulheres morrerem na cama ao dar à luz. E ela sabia
que os seres humanos teriam que nascer na dor. Mas cometeu o erro de rezar para
a Virgem Maria para que a poupasse, e ela tentaria cumprir os seus deveres
matrimoniais de forma que isso não conduzisse a uma nova gravidez. O filho
deles, Eskil, sobrevivera e era uma criancinha bem constituída e esperta, com todas as qualidades que qualquer
criança deve ter.
A Virgem Maria, certamente, a havia punido. O dever das pessoas
era encher o planeta, portanto, como é que se poderia esperar que a sua prece
fosse atendida quando ela pretendia escapar dessa responsabilidade? E, assim,
ela esperava novas dores, isso era certo. E ainda, mais uma vez, muitas vezes,
ela pediu para que mais uma vez sobrevivesse sem graves consequências. Para
escapar, pelo menos, à tortura muito menor, mas incómoda, de, por muitas horas,
ficar em pé e se ajoelhar, levantar-se e logo se ajoelhar novamente, ela deixou
que Sot, a sua criada, fosse baptizada para que pudesse ir com ela e entrar na
casa de Deus, ficar com ela a seu lado para lhe dar apoio na hora de abaixar-se
e levantar-se. Os olhos grandes e negros de Sot ficaram paralisados, como se
fossem os olhos amedrontados de um cavalo, por tudo o que ela pôde ver, e se
ela antes não era cristã de verdade, então, agora, devia passar a ser. Três
metros à frente de Sigrid, estavam o rei Sverker e a rainha Ulvhild. Ambos eram
muito pesados pela idade e, assim, tinham muito mais dificuldades para, sem
excessivos gemidos ou ruídos impróprios saídos pelo traseiro, levantar-se e
cair de joelhos. No entanto, foi por eles e não por Deus que Sigrid se
encontrava na catedral. O rei Sverker não considerava muito bem os ancestrais
noruegueses ou da Götaland Ocidental dela, nem os do seu marido. E, agora, já bastante
idoso, o rei ficou tão desconfiado quanto preocupado com a sua vida depois da morte. Deixar de comparecer à grande
inauguração da catedral encomendada pelo rei para agradar a Deus poderia gerar
mal-entendidos. Se o homem ou a mulher desagrada a Deus, eventualmente a coisa
pode ser resolvida directo com Ele. Já contrariar o rei seria para Sigrid muito
pior. Mas, lá pela terceira hora, começaram as tonturas na cabeça de Sigrid, e
cada vez a situação piorava, na decorrência do eterno exercício de cair de
joelhos e levantar-se, com a criança dentro dela, chutando-a e se mexendo cada
vez mais, como se quisesse protestar. Ela teve a sensação de que o chão de
lajes amarelo-claras e polidas começava a balançar sob seus pés, e que começava
a rachar, como se quisesse abrir-se e, de repente, sugá-la. Foi então que ela
fez algo nunca visto nem contado. Partiu resoluta, com as sedas farfalhando, e
sentou-se num pequeno banco lá longe na nave lateral. Todos viram o acontecido,
o rei também. Justo no momento em que ela, aliviada, se deixou cair no pequeno
banco de pedra junto da parede da igreja, entraram em procissão na igreja os
monges de Lurõ. Sigrid enxugou o suor na testa e no rosto com um lencinho de
linho e fez para o seu filho, que estava lá longe com Sot, um aceno
estimulante. Então, os monges começaram a cantar. Tinham avançado por toda a
nave central, de cabeça baixa, como se estivessem em oração, e foram colocar-se
bem lá na frente junto ao altar, de onde os bispos e os seus ajudantes estavam
se retirando. Primeiro, escutou-se apenas algo como um murmúrio, fraco e surdo,
e depois, de repente, vozes agudas
juvenis; isso mesmo, uma parte dos monges de Lurõ tinha capas marrons e não
brancas, e era claramente bem entendido que se tratava de rapazes de pouca
idade e as suas vozes subiam como se fossem pássaros brancos esvoaçando em direcção
ao enorme tecto da nave, e quando as vozes alcançaram o seu ponto mais elevado,
enchendo toda a grande nave surgiram as vozes graves e adultas dos próprios
monges que cantavam ora em compasso ora em descompasso. Sigrid já tinha
escutado cantos em duas ou três vozes, mas neste caso o canto estava sendo
apresentado em pelo menos oito vozes. Parecia um milagre, uma coisa que não
poderia acontecer, uma vez que três vozes já era muito difícil de conceber». In Jan Guillou,
A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Editora Bertrand Brasil, Grupo Editorial
Record, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.
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