domingo, 23 de dezembro de 2018

O Arquipélago da Insónia. António Lobo Antunes. «O neto do meu filho? porque se distinguiam as palavras apesar da ausência de som, um gato de cerâmica numa camilha que me recordo de encontrar amputado de orelhas na cave»

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«(…) Na vila não se escutavam os cascos embora o cavalo continuasse a trotar conforme não se escutavam os sininhos dos estribos, as azinhagas davam ideia que escuras apesar do dia nos campos que se detinha antes das primeiras hortas onde um balde, um regador, um alguidar quebrado, uma mulher a cantar que se calou de súbito ou mandaram calar-se e um ruído de sapatos numa casa em baixo seguido pelo trinco da porta eu que imaginava espectros em lugar de pessoas e afinal gente mas quem, não camponeses, não ciganos, não pobres dado que apesar dos postigos vazios por vezes numa janela um solitário ou um lustre, um homem num portal a olhar para mim vestido como os parentes das fotografias e na cara dele Quem é este? qualquer coisa do meu avô no nariz, no bigode, qualquer coisa de mim que não sei a quem me assemelho, um homem muito idoso a calcular pelo modo como o corpo se movia Acho que sei quem é e não me lembro óculos consertados a arame que retirou do bolso a embaraçar-se nas hastes, regressou um momento a perguntar O neto do meu filho? porque se distinguiam as palavras apesar da ausência de som, um gato de cerâmica numa camilha que me recordo de encontrar amputado de orelhas na cave, uma senhora espreitando por trás dele, o homem para a senhora Não achas? e o trote do cavalo a escutar-se de novo à medida que a senhora Não sei um milhafre, dois milhafres em círculos e no entanto imóveis como é próprio dos milhafres que flutuam quietos, param, regressam, sobem e descem sem mudar de lugar, é a terra que muda, dobra-se, dilata-se e eles especados salvo quando uma agitação de asas e bicos no pátio, uma poeirazita, um pedaço de tijolo  ao contrário (a senhora que não ligava aos milhafres indecisa Não sei) e os milhafres a galgarem o ar, de cabeça entre os ombros, com um frango nas unhas, descobri que fazem os ninhos em penhascos que não me atrevia a subir não fossem levar-me também arrancando-me as penas, uma ocasião encontrei um deles no topo da chaminé a fixar-me, escondi-me na lenha do fogão Um milhafre uma das empregadas veio ao alpendre com a faca do peixe e voltou-se acusadora Não há milhafre nenhum e realmente milhafre nenhum, a criação em sossego, só o mulo assustando cães e perús dado que o meu avô criava em torno um círculo de receio Patrão (e a chávena com mais força no pires, como era ele com a minha idade avó?) a senhora sumiu-se a compor o cabelo e nisto recordei-me dela numa fotografia, amparada a uma mesa com um vaso de gerânios em cima, o cavalo a baloiçar os quadris sentindo as pessoas, como era na época em que não havia casa nem herdade nem o que o meu avô construiu, uma ondulação de estevas, uma capela de quinta sem torre nem sino e o meu pai a tranquilizar o cavalo impedindo-o de recuar como se cheiro de mortos, um segundo homem numa espécie de latada Voltaste? convencido que eu pertencia ali da mesma forma que os caniços e as pedras que eram anúncio de ribeiro com o meu avô criança perto dele a olhar-me, um garoto descalço que me obedeceria se eu Faz isto faz aquilo por enquanto não Aquele não é o meu neto nem a ordenar à minha mãe Chega cá um miúdo sem autoridade nem feitor, incapaz de pensar que o sacho do meu pai o desfaria ombro a ombro, não eu para ele Senhor ele para mim Senhor interessado no cavalo, querendo que lho emprestasse para o montar sozinho consoante mais tarde montaria o mulo a fim de examinar as colheitas enquanto as criaturas das fotografias iam surgindo do nada, plastrons engomados, mantilhas fora de moda que nem no sótão se encontram, pessoas a espiolharem-se víscera a víscera, esta trabalha, esta não e de que me serve que trabalhe, mais tempo vivo para quê, eu pasmado para os milhafres a engordarem sobre os ovos ou esquartejando um galo aos arrepelos, o comboio ao longe ou o assobio do mato comigo a decidir Vou-me embora e ficando porque o comboio distante demais e a fronteira a seguir à lagoa mas onde está a lagoa, falávamos da lagoa sem a termos visto do mesmo modo que falávamos da fronteira ignorando onde ficava e o que haveria depois (padrões, ilhas, estátuas?) encerrados na herdade e na casa que mudara sem que nada faltasse, os defuntos não no cemitério, na vila, lápides que não cobriam ninguém excepto os soldados da França e por conseguinte a minha mãe (Amanhã leva as tuas coisas para o andar de cima) numa travessa qualquer a perfumar baús com a sua caixa a um canto, não falava com a gente, não se ralava connosco, talvez agora que falecera me chamasse Filho e para além de Filho» In António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia, Publicações don Quixote, Leya, 2008, ISBN 978-972-203-694-8.
                                                              
Cortesia de PdonQuixote/JDACT