domingo, 16 de dezembro de 2018

A Verdadeira História. Margaret George. «Nós, neste belo navio negro, contra imensas ondas somos lançados, travando uma luta, desesperada, contra a tormenta»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) No momento, Maria lia o poeta Alceu, lutando com o seu grego e com a pouca claridade. Fora o seu próprio irmão Silvanus que lhe servira de cúmplice e de professor secreto de grego. Havia dias que estava lendo um poema sobre um naufrágio. Nesse dia, chegaria à última linha, sentindo-se triunfante. Sua frágil decisão de abandonar a poesia grega murchara.

Nós, neste belo navio negro,
Contra imensas ondas somos lançados,
Travando uma luta, desesperada,
Contra a tormenta.
As velas, tensas, gritam, esfacelando-se,
Voando em pedaços.
A espuma das águas explode,
Soltam-se as amarras das âncoras,
E uma nova onda, maior que a primeira,
Lança-se sobre nós, repleta de perigos,
Enquanto o navio mergulha no mar.

Fechou a folha de papiro e ficou olhando para o lago. Influenciada pelo poema, ela via uma tempestade, ao invés da superfície calma e pacífica da água à sua frente. Vinham à sua memória, como ondas, as lembranças das tempestades a que já assistira naquele mesmo lago, que podia ser forte e perigoso. Levantou-se. Logo seria noite e ela tinha de estar dentro dos muros da cidade. Mas faltava ainda fazer uma coisa, que ela prometera tanto tempo atrás. De dentro de um saquinho, retirou um objecto embrulhado num pano. O ídolo. Asera. Ela o arremessaria para o lago, deixando-o afundar para onde pudesse encantar peixes, rochas e limo.
Hesitante, pegou-o na palma da mão. Nunca o verei de novo, pensou. Já quase nem me lembro como é, depois de tantos anos. Não olhe, disse, decidida, para si própria. O ídolo não falou uma vez consigo? Não se intrometeu nos seus pensamentos ainda ontem? Levou o braço bem para trás, firmando-se para lançá-lo para o lago à maior distância que conseguisse. Não sou assim tão fraca, zombou para si mesma. Por que ter medo de olhar um ídolo pagão? Sinto vergonha de ter medo. E a única maneira de dominar o medo é enfrentando-o. Se não olhar agora para o ídolo, eu lhe darei um poder que ficará para sempre sobre mim. Lentamente, baixou o braço. Abriu a palma da mão, deixando o embrulho ficar ali. Com a outra mão, cuidadosamente, desfez o embrulho. Naquela luz púrpura do entardecer via novamente o rosto de marfim, com os lábios que pareciam sorrir para ela. Baixou-se para observar melhor, pois já estava escuro. Era tão lindo que parecia prender-lhe a respiração. Era mais bonito que as estátuas de mármore branco de atletas que ela vira sendo transportadas pelo lago para a cidade pagã de Hipos; mais bonito que as efígies sensuais das moedas de Tiro que já vira no mercado, passando de mão em mão.
Seria errado destruí-lo, pensou. Eu poderia vendê-lo ao comerciante grego que sempre passa por aqui a caminho de Cesareia. Deve ser muito caro. E então, um pensamento repentino atravessou-lhe a cabeça, poderia esconder o dinheiro e evitar um casamento não desejado. Rapidamente, substituiu-o por outro, mais caridoso: poderia doá-lo para o comércio de meu pai ou dar aos pobres. De qualquer maneira, seria um desperdício jogá-lo ao mar. Contente por ter vencido a sua tolice, Maria guardou a pequena escultura na sua bolsa». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT