segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa. «Quebra-se, pois, a clausura: pelos seios ele a tem segura a rasgar-lhe os mamilos com os dentes. Quebra-se pois a clausura?»

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Primeira Carta III
(…) Mas em teias seremos, se preciso, as três, aranhas astuciosas fiando de nós mesmas nossa arte, vantagem, nossa liberdade ou ordem. Afinal, que labor procuramos, que caminhos traçamos em premeditada terra, que crueldade usamos e nem só? Nem só de nós falamos, nem só de quem mora connosco, a quem cedemos porta ao trio; eles coniventes embora temerosos, por isso mesmo coniventes, perante aventura que não entendem, mas onde entraram por nos serem perto e no fundo urgentes. Que nem só também Mariana nos é hoje única freira, outra entrou em nossa história, de memória lembrada com seu medo: o corpo nu rasgado sobre a cama, os olhos escondidos sobre os dedos:

Em quarto estranho me encontro a reparar nos espelhos e eu neles, pálida, impassível, na imagem que com ela compartilho desconhecendo-a até àquele momento. Hirta, dividida entre o prazer sentido, a ira, o pânico, o recomeço. Quem sabe se o recomeço e assim me olha. Porém estou aqui somente a fim de a tirar de casa para o convento. Estranho exercício lhe quero dar à paixão, exercício do corpo; paixão extinta, talvez a reacender-se com a minha presença. Uma esperança de vício. Um engano de novo. Um novo aturdimento. Levanto o hábito caído junto à cama, sei quem lho tirou e como que a defender homem estou ali. Mensageira de macho, marialva me torno e aguardo. Teria apenas de a fazer retomar a clausura de onde saíra com fim de visitar cidades e visitada foi por homem, nem cavaleiro nem francês, mas homem, no dizer de si próprio, viril e bom no acto, conhecedor de orgasmos. Toco-lhe no ombro despido de roupa, sem pena. Minha função e gesto não revoltam o mundo: tem-se o mundo sempre desfeito de mulheres. Estou conforme a lei dos fortes: mulher a desfazer-se de mulher a mando de homens.

E ainda hoje me lembro, vos conto e vocês me olham. Outra freira, pois, nos preocupa agora junto a Mariana. Que nos custa inventar-lhe cartas? Se de nós inventamos, na reconstrução precisa, em invenção de casa? Redobrada assim se torna a posse. Veneno de terra desbravada ou desbravamos: a paixão, dissecando-lhe os motivos, as causas, as razões. Aos sintomas, conhecendo-lhes a febre, a doença, o sangue espesso do silêncio. Jamais me implores que amante te seja, caça, ou tu próprio caça exposta a minhas armas; para ti estão voltadas, firmes. Nunca esperes delas piedade: são insensíveis, frias, obsessivamente apontadas a quem me queira tomar, entrando em meu domínio de solidão e praia. Nela vomitei, desconhecendo no entanto, o cansaço, a prisão. Saboreando a náusea à mistura com o sol, o mar, a pele áspera de sal na boca. Ninguém me peça, tente, exija, que regresse à clausura dos outros». 19/3/71

Primeira Carta III
A Paz
Compraz-se Mariana com seu corpo. O hábito despido, na cadeira, resvala para o chão onde as meias à pressa tiradas, parecem mais grossas e mais brancas. As pernas, brandas e macias, de início estiradas sobre a cama, soerguem-se levemente, entreabertas, hesitantes; mas já os joelhos se levantam e os calcanhares se vincam nos lençóis; já os rins se arqueiam no gemido que aos poucos se tornará contínuo, entrecortado, retomado logo pelo silêncio da cela, bebido pela boca que o espera. Que interessa então a Mariana as mãos que o encaminham? Se as suas que lhe descem lentas pelas ancas, se as dele que a largaram de improviso...
Quebra-se, pois, a clausura: pelos seios ele a tem segura a rasgar-lhe os mamilos com os dentes. Quebra-se pois a clausura? Recurva, tenso, o ventre: a língua entumescida. Dele a língua quente, áspera de saliva e o demorado sugar, rente, ritmado a esvaziá-la devagar da vida. Compraz-se Mariana com seu corpo, ensinada de si, esquecida dos motivos e lamentos que a levam às cartas e a inventam. Descobri que lhe queria menos do que à minha paixão (...): ei-la que se afunda em seu exercício. Exercício do corpo-paixão, exercício da paixão na sua causa.
Os olhos tem fixos, escancarados, no rosto dele presos, a inventá-lo em seus traços que de memória retém ou não sabe se os inventa, enquanto sobre o peito lhe descai, no movimento ritmado das coxas, a possuí-lo como macho, sente, e lhe vê os lábios crispados, se enterra mais nele, se empala num enorme prazer, no uivo de quem foge ou se dá. Dádiva em toda aquela obcecante conquista da dureza violenta do pénis: os dedos bem fundo perdidos na humidade viscosa da vagina, os ombros erguidos, a cabeça apoiada no travesseiro, os braços tensos como que para lhe reter os quadris estreitos que se movem na consentida busca da voragem do útero». In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.

Cortesia PdQuixote/JDACT