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«(…) Para além das cartas há, também, alguns documentos dos chamados
confidenciais. Rasguei muitos, na sua maioria delacções repugnantes, cartas
anónimas contra este ou a favor daquele, quando não contra mim próprio.
Pergunto-me como desafogariam certas pessoas a sua alma miserável antes de se
popularizar a escrita. Quem terá sido o inventor genial da carta anónima? Fácil
como é! Põem-se os insultos uns atrás dos outros e já está. Dá-se saída à
inveja e ao ressentimento e já está: ficam rios de lixo. Não sei se falei já da
senhora Stolle, mas voltarei a falar dela. Tem um salão frequentado por
artistas e por outras pessoas inteligentes. Porque será que eu suspeito que foi
desta casa que saiu a maior parte das denúncias contra os liberais, as
acusações de deslealdade e de perversidade contra pessoas que considero minhas
amigas ou, pelo menos, minhas defensoras? A senhora Stolle denuncia os seus
próprios companheiros de tertúlia e imagino-a convencida de que presta um
serviço à pátria, quando só favorece a Águia do Leste. Pelo contrário Paulus, o
sargento... Tem a seu cargo informar-me do que se passa pela cidade. Dá voltas
pelas ruas e fala com este e com aquele. Depois escreve-me.
Do sargento Paulus a S. A. o grão-duque Ferdinando Luís,
respeitosamente
Senhor, no meu último relatório falava-vos de que a senhora Sauce iria
dar à luz um dia destes: pois já foi mãe de uma formosa menina, à qual pôs o
nome de Tarakanova o qual, na minha opinião, vai acabar por ser comprido
demais. A menina Rosa, da loja das rendas, zangou-se com o namorado e isto
causou grande agitação no bairro do Sul, porque a gente do bairro do Sul é
muito solidária com todos os do bairro do Sul, e como o noivo da menina Rosa
era do bairro do Leste, não o viam com bons olhos e o abandono de que fez
objecto a menina Rosa é considerado como uma ofensa a todo o pessoal. É muito
possível que haja brigas entre os rapazes do bairro do Sul e os do bairro do
Leste que, segundo parece, também se solidarizaram com o noivo da menina Rosa.
A vendedeira de hortaliças da Rua do Leme Partido, que tem uma pocilga, apesar
dos protestos de toda a gente, viu aumentada a sua população porqueira em oito
rosados leitões, dos quais já vendeu quatro; e é o que diz a menina Verbena,
que lhe faz concorrência: ou vende couves ou porcos, mas as duas coisas, não.
Com certeza que o filho da senhora Verbena, contra a vontade dos pais que
queriam associá-lo ao negócio, se embarcou numa fragata das que vão para Inglaterra,
mas com a intenção de passar à América quando estiver mais desembaraçado a
trepar aos mastros. Senhor grão-duque, à senhora Zanahoria, que tem uma loja de
produtos importados na Rua do Leme Intacto, apareceu-lhe um caroço maligno debaixo
de um sovaco e correu o boato de que ainda lhe vão aparecer outros seis: que
pelo número lhes chamam andorinhos, não sei porquê: a senhora Zanahoria está muito abatida e o marido dela dedica-se a
correr os barcos estrangeiros em busca de um unguento que lhe cure a mulher, a
quem, como está tão dorida, não pode tocar de noite. Por essa coisa de tocar ou
não tocar também houve conflito, com bronca das grandes, na Rua do Caderna
Esburacada: porque se descobriu que o senhor Saulo, o enfermeiro do Hospital,
tinha tido relações com uma das enfermeiras e, por esta razão, a mulher dele
não o admite no leito conjugal, e diz-lhe que se vá divertir com a outra: o
bairro está dividido, os homens a favor do senhor Saulo e as mulheres a favor
da Senhora Stella, que assim se chama a interessada.
O ponto alto do escândalo costuma ser por volta das oito da noite: é um
espectáculo divertido e recomendável, no qual se vê como as pessoas se
contentam com palavras, sem passar aos actos. Senhor grão-duque, à menina Esmeralda,
que vende linhas e aviamentos de costura, tudo isso que elas chamam de
capelista, na Rua do Peixe Voador, conforme se entra, o banco quis-lhe fechar a
loja, porque não pôde pagar uma letra de vinte moedas que lhe vinha do
estrangeiro: pois as pessoas fizeram imediatamente uma colecta, eu contribuí
com dez peniques que faltavam e, quando chegaram os executores, pagou-se-lhes a
letra e ficaram com uns narizes de palmo, porque o que faz os executores
felizes é, precisamente, executar. Ele há gente mesmo má!
A villa que o meu amigo Christian me emprestou para viver é, na
realidade, mais do que uma villa e um pouco menos do que um castelo:
lindíssimo, se o pai de Christian, o meu tio Aleixo, não se tivesse lembrado de
o restaurar: trouxe de França um arquitecto que o fez parecer mais medieval do
que era, apesar de novo. Diz-se que nele celebrava Aleixo as suas orgias medievais,
mas este dado histórico, dito assim, nunca consegui entendê-lo. Como foram as
orgias medievais e em que se distinguiam das contemporâneas?» In
Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma
Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.
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