sábado, 1 de dezembro de 2018

As Naus. António Lobo Antunes. «A tonalidade das ondas contra a pedra mudara, agora transparente e doce como o som dos teus olhos. O reformado ganhou a centésima quadragésima nona…»

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«(…) O homem de nome Luís habitava com o pai no Cazenga quando uma patrulha disparou sobre o velho, de forma que assim que os amigos do dominó lho trouxeram embrulhado em rasgões de lençol, só com uma madeixa de cabelo ruço de fora, o deixaram na toalha do jantar, em cima dos talheres e dos pratos, e se foram a discutir um dobre de seis, desceu o beco até à agência funerária que uma granada rebentara, entrou pelos vidros estilhaçados da montra e escolheu uma urna no meio das muitas que sobejavam na loja porque os corpos se decompunham nas praças e nas ruas sem que ninguém se afligisse com eles, salvo os cachorros vagabundos e os ladrões de farrapos. Entornou o finado lá dentro, esquecido de o desembaraçar do lençol, de o beijar, de lhe vestir o fato do casamento ou de lhe aparar as unhas, atarraxou os parafusos do féretro e na manhã imediata instalou-o no carrinho de mão juntamente com uma muda de roupa e uma marmita de batatas e dirigiu-se à doca no intuito de embarcar para o reyno. Logo que o vomitado atingiu os dois palmos amarrou o caixão à perna do beliche, com a guita dos perus do Natal, para poder dormir, embora sentisse o pai navegar sem substância no interior do seu sono, chamando-o pelas frestas de nogueira na voz alvoroçada dos mortos. Ao atracarem em Lixboa o maneta e o reformado ajudaram-no a depositar a urna, a que faltavam pegas e uma porção de crepes, no rebordo do cais, e o reformado sacou as cartas da algibeira para uma última sueca sob os queixumes de noiva dos guindastes, os borborigmos das corvetas e os albatrozes que conspiravam no alto, intrigados pelo odor de vinagre do velho. Ao décimo terceiro trunfo de copas o das cautelas levantou-se, Buenas noches, senhores, que tenho de ir a Espanha acabar o meu livro, só consigo rever provas com o sol cigano de Madrid à cabeceira, prometo enviar pelo correio um exemplar autografado a cada um, e eles notaram então, surpreendidos. que as pessoas e a bagagem haviam desaparecido do porto: sobrava o escuro, um desertor supliciado numa espécie de palco para edificação das gentes e alimento dos corvos, e um candeeiro aceso num edifício de socorros a afogados ou de escritório marítimo, desses que o ministério das pescas, o Infante navegador e a Polícia Judiciária plantavam litoral abaixo para vigiar ao mesmo tempo o contrabando de haxixe e as manobras dos bucaneiros flamengos.
A tonalidade das ondas contra a pedra mudara, agora transparente e doce como o som dos teus olhos. O reformado ganhou a centésima quadragésima nona implacável partida quando já nem as pintas das cartas se diferençavam e se adivinhava o valor das quinas por um decepcionado eco na alma, após o que recolheu o baralho, se despediu e foi embora, lamentando, para não se comover, que com parceiros assim, que nem o número de pontos decoram, qual é o raio de gozo de vencer uma bisca. O homem de nome Luís permaneceu séculos observando o jogador que se afastava no passinho prudente dos subtis conhecedores do acaso até sumir-se, pardo no céu pardo, além do renque de arbustos paralelos a uma linha de comboio e se perder na desordem iluminada da cidade. Então sentou-se na urna com a água aos seus pés sem lograr distingui-la, salvo o ofegar do rio que se distanciava e avançava, e onde desembocavam os esgotos de Lixboa e os sonetos pastoris do poeta Francisco Rodrigues Lobo, suicida do Tejo pescado numa rede como um sável de bigodes. As gaivotas e os milhafres acolheram-se às cornijas quase concluídas dos Jerónimos para onde o exército transladara a chamazinha gloriosamente modesta do soldado desconhecido, camponês atónito jogado para a lama francesa e os gases alemães da primeira guerra mundial, dando lugar a morcegos do tamanho de perdizes que dormiam durante o dia na paz de arcos do claustro com um lagozito ao centro destinado à sereia criança que Bartolomeu Dias prometera a el-rei aquando da sua próxima viagem, logo que de madrugada um canto de búzio se erguesse dos recifes a deslumbrar os marinheiros. Locomotivas em manobras separavam o homem de nome Luís dos edifícios da margem, obliquamente assentes no pavimento das calçadas como as naus do cerco da cidade no musgo do Tejo. Um cabo da guarda-fiscal, de escopeta, vestido com as risquinhas dos suíços que protegem o papa, Passou por ele uma ocasião ou duas a fumar, e o morse da ponta do cigarro respondia em código aos sinais de lanterna dos contrabandistas, conduzindo às armadilhas da tropa falsas traineiras marroquinas atestadas de licor italiano e de papoilas de ópio». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT