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«(…) O homem de nome Luís
habitava com o pai no Cazenga quando uma patrulha disparou sobre o velho, de forma
que assim que os amigos do dominó lho trouxeram embrulhado em rasgões de lençol,
só com uma madeixa de cabelo ruço de fora, o deixaram na toalha do jantar, em
cima dos talheres e dos pratos, e se foram a discutir um dobre de seis, desceu
o beco até à agência funerária que uma granada rebentara, entrou pelos vidros estilhaçados
da montra e escolheu uma urna no meio das muitas que sobejavam na loja porque os
corpos se decompunham nas praças e nas ruas sem que ninguém se afligisse com eles,
salvo os cachorros vagabundos e os ladrões de farrapos. Entornou o finado lá dentro,
esquecido de o desembaraçar do lençol, de o beijar, de lhe vestir o fato do casamento
ou de lhe aparar as unhas, atarraxou os parafusos do féretro e na manhã imediata
instalou-o no carrinho de mão juntamente com uma muda de roupa e uma marmita de
batatas e dirigiu-se à doca no intuito de embarcar para o reyno. Logo que o vomitado
atingiu os dois palmos amarrou o caixão à perna do beliche, com a guita dos perus
do Natal, para poder dormir, embora sentisse o pai navegar sem substância no interior
do seu sono, chamando-o pelas frestas de nogueira na voz alvoroçada dos mortos.
Ao atracarem em Lixboa o maneta e o reformado ajudaram-no a depositar a urna, a
que faltavam pegas e uma porção de crepes, no rebordo do cais, e o reformado sacou
as cartas da algibeira para uma última sueca sob os queixumes de noiva dos guindastes,
os borborigmos das corvetas e os albatrozes que conspiravam no alto, intrigados
pelo odor de vinagre do velho. Ao décimo terceiro trunfo de copas o das cautelas
levantou-se, Buenas noches, senhores, que tenho de ir a Espanha acabar o meu livro,
só consigo rever provas com o sol cigano de Madrid à cabeceira, prometo enviar
pelo correio um exemplar autografado a cada um, e eles notaram então, surpreendidos.
que as pessoas e a bagagem haviam desaparecido do porto: sobrava o escuro, um
desertor supliciado numa espécie de palco para edificação das gentes e alimento
dos corvos, e um candeeiro aceso num edifício de socorros a afogados ou de escritório
marítimo, desses que o ministério das pescas, o Infante navegador e a Polícia Judiciária
plantavam litoral abaixo para vigiar ao mesmo tempo o contrabando de haxixe e as
manobras dos bucaneiros flamengos.
A tonalidade das ondas contra a pedra
mudara, agora transparente e doce como o som dos teus olhos. O reformado ganhou
a centésima quadragésima nona implacável partida quando já nem as pintas das cartas
se diferençavam e se adivinhava o valor das quinas por um decepcionado eco na
alma, após o que recolheu o baralho, se despediu e foi embora, lamentando, para
não se comover, que com parceiros assim, que nem o número de pontos decoram,
qual é o raio de gozo de vencer uma bisca. O homem de nome Luís permaneceu séculos
observando o jogador que se afastava no passinho prudente dos subtis
conhecedores do acaso até sumir-se, pardo no céu pardo, além do renque de
arbustos paralelos a uma linha de comboio e se perder na desordem iluminada da cidade.
Então sentou-se na urna com a água aos seus pés sem lograr distingui-la, salvo
o ofegar do rio que se distanciava e avançava, e onde desembocavam os esgotos
de Lixboa e os sonetos pastoris do poeta Francisco Rodrigues Lobo, suicida do Tejo
pescado numa rede como um sável de bigodes. As gaivotas e os milhafres acolheram-se
às cornijas quase concluídas dos Jerónimos para onde o exército transladara a chamazinha
gloriosamente modesta do soldado desconhecido, camponês atónito jogado para a lama
francesa e os gases alemães da primeira guerra mundial, dando lugar a morcegos do
tamanho de perdizes que dormiam durante o dia na paz de arcos do claustro com um
lagozito ao centro destinado à sereia criança que Bartolomeu Dias prometera a el-rei
aquando da sua próxima viagem, logo que de madrugada um canto de búzio se erguesse
dos recifes a deslumbrar os marinheiros. Locomotivas em manobras separavam o homem
de nome Luís dos edifícios da margem, obliquamente assentes no pavimento das
calçadas como as naus do cerco da cidade no musgo do Tejo. Um cabo da guarda-fiscal,
de escopeta, vestido com as risquinhas dos suíços que protegem o papa, Passou por
ele uma ocasião ou duas a fumar, e o morse da ponta do cigarro respondia em código
aos sinais de lanterna dos contrabandistas, conduzindo às armadilhas da tropa falsas
traineiras marroquinas atestadas de licor italiano e de papoilas de ópio». In António
Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN
978-972-205-995-4.
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